quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Causos escolares – o sem festa de aniversário

Quando, leitor, é o seu aniversário?

Essa é uma das respostas mais rápidas e certeiras que qualquer um acima de 7 anos sabe responder com segurança e presteza. E este dado, curiosamente, em nossa sociedade, de certa forma é atachado à própria identidade do indivíduo, tendo que ser citado inúmeras vezes em todas as mais variadas situações em escolas, postos de saúde, na Justiça Eleitoral, na delegacia de polícia e afins.

Pois é, costumamos, como se diz em inglês “take for granted” que todos têm direito, anualmente, à celebração de seu aniversário, mesmo que simbólica por conta da pobreza. Pois é, nem todos. Isso aprendi boquifechada na FEBEM.

Certo dia, ao final do ano, levei revistas e cartolinas para fazer cartazes com os internos da Fundação CASA na qual trabalhava. Nesta sala do ensino fundamental, franqueei as revistas para que os alunos as folheassem à cata de algum assunto que despertasse sua atenção.

Um deles, de posse de uma Superinteressante com uma matéria cheia de gráficos lindos sobre Astronomia e Astrologia, apontando as folhas disse:

- Vamos fazer um cartaz sobre o céu e as estrelas?

Percebi que para eles, presos num internato à beira da estrada na zona rural, as estrelas abundantes no Céu noturno representavam um suspiro de liberdade, sonho, poesia. Uma certa intuição de que a vida prosseguia, resoluta e livre, além das grades.

Gostei da idéia. Disse então que os demais principiassem a procurar nas outras revistas palavras e imagens referentes a estrelas e, pq não, aos signos do zodíaco.

Como forma de diversificar e verticalizar o assunto, levantei com eles a questão dos signos zodiacais.

- Meu signo é Capricórnio, e o de vcs?

Eram 12 alunos. 11 disseram seus respectivos signos. O um que falta, Fernando, lombrosiano, analfabeto, permaneceu mudo sem interagir com a atividade. Sentei-me ao seu lado e perguntei:

- Fala, qual é o seu signo?

Atalhou num tom mau-humorado: - Não sei.

Abrindo um sorriso como se eu estivesse diante de uma criança que desconhece uma informação simples, retruquei-lhe:

- Ora, eu conheço bastante de signos. É só vc me dizer em que dia vc faz aniversário que eu te digo qual é o seu signo!

Não entendi os segundos de silêncio que se seguiram. Ao cabo deste estranhamento, Fernando, traficante de renome, olhou-me diretamente nos olhos de forma fugidia, assustada, de como quem confessa um pecado há muito cometido e sussurrou, soslaiando para assegurar-se de que mais ninguém ouvia:

- ...sabe... ...é que... ...eu não sei... ...quando eu faço aniversário...

Constri meus lábios entre os dentes tal qual fazem os centenários na ausência da dentadura. Permaneci atônita e reticentemente emudecida, sem saber se eu falava mais alguma coisa ou mais nada. Como percebi o constrangimento de meu xará apenas no nome e em mais nenhuma circunstância além de nossa espécie e nacionalidade comuns, e seu aceno em não querer prolongar o assunto, levantei-me e afastei-me dele, tentando colocar em stand by o meu choque social.

Terminados a aula e o cartaz, encaminhei-me diretamente ao funcionário responsável pela papelada dos “menores”, sr. M, de cabelos imaculadamente brancos. Mais-que-pálida, relatei-lhe o ocorrido e terminei com um:

- O senhor poderia olhar na papelada dele e me dizer qual é a data de seu aniversário?

Sr. M. contraiu seus lábios tal qual eu meia hora antes. Disse a olhar para suas gavetas transbordantes:

- Pois é, eu também não tenho a data do aniversário dele, na verdade, só tenho seu R.G. expedido quando da sua prisão, com esta data de registro, com o nome que ele declarou, de pai e mãe desconhecidos. Ele foi preso sem documentos... Na verdade, provavelmente, nunca os teve...

Arqueei da forma mais ampla possível minhas sobrancelhas num lance de dúvida e inacreditável certeza. Sequer o Estado tinha certeza do nome, idade, data de nascimento, de Fernando, além dele próprio. Embora ele sequer fosse depositário de uma identidade, isso em nenhum momento tolheu o Estado de puni-lo, sem sequer dar-se ao trabalho de ir atrás de sua documentação original, se é que ela existia.

Caro leitor, passe brevemente em suas lembranças todas as vezes em que vc soprou velinhas, sempre na mesma data. Fernando nunca soprou e provavelmente nunca soprará nenhuma vela em nenhum bolo de aniversário. Vc consegue agora, talvez, vê-lo por um outro prisma, quiçá mais... humano?


Como exigir "normalidade", pelo nosso parâmetro, de quem nunca teve uma vida "normal", de acordo com "nosso" próprio parâmetro... ?

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