Sei que um animal de estimação é especial apenas para os que o acalentam e são abençoados diretamente por seu amor, e sei que poucos se interessarão pela leitura das memórias de um cão, mas prossigo e o divulgo mesmo assim, visto que minha preciosa Jade o merece, e muito mais.
Jade apareceu em minha vida no ano de 2002. Linda e extremamente dócil poodle branquinha, foi encontrada, prenhe e faminta na rua da amargura por uma amiga de minha irmã Patrícia da Silva Ramos. Na casa desta moça cujo nome nunca soube, Jade deu à luz sua ninhada vira-lata e na totalidade nati-morta. Por conta disso desconfiamos que Jade haveria sido envenenada para abortar a cria indesejada e, ao não abortar, seus donos a teriam simplesmente posto na rua. Essa desconfiança foi avolumada por sua foto ter sido divulgada largamente na região sul de São Paulo, caso seus anteriores proprietários a estivessem a buscar. Nunca houve ninguém à sua procura.
Como a moça que a acolheu prenhe não podia permanecer com ela, minha irmã a trouxe à nossa casa, à rua João Migliari, número 4, no Tatuapé. O motivo disso seria ela servir como esposa ao nosso pet, Lucca, que nos foi entregue por meu ex-sogro Aparecido Donizete de Faria como poodle, mas que sempre desconfiamos ser Bichon Frisé, apesar de sua trufa rosada.
Lucca sempre foi o cachorrinho mais esperto, carismático e fofo que conheci. Encantava a vizinhança até com seus latidos. Sentado à janela observando o movimento, muitos transeuntes surpreendiam-se com seu ânimo por julgar, à sua estática, tratar-se de um bicho de pelúcia. Angelicamente alvo, com o pelo macio e liso, toda sua cútis era lindamente rosada e seus olhos castanho-claros rajados em verde, numa cor que poderia ser chamada de “hazel”. Pobrezinho, era “monoball”, tinha apenas um testículo, que parecia uma cerejinha, pequena, róseo-carnal, e pensávamos, infértil.
Quando conheci Jade, a primeira coisa que notei foi sua eloqüente magreza. Via-se-lhe as costelas. No momento seguinte surpreendeu-me sua docilidade. Eu nunca havia conhecido cachorrinha mais afável, humilde e à margem do pedantismo carinhosa. Exsudava agradecimento por termos acolhido-a. Não tinha nome. Aprazer-me-ia chamá-la Marcela, o que foi execrado. Por fim, foi decidido que seu nome seria Jade, para fazer par com o Lucas, pois vivíamos a época da novela “O Clone” de Glória Peres, na qual o casal principal era o emasculado Lucas (Murilo Benício) e a sofrida Jade (Giovanna Antonelli). E Jade tornou-se. Igualmente desconhecíamos sua idade. Uma veterinário orçou-a em 4 anos, que era a idade de nosso Lucca. Passei então a considerá-los como da mesma ninhada, e a celebrar o aniversário de ambos no natalício de Lucca, 24 de novembro de 1998.
Ao chegar, Jade tinha uma fedorenta infecção auricular que fazia brotar em seus ouvidos uma cera marrom, terrosa. Jade não me conhecia. Tomei-a em meus braços e disse-lhe:
- Sou tua mamãe-sogrinha. E apesar de ser tua sogra, me comportarei com você como uma verdadeira mãe.
Ela confiou em mim e sinto-me grata a Deus por ter me facultado honrar essa promessa, sustê-la, acarinhá-la e pensar suas feridas, até seu último suspiro, como se minha filha carnal fosse. Ou até melhor. Sem me conhecer, Jade permitiu, mesmo aos ganidos, que eu tratasse e limpasse suas doloridas orelhas, sem em nenhum momento sequer cogitar rosnar-me ou morder-me. À essa época percebi uma das poucas coisas que foi possível apreender de sua vida pregressa: Jade seguramente ao longo de toda a sua vida havia sido banhada apenas em pet shops, pois ao contrário de nosso Lucca comumente higienizado no tanque, Jade era incapaz de secar-se sozinha. Ao colocar Lucca molhado sobre a toalha, ele se esfregava quase institivamente secando-se por si só. Jade permanecia parada, nos fitando como quem diz, sem nenhuma arrogância:
- Pode vir terminar o serviço. Vou ficar quietinha.
Quando Jade entrou em seu primeiro cio em nossa casa Lucca era virgem, pobrezinho. Conheceu então o amor. Jade era uma cachorra que, brinquei à época, era meio piranha. Parecia apreciar muito o coito. Enquanto Lucca descansava extenuado, com seu pequeno pipi escoriado, inchado e avermelhado, Jade esfregava-lhe ao focinho sua “pitrica” insaciável. Fartaram-se livremente no amor canino que, surpreendentemente, resultou numa linda ninhada de 5 filhotes: 3 machos e 2 fêmeas; 2 de pêlo liso, 3 de pêlo enrolado; todos de trufa negra, como Jade.
Fomos tomados pelo maravilhoso encanto que é ter uma ninhada de filhotinhos em casa. Jade ficou meio enervada com a presença de Lucca perto dos filhotes, e o tomei para passar uma temporada em meu apartamento do outro lado da rua do famoso bar “Rei das Batidas", próximo à Cidade Universitária da USP, bairro do Butantã, São Paulo, SP, Brasil. Esses dias foram os mais ternos que tive com meu filho Lucca, que me teve então como única provedora.
Minha melhor lembrança com Lucca data desta época. Num final de semana coloquei-o na mochila, peguei minha bicicleta e pedalamos até à USP, Lucca mesmerizado pelo vento suave em seu focinho, complexamente recendendo à Marginal Pinheiros. Telepaticamente transparecia um inefável êxtase olfativo, da forma que apenas um criador-canicultor-pedagogo-adestrador-pigmaleão que sabe-se demiurgo do desenvolvimento cognitivo “humanizado” de um animal de estimação sabe compreender e interpretar. Na Praça do Relógio, Lucca correu à toda, rolou na grama, sentiu aromas inéditos, pulou e sentiu-se completamente livre. Desfrutou a plenitude de saber-se um cão realizado e feliz, belo, maduro, casado, amado, protegido e até mimado, com filhos pequenos e prosseguimento biológico garantido, no auge do que poderia chamar de “vida”.
Lucca era muito inteligente. Compreendia uma ampla gama de palavras, sons e entonações. Jade não. Saltava aos olhos a diferença de “inteligência” entre ambos. Jade era meio “burrinha”. Mas seu coração e boa disposição animal eram gritantemente melhores que os de Lucca, ou de Whiskey (ou Uísque), outro poodle da família estendida. Intratável e intragável, pois fôra redundantemente mal-criado por minha outra irmã, Cristhiane da Silva Ramos e minha avó Shirleÿ Alves da Silva. Ao contrário de Lucca, que pude trabalhar e desenvolver desde a mais tenra infância (chegou-me minúsculo, com menos de 1 mês). Com Jade, que chegou-me adulta, nunca pude desenvolver uma comunicação quase que intuitiva, como tinha com Lucca. Talvez apenas em seus últimos meses, quando ela se viu completamente dependente de meus cuidados gerontológicos paliativos, rendida ao decreto inexorável do passar do tempo.
Seus filhotes foram doados. À época foi cobrado de seus adotantes, indicados por nossos conhecidos, apenas R$ 80,00, referentes à excisão do rabo e à vermifugação. O último a permanecer em nossa posse, de personalidade cativante e encantadoramente irrascível e impertinente, foi alcunhado de “Marrudinho”.
O próximo ato destas duas ilustres trajetórias domésticas é o triste interregno que resultou no falecimento de Lucca, aos 5 anos, em 12 de dezembro de 2003. No final de semana anterior eu havia viajado para Campos do Jordão. Ao voltar, no domingo, Lucas estava baqueado; e urinava sangue. Na segunda foi levado ao veterinário do bairro. Não melhorou. Na mesma semana, não me lembro se na própria terça ou na quarta foi levado ao Hospital Veterinário da Universidade de São Paulo, da qual eu era aluna na FFLCH.
Primeira suspeita: leptospirose hemorrágica. Ao olhar para a proeminente barriga de grávida de Patrícia, a veterinária murmurou em tom assustadoramente soturno:
- Essa doença é contagiosa e se contraída por humanos pode ser abortiva.
A resposta de Patrícia foi afagar Lucca mais uma vez, com seus olhos profundos e coração cauterizado. O HV funcionava apenas em “horário comercial”, não havia internação, portanto a cada dia tínhamos que levá-lo de volta para a Zona Leste, mesmo que não tivesse melhorado. Num dia seguinte dessa semana, após fazer ultrassons e exames de sangue, o pequeno Lucca foi diagnosticado com anemia hemolítica auto-imune. Seu sistema imunológico estava atacando seus glóbulos vermelhos. Entrou em falência renal e, percebam, em 2003, numa das maiores metrópoles do mundo, não havia um único estabelecimento que oferecesse hemodiálise veterinária (Hoje até o há, cobrando milhares a sessão). Em seguida, Lucca entrou em falência hepática. Sua suave pele rósea passou a exibir um matiz sepulcral, num doentio amarelo-esverdeado, quase que neón.
Na tarde daquela sexta-feira eu tinha prova do professor Doutor István Jancsó, que foi meu orientador na Iniciação Científica. Naquela noite o meu grupo de amigos da faculdade celebraria o final do semestre numa festa à beira da piscina no prédio da Bela, nossa amiga também jornalista Gabriela Zini Megale. Por conta disso eu saíra de meu kitnet trajando sob a roupa meu biquíni verde-água, pois esperava que Lucca permanecesse estável e eu pudesse comparecer ao evento.
Terminando afoitamente a avaliação, peguei o ônibus circular e acorri à Veterinária. Lucca, com o soro na veia, repousava tranqüilamente na maca. Patrícia, cabisbaixa, sentada à sua cabeceira. Aproximei-me dele e, acariciando-o, dirigi-lhe palavras doces, familiares entre nós. Para meu horror ele começou a contorcer-se estranhamente, de uma forma que eu nunca vira, nem sabia ser possível. Os veterinários vieram prontamente socorrê-lo. Patrícia principiou a chorar. Eu, chocada, surpresa e atordoada, não sabia o que se passava e murmurei algo neste sentido. A pingar lágrimas em olhos cor de vinho, Patrícia exclamou:
- Você não está vendo que ele está tendo uma convulsão?!
Eu não estava vendo pois eu mal sabia o que era uma convulsão. Para mim isso era coisa exclusiva de epilépticos. Patrícia é fisioterapeuta e compreendia muito melhor do que eu a fragilidade da saúde de Lucca àquela altura e a evidentemente manifesta premência de sua morte. Deixei então de lado o projeto de comparecer à festa supostamente imperdível pois marcaria o “encerramento do semestre”. Perdeu imediatamente diante da cena que eu testemunhava qualquer relevância ou atraência. E neste instante o biquíni incógnito que eu trajava principiou a constranger-me maculando, como a insistente nota dissonante de um instrumento mal afinado, aquele momento que desvelava-se o começo de um drama definitivo.
Findou a tarde e Lucca estava como que em coma. Precisaria de uma urgente transfusão de sangue. Não havia, sub-desenvolvidamente, banco de sangue canino na mais populosa metrópole da América do Sul. Patrícia havia arranjado para o dia seguinte um cão grande para servir de doador, por parte de seu namorado, pai de minha sobrinha Ana Letícia Santos, então em gestação. Ao nos aprontarmos para levar Lucca para casa testemunhei parcialmente quando a veterinária entregou a Patrícia uma injeção, creio hoje eu que de morfina ou similar. Elas conversavam em tom baixo, em um canto, e depreendi que estavam a fazer algo “off the record”, if you know what I mean, pois a veterinária tinha diante de si uma interlocutora que era uma profissional da área médica.
Entramos no carro, Patrícia dirigindo e eu no banco de trás com Lucca no colo, em posição quase rígida de descerebração. Ele não estava em condições de passar a noite em casa e o levaríamos a uma clínica veterinária 24 horas no Tatuapé para ser assistido durante a noite. Naquele longo poente sofri excruciantes excedentes a 3 horas de congestionamento quelônio na Marginal Tietê. Lucca pungia em meus braços, num certo limbo entre o vivo e o moribundo. Defenecia. Seu ânimo parecia vazar-lhe e desvanecer a cada respiração.
Após algumas horas de deixado na clínica, ligaram para informar que Lucca falecera. Chorei desesperadamente, de forma quase pietàica. Jade agora viúva e castrada permaneceu morando naquela casa até que sob algum pretexto de inconveniência material foi remetida para morar em Rio Claro, onde faria companhia ao egocêntrico e neurótico Uísque.
Conheceu então o amargor do abandono pela segunda vez. Foi com hospitalidade veterotestamentária acolhida por meu avô major Vicente Novais da Silva, a exemplo de todos que tenham algum dia recorrido ao seu generoso coração. Quando eu vinha a Rio Claro percebia que Jade, que conheci emaciada, estava agora, de forma até preocupante, obesa. Fartava-se na atenciosa e apetitosa alimentação que meu avô, Morzinho, devotada e diligentemente praticamente deglutia, bem picadinha, em sua gamela e na de Uísque, que estava mais para anoréxico em sua neurose idiossincrática e indelével, apesar de meu esforço posterior. Muitos há interessados no legado material de meu Papica. Já no legado de sua estima, apenas eu. Triste perceber como a poucos engaja honrar a memória de seus mortos.
Em 15 de dezembro de 2006, ao concluir meu bacharelado e licenciatura em História na USP, realoquei-me em Rio Claro, para morar com meus avós maternos, os únicos que reconheço. Meu avô, acometido por câncer na próstata, vivia seus últimos dias. Faleceu no primeiro de fevereiro próximo. Vi-me então moralmente incumbida de cuidar dos seres que meu querido Moreco estimava. Além de sua viúva, minha avó Tula, passei a cuidar de duas samambaias decenárias, um papagaio que me vira nascer, um canário alaranjado que batizei “Frank Sinatra” (que permanece entre nós), Jade e Uísque.
O papagaio Chico, já meio esclerosado e decibéricamente inconveniente, irritante, obstinado e constrangedor perante a vizinhança, foi encaminhado ao viveiro/santuário de um veterinário da região, sem minha interferência ou conivência. Uísque idoso faleceu suavemente após uma curta convalescença de 3 dias. Após 3 anos de convivência comigo, observando a confiança e o bom trato que eu dispensava à sua obsessivamente idolatrada Jade, ele já permitia-me há muito tempo banhá-lo com a água fria da mangueira e até ensaboá-lo, com certa precaução às “áreas nobres” tão preciosas a uma macho inseguro como ele. Uísque em sua terceira idade permitiu-me manipulá-lo, para fins de higiene ou simples carícia, de uma forma que jamais permitira à sua pretensa pseudo-mãe, a anti-fraterna e atavicamente mal-resolvida Cristhiane, que o comprara por alto preço, com pedigree, filho de pai inglês. E que o deixara rapidamente para trás à primeira inconveniência material.
Jade permaneceu entre nós por mais um ano excedido, quase cega e quase surda, pele assustadoramente manchada por seu hábito de tomar longamente o sol matinal. Olhos secos e irremediavelmente inflamados, secretando uma gosma lipídica algo amarela. Cresciam-lhe reiteradamente verrugas, que ela feria ao roçar nos móveis, estando habitualmente manchada de sangue em algum ponto de seu corpo. Desde sempre tinha o hábito de coçar-se constantemente, a ponto de supliciar-se.
Dog spins to itch bottom - Cachorra gira para coçar a bunda
A respeito da coceira, sempre foi dito por veterinários que seriam pulgas ou irritações cutâneas e ela foi algumas vezes tratada com inseticidas veterinários, sabonetes e xampus terapêuticos. Nada fez efeito. Sua coceira inclusive incomodava o sono, não só dela, mas de minha avó, com quem repousava. 3 meses antes de ela morrer, ao ir buscá-la após o banho e tosa no pet shop que freqüentava há muitos e muitos anos, a dona do estabelecimento me interpelou a respeito da coceira compulsiva de Jade. Pronunciou experimentadamente segura, entre hesitante e indignada:
- O veterinário não prescreveu Meticorten? Em casos de alergia como esse, é o que resolve.
Furtei-me ao prosseguimento da conversa, constrangida que estava por sentir-me criticada como uma mãe desmazelada. Nenhum veterinário nunca havia mencionado a possibilidade de tratar-se de uma alergia. No mesmo dia comprei o remédio e o administrei conforme o peso calculado de Jade, 10 kg. Magicamente, ao final do segundo dia de ingestão do antialérgico Jade, simplesmente, parou de se coçar. Senti um misto de alívio e frustração por perceber que teríamos podido, há muitos anos, aliviar o persistente incômodo que a afligia, com uma coisa tão simples quanto administrar-lhe um medicamento acessível a poucas quadras de nossa casa, onde quer que ela fosse. No Brasil existem mais farmácias do que padarias. E por que aquela senhora nunca havia me alertado antes?! Resignei-me depois em não mais me torturar de forma vã a vazia a respeito disso, e de tantos outros pesarosos fardos. Às vezes as coisas se passam exatamente do jeito que têm que ser, apesar de qualquer esforço que esteja a nosso alcance. Assim foi a passagem de Lucca, jovem; e de Jade, idosa.
Não pretendo levantar a bandeira anti-alopática, mas após começar a administração deste remédio que tanto a aliviou, sua saúde rapidamente se deteriorou. Entre agosto e setembro, numa temo inescapavelmente fatídica sexta-feira à noite percebi que Jade estava caminhando de maneira “engraçada”, meio que “rebolando”. Na manhã do sábado banhei-a e até então aquilo era só uma leve suspeita de um problema. Naquela noite Jade já não conseguia andar. Tentava, insistentemente. Orei e pedi ajuda por si, pois um cão que não consegue suster-se em pé não faz suas necessidades fisiológicas, o que não é coisa que possa ser ignorada ou relevada. De alguma forma tive uma súbita epifania ou insight. Possuo eu um cinto largo. Passeio-a sob o ventre de Jade, segurando-o de forma a sustê-la quase como um títere ou um bebê em seu andador. Após perceber-me sustendo-a, Jade abandonou-se à confiança de que eu não a deixaria cair e, apoiada na tipóia improvisada, aliviou-se do inadiável chamado da natureza. Também eu aliviei-me. Não fisiológica, mas emocionalmente, ao menos por aquela noite.
No domingo levei-a ao veterinário. Ao examiná-la percebi mesmo em seu enigmático semblante nipônico a imediata suspeita de que Jade não andava pois poderia ter sido agredida e sua coluna partida. Doutor Márcio Kayano apalpou longamente sua coluna vertebral e abriu um meio sorriso ao perceber sua integridade ortopédica. Solicitou exames de raio-X, que realizei na segunda imediata, ao final da qual retornei a seu consultório. Dos exames, depreendeu que Jade padecia de “bico de papagaio” e hérnia de disco. Para tal até existe cirurgia, mas que não recomendava a Jade, aos 13 anos. Receitou um suplemento ósseo-cartilaginoso e um anti-inflamatório. Acupuntura, caso ela não voltasse a andar com a medicação.
Eu estava desesperançosa de sua restauração mas para minha alegria Jade ao cabo de 2 dias voltou a andar, quase que normalmente. Continuou a ser medicada até seus últimos dias. Porém, com o andar célere do tempo, percebi-a progressivamente fragilizada e envelhecida. Viver principiava a pesar-lhe. Na derradeira semana de outubro deste 2010 Jade começou a vomitar, mesmo a melhor ração disponível, e a recusar-se a comer, mesmo à papinha elaborada e nutritiva que diligente e devotadamente cozinhei-lhe. Ela recusava. Fiz outra e mais outra. Ofereci-lhe carne moída e peito de frango desfiado puros, e até isso recusou. No intervalo de uma semana, tal qual Lucca, Jade rapidamente definhou. Emagreceu, recusando-se a comer. Nos últimos dias entuxei-lhe diretamente na boca com seringa leites vitamínicos. Ela não tinha opção. Era sorvê-los ou afogar-se.
Com o coração na boca, ao longo de toda a semana, toda vez que a olhava checava sua respiração. Até o ocaso da sexta ela era longa, pausada, abdominal, tranqüila. Naquele princípio de Shabbat do que viria a ser o 30 de outubro véspero-eleitoral este compasso alterou-se. Percebi que Jade, já incapaz de suster-se com qualquer macete que eu pudesse cogitar, respirava torácica e ofegantemente. Não parecia mais tranqüila. Telecomunicava incômodo e dor. Só então cogitei, com muita dor, a possibilidade da eutanásia, que não me é absolutamente justificada.
Ao retornar do quase centenário Centro Espírita Fé e Caridade, do qual é decenária freqüentadora, minha avó exclamou entre orgulhosa e humildemente agradecida:
- Se eu te contar, você não vai acreditar! Aconteceu hoje uma coisa que nunca se tinha passado: o veterinário espiritual Rui de Castro pronunciou-se diretamente a mim, a respeito da Jade, e disse para nos acalmarmos pois ela está sendo atendida e socorrida espiritualmente. Que ela não sentirá dor e falecerá suavemente. Foi um acontecimento realmente único e especial! Doutor Ruy de Castro nunca havia se manifestado para nós!
Senti-me presenteada e agradecida pela alta deferência exclusivamente disponibilizada a minha honrada e meritória filhinha. E meu coração algo que acalmou-se. Naquela madrugada, já shabbat, Jade faleceu durante o sono, em hora incerta, a menos de um metro de mim.
Naquele dia, levei-a com a ajuda de minha verdadeira mãe Maria José Pereira da Silva Tomazella ao sítio de seu enteado, o generoso Anthony Secco Tomazella, que franqueou sua hospitalidade para enterrarmos minha filhinha em Itapé, ao som de passarinhos livres. Sepultamo-a no pomar, à beira do riacho, enquanto o céu vertia gotas atemorizantemente pesadas, exibindo-se profético e argênteo, ibericamente melancólico e fatídico. Enquanto eu prestava a última homenagem à inscrita no livro da vida como Chaya bat Noach, umectavam nossa dor solenes lágrimas celestes, e isso, apesar da inconveniência prática, me consolou. Sobre seu túmulo cultivei uma roseira branca e assinalei-a com uma singela joaninha de cerâmica com a inscrição “Jade 30/10/10”. Não é só Jade que jaz ali. Sepultei consigo uma boa parte de minha vida e minhas memórias. E arrepio-me ao digitar isso.
Counting Crows - A Long December
Bem, após ler essa linda e perfeita história, me emociono por completo.
ResponderExcluirCertamente, Jade está bem melhor.
Lembranças boas a ti, dessa pérola que foi à tua vida para alegrar-te.