terça-feira, 30 de novembro de 2010

De como perdi meu primeiro emprego

Recentemente vi-me numa conversa entre amigos pós-universitários sobre nossos primeiros empregos. Um fôra office boy, outro atendente numa loja, uma terceira, secretária de uma dentista. Uma quarta comentou, reflexivamente, que seu primeiro trabalho remunerado dera-se apenas depois de graduada. Outro, que nunca tivera assim, propriamente, um emprego, apenas mesadas familiares e bolsas de estudo governamentais.


Percebi que dentre todos eu fôra a mais jovem a exercer atividade trabalhista regular e remunerada. Normalmente crê-se, ao menos no Brasil que quanto mais é postergado o momento de ingresso no eito, mais, em acepção espanhola, experto e preparado é entregue ao mercado de trabalho o cidadão. Discordo em todos os graus. Creio que quanto mais tardio o contato com o “trabalho”, menos disposto estará o cidadão em efetivamente “trabalhar”. Como se diz em minha terra, é de menino que se torce o pepino.


E que não distorçam-me lendo nisto apologia ao trabalho infantil. Mesmo que o próprio conceito de “infância” seja questionável, pronuncio-me aqui apenas a respeito de pessoas legalmente cônscias, excedidas a 14 anos.


O quê são os 14 anos? No Brasil, a idade mínima para o consentimento sexual. Certa vez expliquei a meus alunos:


- Se uma menina de 14 anos “transa” com seu namorado de 13 anos ela pode ser enquadrada como delinqüente no artigo de “estupro de vulnerável”, condenada e mandada para a FEBEM – Fundação CASA, cumprindo de 6 meses a 3 anos de “medida sócio-educativa de internação”.


Embora improvável, isto seria perfeitamente legal. Atualmente no Brasil a legislação prevê que a idade mínima para o trabalho são os 16 anos. Quando eu mesma era adolescente, eram 14 anos e foi por conta disso que aos 15 anos pude ter meu primeiro emprego.


Vi uma faixa no McDonald’s da avenida Anhanhia Mello, da janela do ônibus: “Estamos recebendo currículos”. Fui com meus colegas do colégio Chico e Romeu entregá-los e participar da entrevista. Como sou meio “outspoken”, o que seria meio-traduzido por algo entre faladeira e articulada, fui selecionada e eles não.


Para qquer menina brasileira de classe média-baixa é um orgulho ser recrutada para trabalhar no McDonald’s, um ícone multinacional.


Eu trabalharia no “restaurante” Anália Franco Drive, que seria brevemente inaugurado em frente ao canteiro de obras do então futuro Shopping Anália Franco, no canto milionário do Tatuapé, a 2 quilômetros da vila operária em que eu residia em casa alugada.


Meu treinamento deu-se na loja à rua Serra de Bragança, onde eu já comera muitíssimas vezes, próxima à praça Sílvio Romero, coração do Tatuapé. Lá aprendi o ofício. Orgulhosamente uniformizada, decorei até a temperatura em que cada hambúrguer deveria ser grelhado. Selecionada com o perfil de atendente “de salão”, e bilíngüe, lidava com os clientes e pouco trabalhei diretamente na cozinha.


Ao final do treinamento, fomos avaliados e recebemos notas de 0 a 100. Essas notas foram divulgadas numa reunião. Sem que eu me surpreendesse, obtive a maior nota, 97. Recebi então um adesivo de alguém segurando uma bandeja em meu crachá e um pin, ou bottom, exclusivo, para atachar ao meu uniforme.


Na semana seguinte inauguramos o AFD e havia um espaço em branco na parede assinalado pela placa “funcionário do mês”. Ora, sem modéstia, obviamente concluí que em breve estaria lá minha foto num sorriso exultante, afinal eu fora a que mais exemplarmente concluíra o treinamento.


Rsrsrs... Como eu era boba com 15 anos.


Cheguei num dia seguinte e vi, no espaço vazio, a foto de uma loirinha bonitinha num sorriso tolo assinalada como “Joyce”. Joyce fôra a segunda colocada na avaliação, com 96 pontos. Tinha eu 15 anos e senti coçar-me os brios, o que urgi em comentar em voz alta, publicamente, no refeitório:


- Como assim, a Joyce é a “funcionária do mês”?! Fui eu que recebi o pin! Fui eu a com a melhor nota! Por quê ela? Por que ela é loira? Por que ela é simpática? Por que ela é bonita?


Explicaram-se depois à boca pequena:


- É porque ela é do Drive. Já me disseram que é comum que os funcionários que atendem ao Drive Thru sejam privilegiados.


Compreendi então que no mercado de trabalho muito mais importante que a capacidade eram as coligações políticas: o lugar certo, o sorriso certo, a saudação certa na hora certa. E que mesmo que meu trabalho fosse melhor, o Drive Thru era politicamente mais importante. E também que a loirice de Joyce era mais plástica que minha latinidade.


Eu tinha 15 anos e não engoli isso a seco, não sem lutar. Por isso sei exatamente o motivo pelo qual fui rapidamente demitida. Na semana seguinte estava eu recolhendo o lixo do salão externo. Vindo do salão interno, outro atendente meu colega abordou-me para perguntar:


- Vc viu o Orlando?


Orlando era nosso sub-gerente, subordinado ao todo-todo meu xará Fernando. Não contive, em minha adolescência, minha língua coçando numa insinuação maldosa, amarga e pretensamente espirituosa:


- Não vi o Orlando. Deve estar por aí puxando o saco do Fernando.


Meu colega atendente retornou à cozinha e eu reenfoquei-me no meu serviço. 3 minutos depois vi descer pela escada do andar superior não só o sub-chefe Orlando, mas também o mega-chefe-xará Fernando. E enquanto desciam as escadas, dirigiram-se um após o outro certo olhar fulminante.


Como fôra "um certo olhar" e não "um olhar certeiro", torturou-me por 3 dias a dúvida: “Será que eles ouviram, do andar de cima, aquela frase despretensiosa, e cria eu, sem conseqüências, que eu soltara sem pensar, especialmente que mais alguém ouviria?


No terceiro dia tive a resposta. Ouviram-me.


Chamou-me outra sub-chefe, oxigenada. E a outra atendente da minha “turma”, Karina SS. Disse entre robótica e contrita: “Então, este restaurante não teve o movimento esperado e vamos ter que dispensar vcs duas.”


Fiquei completamente chocada. Achei que talvez eu fosse levar um pito, ser advertida, chamada para uma conversa. Nunca, sumariamente, demitida. Então caiu a ficha de uma frase que eu já ouvira muitas vezes: que eu tinha uma “língua de trapo” ou “de sapo”.


Até então eu achava que a veracidade, autenticidade e sinceridade eram virtudes. Quando, por conta delas, perdi meu primeiro emprego, percebi que estes podem ser defeitos, dependendo do mundo em que se vive. No McDonald’s, com certeza veracidade, autenticidade e sinceridade são defeitos e a superficialidade, cegueira e mudez são virtudes. E não só nesta multinacional, mas em qquer empresa que aglomere muitas pessoas, especialmente mulheres.


Ganhava eu então, em 1998, R$1,46 a hora. O que devia dar algo como US$ 0,60 por hora. Pensem o que quiserem, orgulhava-me eu de ganhar, aos 15 anos, com o suor do meu rosto, meu dinheirinho para minhas coisas adolescentes. CD’s, sessões de cinema, revistas, roupas, refrigerantes.


Assim, com minha primeira demissão, comecei a aprender a ser hipócrita e a não dizer abertamente o que penso. E também que, mais importante que a efetiva capacidade de trabalho, eram as relações pessoais. Quisera eu já ter-me conformado e aprendido tudo isso, mas minha língua cotidianamente coça, e não consigo controlá-la, comprometendo-me socialmente, ainda hoje, com isso. Triste.


Não que eu tenha a língua solta, mas que a sinceridade seja, em nosso mundo, defeito.


Da palavra não dita és senhor. Da palavra dita és escravo” - Abraham Benson.


Portanto, se os leitores querem um conselho que seguramente não vão seguir, mas sobre o qual deveriam ao menos pensar: aprendam a controlar a própria língua e a não falar tudo o quê pensam. E, especificamente, além do falar, publicar na Internet. Isto torna imprescritível cada pequeno deslize. Todos devemos preocupar-nos com isso.


Ditado popular: Deus nos deu dois ouvidos e uma boca para ouvirmos o dobro do que falamos.


Outro: em boca fechada não entra mosca. Mais um: quem fala o quê quer ouve o quê não quer. Feqüentemente negligenciamos tolamente a sabedoria que os "ditos populares" nos legam.


A Internet ecoará pela Eternidade. Permita Deus. Um dia meus netos agradecerão ao Dr. Orkut e aos Srs. Facebook a oportunidade de conhecer-me, em toda a minha inconseqüente, adolescente, espontânea, irrefletida, específica, latino-americana à paulista, autenticidade avacinada. :) Ou nos amaldiçoarão, caso eu mesma macule meu nome. Como disse recentemente Bernie Madoff: o sobrenome de sua descendência foi maculado. Permita minha recentemente nascida prudência que eu não incorra neste pesar.

Um comentário:

  1. Gostei do seu texto... mas no meu caso, acredito que fui mandada embora do meu primeiro emprego (assim que acabou o período de experiência!!!) justamente pelo motivo contrário: por falar pouco.
    Talvez se eu tivesse feito mais fofocas pra me enturmar, meu chefe não teria achado que eu não tenho potencial para atender os clientes (e, sem falta modéstia, isso eu tenho)!!!
    O que temos que fazer é balancear as coisas... apernder a falar as coisas certas nos momentos certos! Um missão um tanto difícil para nós mortais que temos uma capacidade verbal exageradamente aumentada ou diminuida.

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