quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Auto-diagnóstico: historiofilia, ou historiolatria

Diagnostiquei-me com uma nova síndrome psicológica: a historiofilia, uma variante atenuada da síndrome de Diógenes, a doença dos "acumuladores", uma doença do espectro do Transtorno Obssessivo Compulsivo (TOC). Seria eu historiólatra? Sofreria eu historialismo? Ou de neofobia?

Pouco entendo tanto de Grego como de Latim, mas sei o quanto é perigoso flexionar desavisadamente seus apostos, radicais e sufixos. A melhor ilustração para isso é a tradução seca de um dos maiores anátemas modernos: a pedofilia. Ora, pedo, do grego, significa “criança”, daí, por exemplo, a pedagogia ser a arte de ensinar crianças. Philia, do grego, significa “amar”: daí os orquidófilos, Teófilos e hemofílicos, que amam respectivamente a orquídeas, a Deus e ao sangue. Portanto, alguém de raso conhecimento do grego, como eu, poderia traduzir por pedófilo àquele que “ama crianças”. E o pedófilo provavelmente argumentará que de fato, ama às crianças. Porém, sabemos, as “ama” de um jeito errado, criminoso. Talvez a nomenclatura não esteja correta, e o melhor seria pedofilocida: aquele que trucida o amor das crianças. Por si próprias.

Transposta a digressão: a Síndrome de Diógenes, conheço de um ou dois documentários da TV à cabo e de uma ou duas reportagens do José Luís Datena: caracteriza-se por acometer normalmente pessoas idosas, que isolam-se do convívio social e fazem de sua casa uma “toca” intocável, na qual acumulam objetos velos, inúteis, ou mesmo sucata e recicláveis catados da rua, dizendo que os guarda pois ainda pretende deles fazer uso. Na mais chocante reportagem, obviamente do Datena, teleacompanhei uma senhora idosa com lágrimas nos olhos enquanto funcionários da Prefeitura retiravam 5 caminhões de lixo de sua casa felizmente própria pois herdada, cujos cômodos estavam entulhados até o teto da memorabilia mais aleatória. Baixinho, protestava, amparada pela vizinha, sua amiga de infância:

- São as minhas coisas!...

Meu caso não é tão extremo, nem de longe. Mas cada vez mais venho progressivamente percebendo o quanto para mim não é saudável cercar-me de objetos que lembram-me meu doloroso passado familiar e de como tenho, progressivamente, sentido a urgência de, para mais de elaborar isso, desfazer-me desses ítens inúteis que guardo com desvelo e afeto, pois apego-me às memórias que me despertam.

Os mais cotidianos e inescapáveis objetos de todos são as roupas, e é curioso como algumas delas cercam-se de um halo de memórias, em particular aquelas que repassamos ao ver as fotos de eventos especiais. Em roupas de festa gastamos dinheiro, e as usamos raramente, com cautela para não repetí-las no mesmo grupo. Nunca fui muito consumista nem tive um orçamento muito folgado, portanto raramente compro roupas; mas quando meus olhos pousam-se sobre uma peça e me apaixono, a compro. Pois das vezes que não comprei, arrependi-me de ter deixado escapar talvez, a única bermuda, biquíni ou colete que um dia despertou minha atenção.

Algumas dessas roupas “de balada” ou “de marca” que usei no máximo 10 vezes, durante a minha adolescência, até há pouco eu ainda guardava, perfumadas, em minhas gavetas, mesmo que há mais de 8 anos sem uso. Embora muitas ainda me sirvam, nem tudo que é suitable para alguém com 14 anos o é para alguém com 28.

Há menos de 2 meses fui visitada por meus únicos tio, tia, primo e prima, cariocas. Meu primo com 14, minha prima com 15 anos. São sei pq senti a urgência de repassar-lhes algumas dessas roupas, que eu guardava tão ciosamente, ainda novas, de boa qualidade. Não são o tipo de roupa que se dá para caridade, pois além de festivas, são, ainda, “novas”, tendo sido lavadas apenas 2 ou 3 vezes. Senti um misto de alívio e dor no coração enquanto entregava à minha prima adolescente e sonhadora algumas blusinhas muito bonitas, mas que não posso mais usar sem parecer meio ridícula, pois são roupas de adolescente. Foi muito difícil desapegar-me delas e de parte das lembranças de noites memoráveis em que me emolduraram. Mas espero que adiante ornem noites ainda mais memoráveis às lembranças ainda por construir de minha única e pasmem, quase ruiva, prima Gisele Rani. Fico feliz por ela e sei que, tendo uma pataforma familiar segura, poderá alçar vôos muito mais altos que os meus.

Depois que desfiz-me dessas peças de roupa tão preciosas, não pelo que custaram, mas por meu apego emocional, questionei-me se não o fizera num lampejo suicida. Sempre fui muito apegada a tudo que é meu, e tudo o que é meu é-me sobremaneira precioso, e o guardo com zêlo, ao alcance da mão. Estaria eu, sem me dar conta, passando meus objetos adiante já encaminhando a partilha de meu parco espólio?

Pensei sobre isso até hoje, e hoje decidi-me que não. Decidi-me acerca disso enquanto no mesmo dia livrei-me de dois e acalentei a um itens de memorabilia pessoal. Livrei-me de mais dois objetos com memória e trajetória, em feliz ocasião natalina. A respeito do terceiro objeto, o protagonista desta postagem, acalentei uma memória, e dois segundos depois diagnostiquei-me, pretensiosamente, como memoriólatra.

Cabe relatar as memórias de um objeto? A quem não interessar, autorizo-o a pular todo o resto deste texto. Talvez isso seja algo doentio, mas de todos os objetos que me cercam, guardo memórias. Nesta antevéspera de Natal, preparando-me para viajar, tirei do armário uma malinha despretensiosa, pequena, trivial, azul-petróleo, com inscrições em verde de uma agência de turismo. Para o visitante desavisado, um objeto que nada vale, de má qualidade, promocional. Mas apenas eu sei o quanto me vale esta malinha. Ela já tem 20 anos, embora eu a mantenha quase impecável. A guardo com cuidado pois foi o primeiro prêmio que recebi, gratuitamente, em toda a minha vida.

Calculo que isso transcorreu entre meus 7 e 8 anos, pois ainda morava em Rio Claro e já sabia ler. Meu avô, que era militar da reserva, fôra convidado para um jantar de gala, e eu fui junto com toda a família. Eu com um lindo vestido cor-de-rosa, que minha avó me costurara na cozinha de nossa casa. Nunca eu me sentira tão garbosa. No jantar foram sorteados prêmios, de acordo com etiquetas pregadas, aleatoriamente, abaixo das cadeiras no salão. As pessoas deviam, portanto, olhar embaixo do próprio assento para ver se haviam ganho algo. Olhei não só na minha, mas em todas as cadeiras de nossa mesa, e nenhuma etiqueta havia. Já lá pelo fim da festa, o crooner anunciou mais uma vez:

- Ainda temos vários prêmios para ser recebidos.

Muitas pessoas posudas não se deram ao trabalho de checar seu tamborete. Nunca fui posuda. E era então espontânea. Não tive dúvida, engatinhando, e como era então pequena, esgueirei-me por debaixo das cadeiras das mesas circundantes, driblando as pernas dos convidados até achar um selo. Descolei-o e saí debaixo da cadeira, para surpresa da que nela estava sentada. Do chão, disse-lhe:

- Moça, tinha um selo embaixo da sua cadeira, posso pegar pra mim?

Ela deu um sorriso, afagou meus cabelos e meneou que sim. Corri para meu avô e disse-lhe ofegante:

- Olha, Morzinho, eu achei um prêmio!

Ele sorriu, abraçou-me, olhou ao selo e disse:

- Parabéns!

Corri então para o palco e troquei o selo por esta malinha, de propaganda, que ainda uso. Ao olhar para ela sinto algo da felicidade desta noite em que a ganhei, com meu vestido bonito, com a generosidade daquela desconhecida, com o parabéns amoroso e convincente de meu avô.

Muitas outras malas mais posso comprar. De melhor qualidade. Mais belas. Mais resistentes. Mais posudas. Mas nenhuma delas me trará tanta alegria quanto esta, que evoca-me um abraço de avô e uma lembrança feliz.

2 comentários:

  1. Muito Bom!Obrigado pelo comentário que deixou no Bloomet.É sempre bem-vinda ao meu blog!

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  2. Pensei que seria uma lição de história, foi mais uma história para derrubar lágrimas na poeira.

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