terça-feira, 18 de dezembro de 2012
Lista verificada com mais de 200 celebridades no Instagram
sexta-feira, 14 de dezembro de 2012
Do Instagram
Antes de 2004 a internet era muito "anônima". Era necessário individualmente procurar pelas coisas, imagens e assuntos q já eram de nosso interesse a priori. Era possível criar páginas gratuitas, blogs e fotologs, mas sua divulgação era muito precária, sendo necessário mandar os links para nossos amigos por e-mail, e contar com sua boa vontade para abrir um link sem nenhum gráfico anexo.
Com as recém-inventadas câmeras fotográficas digitais, registrávamos dezenas de fotos, e para compartilhá-las era necessário atachá-las a um e-mail, criar uma mailing list e torcer para os arquivos não excederem a capacidade de armazenamento de cada caixa de mensagem.
Quando o Orkut foi criado, em 2004, começaram as "redes sociais". Nesta época era possível dar upload a apenas 12 fotos. Com este pequeno limite trocávamos sempre as fotos, substituindo as antigas pelas novas. Com o tempo as condições de armazenamento melhoraram e possibilitaram a criação de vários álbuns, com número ilimitado de fotos.
Na transição para o Facebook, com o ocaso do Orkut, essas fotos foram transferidas. Mas ainda assim, publicar fotos de festas, amigos e familiares não supre toda a nossa necessidade de "mostrar a todos nossa visão de mundo", como se fazia num fotolog (blog composto de fotos e imagens).
Parecia meio bobo publicar no Facebook fotos aleatórias, de coisas q achávamos bonitinhas, curiosas ou interessantes. Exercitar nosso lado "fotógrafo amador".
Para preencher este vácuo surgiu o Instagram. Simples e fácil, integrado ao Facebook, Twitter, Foursquare e outras redes sociais. Oferecia um formato quadrado inovador, filtros e recursos "desencanados" para "dar uma mexidinha" nas fotos para q tivessem aparência "mais artística". Sucesso global imediato. Na sua esteira surgiram dezenas de apps complementares, q ofereciam outros filtros, distorções, sombras, molduras, colagens, adição de textos e geração de hashtags para maior número de "likes" e melhor publicidade para nossos instantâneos.
Agora, não somente era possível ver uma coisa legalzinha, tirar uma foto e mostrar pros amigos, mas tb divulgar isso globalmente, interagir com pessoas de todos os continentes, e tb criar uma certa forma de "narrativa pictórica" do nosso cotidiano.
Comecei a usar e logo caí na primeira tentação de um instagrammer, ou iger: fotos de comida. Um amigo querido já me perguntou pessoalmente, com toda a sinceridade e nenhuma maldade "pq as pessoas ficam tirando foto de comida???"
Respondi-lhe q há 2 "vertentes" nessas fotos culinárias. A primeira se a pessoa está num restaurante: é justamente se "exibir", mostrar para todo mundo q sai e paga por comidas caras e bonitas. A segunda, se foi a própria pessoa q cozinhou, tb é de se exibir, mas de outra forma: mostrar um saber, uma coisa legal q é capaz de fazer, dar uma opção de refeição q seus amigos serão capazes de reproduzir em casa. Mas em ambas as vertentes, fica subjacente à foto o pensamento "olha a coisa linda q estou prestes a destruir!". De certa forma imortalizando uma arte efêmera.
Mas não só de fotos de comida é feito o Instagram. Acompanho mais de 2 centenas de pessoas e aos poucos percebi q alguns temas gerais do usuário do Instagram vão se delineando. E como ao acompanhar esses feeds era possível ter uma idéia da "visão de mundo" de cada um, as coisas q enxerga diante de si, o q considera bonito, o q vale registrar, o q deseja imortalizar, do q tem orgulho e quer mostrar. Era possível, vendo o Instagram das pessoas, ter um certo "inside view" do q cada um enxerga no mundo, da leitura particular q cada um faz de seu cotidiano.
A seguir listarei alguns desses perfis gerais, a partir de minha observação particular do uso q as pessoas q sigo fazem do Instagram. Obviamente, como tudo q envolve humanos, essas classificações não são estanques. Nada impede alguém com o perfil "eu sou meu mundo inteiro" de postar uma causa caritativa, ou alguém com o perfil "tabacaria" postar uma foto no estilo "onde está Wally".
Divirtam-se!
1 - Diário virtual pictórico.
Me incluo nesse. As fotos são variadas e genéricas, de: comida, amigos, prédios, arte, causas, crianças, coisas engraçadinhas ou abstratas, flores. Não só "anônimos" têm este tipo de perfil. Muitas celebridades seguras o suficiente usam o Instagram para dar a seus fãs pequenos agrados na forma de fotos espontâneas, familiares, clicadas pelo próprio artista em sua intimidade e avidamente comentadas por seus admiradores. O IG é um espaço único para fotos q não teriam lugar na divulgação profissional destes artistas, mas q são muito preciosas para os fãs.
2 - Eu quero ser artista
As fotos têm certa pretensão de "densidade reflexiva", ou fotos de coisas banais descritas por frases "filosóficas", fotos do teto, desfocadas, com multiplicidade de ângulos inusitados dizendo "quero exibir meus talentos de fotógrafo adquiridos naquele curso online", de si próprio de viés e "cara de intelectual atormentado", de utensílios vazios, coisas sujas e usadas. O efeito às vezes é de hilaridade não-intencional. Depois q vc vê a enésima auto-foto da mesma pessoa fazendo "cara de conteúdo" não há como não achar tudo isso meio ridículo...
3 - Eu sou meu mundo inteiro
Narcisismo total. 90% do feed são auto-fotos obviamente, de si mesmo, muitas vezes exibindo a maçãzinha do iPhone. Muitas fotos tiradas pelo espelho, às vezes em banheiros públicos, frequentemente em baladas, com outras pessoas jogando o cabelo, fazendo pose e "biquinho". Muitas adolescentes extrapolam na sensualidade. Muitas pessoas tiram foto todo dia para exibir seu guarda-roupa, maquiagem e penteado. Diariamente, para mostrar q são fashionistas.
4 - Onde está Wally?
Pontos turísticos, placas e meios de transporte são os temas principais. Muitas fotos de aeroporto, da janela do avião, de restaurantes e hotéis chiques, de dentro do carro, mostrando trânsito, faróis e túneis.
5 - Tabacaria
Fotos repetidas da mesma paisagem, frequentemente da janela do quarto, com comentários sobre as condições atmosféricas, as estrelas, o pôr do sol. O q salta aos olhos é a repetição: inúmeras fotos quase idênticas, com o boletim meteorológico do momento...
6 - Quero divulgar meu trabalho
Nem só de "bobagens" é feito o Instagram. Muitos profissionais o usam para ficar mais conhecidos, e pseudo-celebridades para tentar tirar o pseudo. Modelos, atores, estilistas, fotógrafos, culinaristas, artesãos, dançarinos, apresentadores, jornalistas já descobriram no "Insta" uma plataforma de trabalho. Sabem usar hashtags, tomam cuidado com a iluminação, postam fotos com certo cuidado profissional.
Gostaram? Concordam? Discordam? Qual é a leitura q vcs fazem do Instagram?
Quem ficou curioso para ver minhas fotos mas não usa o aplicativo, pode ver as fotos aqui: http://instagram.com/fernandazero Quem quiser me seguir, sou @fernandazero !
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domingo, 18 de dezembro de 2011
Uma análise das Leis bíblicas sobre sexo, casamento, divórcio e estupro
Uma situação absurdamente surreal: além de ter sido vítima de uma violação foi considerada, por ter sido estuprada, culpada de um crime. Cuja "retificação" consistiria em ela ser obrigada a reiteradamente realizar o ato sexual com seu algoz, submetendo-se a seu domínio matrimonial. Sua absolvição consistiria em ela tornar a fazer sexo com seu estuprador, mas agora sob a chancela da lei. Nem Salvador Dalí nem De Chirico seriam capazes de pintar um quadro com tintas tão disparatadas.
Muitos apressadamente condenarão o "atraso" das leis religiosas vigentes no Afeganistão. Não pretendo lhes tirar a devida razão, apenas dar uma perspectiva mais ampla sobre esse tema: as leis religiosas que versam sobre sexo, divórcio, estupro e relações sexuais "antes do casamento". E para essa análise partirei das Leis religiosas vistas como sagradas no Ocidente, presentes no texto-base da Cultura Judaico-cristã Ocidental: a Bíblia, considerada por cristãos e judeus a "palavra de Deus". Mais especificamente, me debruçarei sobre o Antigo Testamento (Tanach). E nele, a Lei de Moisés (Torah), também chamada de Pentateuco.
Um debate religioso que sempre dá ibope é a virtual proibição bíblica ao "sexo antes do casamento". Não existe proibição bíblica ao sexo antes do casamento simplesmente pq, biblicamente, não existe sexo antes do casamento. O sexo é o próprio casamento. O que chancela a união entre esposos é a efetivação do ato sexual entre eles. Ainda hoje, tanto pelas leis religiosas como civis, mesmo que duas pessoas casem-se perante a lei, a união reconhecida em cartório só se realiza de fato na "consumação do casamento", que se dá no intercurso sexual.
Aí entra a pergunta: e se um casal faz sexo sem ser casado? É claro que a Torah legisla sobre essa situação, e a respeito dela preconiza:
Êxodo 22:
15 Se alguém seduzir uma virgem solteira e se deitar com ela, pagará o dote e se casará com ela. 16 Se o pai dela não quiser dá-la, o sedutor pagará em dinheiro, conforme o DOTE das virgens.
Essa Lei atesta claramente que "sexo antes do casamento" (entre pessoas solteiras e desimpedidas), por si só, não quebra nenhum mandamento, pois se quebrasse, haveria alguma punição ao casal pelo "pecado" cometido. E nenhuma punição é prescrita nem à jovem "seduzida" nem ao “namorado” sedutor. Apenas a multa pecuniária ao "proprietário da honra da virgem" (seu pai) e a indicação, NÃO OBRIGAÇÃO, de que o casal se una num matrimônio definitivo. Caso seja do desejo do pai da moça.
O que escapa a muitos é que na sociedade veterotestamentária não existiam pessoas "livres e desimpedidas" como hoje o concebemos. Nossa perspectiva burguesa de liberdade pessoal, auto-determinação, individualismo e a "busca da felicidade" inexistiam. As pessoas não subsistiam "sozinhas", apenas como membros de sua família estendida, sua beit'av. E especialmente as mulheres não eram donas de seu próprio corpo, destino e vontades. Mulheres, especialmente as virgens, tinham alto valor monetário. O patriarca era dono de seus filhos, senhor sobre a vida e a morte de todos sob sua autoridade clãnica. Vejamos alguns preceitos que ilustram isso:
Êxodo 21:
7 Se alguém vender a filha como escrava, esta não sairá como saem os escravos. 8 Se ela desagradar ao patrão, a quem estava destinada, este deixará que a resgatem; não poderá vendê-la a estrangeiros, usando de fraude para com ela. 9 Se o patrão destinar a escrava para seu filho, este a tratará conforme o direito das filhas. 10 Se o patrão tomar uma nova mulher, ele não privará a primeira de comida, roupa e direitos conjugais. 11 Se ele não lhe der essas três coisas, ela pode ir embora sem pagar nada.
Claramente, o pai tem direito a vender sua filha como escrava, visto que ela, ou sua virgindade, é uma propriedade com valor em dinheiro. Ao ser vendida em casamento, a filha passa a ter um "patrão", um "novo dono". Mas ainda assim persiste depositária de certos direitos, como a preservação de sua honra e possibilidade de divórcio (irrevogável). Se partir do marido a iniciativa da separação, claro.
Deuteronômio 24:
1 Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente, escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade. 2 Tendo saído de sua casa, se ela se casar com outro, 3 e também este se divorciar dela e lhe entregar nas mãos um documento de divórcio e a deixar ir embora em liberdade, ou se o segundo marido morrer, 4 então o primeiro marido, que se havia divorciado dela, não poderá casar-se outra vez com ela, pois estará contaminada: seria um ato abominável diante de Javé. Você não deve tornar culpada de pecado a terra que Javé seu Deus vai lhe dar como herança.
Deuteronômio 22:
13 Se um homem se casa com uma mulher e começa a detestá-la depois de ter tido relações com ela, 14 acusando-a de atos vergonhosos e difamando-a publicamente, dizendo: ‘Casei-me com esta mulher mas, quando me aproximei dela, descobri que não era virgem’, 15 o pai e a mãe da jovem pegarão a prova da virgindade dela e levarão a prova aos anciãos da cidade para que julguem o caso. 16 Então o pai da jovem dirá aos anciãos: ‘Dei minha filha como esposa a este homem, mas ele a detesta, 17 e a está acusando de atos vergonhosos, dizendo que minha filha não era virgem. Mas aqui está a prova da virgindade da minha filha!’ E estenderá o lençol diante dos anciãos da cidade. 18 Os anciãos da cidade pegarão o homem, mandarão castigá-lo 19 e o multarão em cem moedas de prata, que serão entregues ao pai da jovem, por ter sido difamada publicamente uma virgem de Israel. Além disso, ela continuará sendo mulher dele, e o marido não poderá mandá-la embora durante toda a sua vida.
20 Se a denúncia for verdadeira, isto é, se não acharem a prova da virgindade da moça, 21 levarão a jovem até à porta da casa de seu pai e os homens da cidade a apedrejarão até que morra, pois ela cometeu uma infâmia em Israel, desonrando a casa do seu pai. Desse modo, você eliminará o mal do seu meio.
Nesse excerto de Deuteronômio 22 muitos vêem que a mulher, obrigatoriamente, deve ser virgem para se casar. Isso não é verdade. O que esse texto condena é a fraude de se "vender gato por lebre": um homem se casar enganado achando que a noiva é virgem quando não é (e haver pago por um dote mediante fraude). Pq posso afirmar que não é obrigatório que a noiva seja virgem para se casar? Pq há uma Lei que determina que uma única mulher, em todo o Israel, obrigatoriamente deve ser virgem ao se casar: a esposa do Sumo Sacerdote.
Levítico 21:
10 O sumo sacerdote, escolhido entre seus irmãos, sobre cuja cabeça foi derramado o óleo da unção e foi consagrado com a investidura das vestes sagradas, não andará despenteado nem esfarrapado. 11 Não se aproximará de nenhum cadáver, porque não deverá tornar-se impuro, nem mesmo por seu pai ou por sua mãe; 12 não sairá do santuário e não profanará o santuário do seu Deus, porque está consagrado com o óleo da unção do seu Deus. Eu sou Javé. 13 Ele tomará por esposa uma virgem; 14 não se casará com viúva ou com mulher repudiada, desonrada ou prostituta, mas se casará com uma virgem do seu povo, 15 para não profanar seus filhos no meio do povo, porque eu sou Javé, que o santifico».
O sumo sacerdote, necessariamente um levita cohen, e apenas ele, deve obrigatoriamente escolher "uma virgem do seu povo" para se casar. Essa Lei não se aplica ao "cidadão comum" e nem aos demais sacerdotes, vejamos:
Levítico 21:
1 Javé falou a Moisés: «Diga aos sacerdotes, filhos de Aarão: O sacerdote não se contaminará com o cadáver de um parente, 2 a não ser que se trate de parente muito chegado: mãe, pai, filho, filha, irmão. 3 Também por sua irmã solteira que vive com ele; por causa dela poderá expor-se à impureza. (...)
7 Não se casarão com prostituta ou mulher desonrada, ou ainda mulher que tenha sido repudiada por seu marido, porque o sacerdote está consagrado ao seu Deus.
Claramente compreendemos que enquanto o "sacerdote comum" não pode se casar com uma ex-prostituta, ou desonrada, ou repudiada, ao sumo sacerdote, e apenas a ele, além dessas interdições, é acrescida a necessidade da virgindade da noiva. Subjaz o raciocínio: e o "cidadão comum", pode ser casar com uma mulher solteira ex-prostituta, desonrada, repudiada ou que não seja mais virgem? Com certeza. Se ela não for sua parente nem sua ex-mulher (havendo se casado com outro, mesmo que seja viúva).
Caso uma moça que perdeu a virgindade ficasse proibida de se casar, seguramente o versículo de Ex 22:16 "Se o pai dela não quiser dá-la, o sedutor pagará em dinheiro, conforme o dote das virgens" seria acrescido do apêndice: "e não poderá mais ser dada em casamento", ou "e estará contaminada para sempre", ou "e ficará na casa de seu pai pelo resto de seus dias" ou um simples "e não poderá mais ser dada em casamento a outro".
Mas nada disso, e nada nesse sentido, está escrito ou pode sequer ser derivado a partir de outras passagens. Peço encarecidamente a todos os leitores que encontrem qualquer determinação nesse sentido que a compartilhem aqui. Ficarei muito grata pois meu propósito não é desviar ninguém do correto cumprimento da Lei. Meu objetivo é esclarecer preceitos interpretados parcial ou erroneamente. E renovar, sob uma perspectiva histórica e modernizante, qual é o verdadeiro propósito do Criador ao nos legar as instruções (mitzvot) da Torah.
É necessário dizer que na cultura bíblica não existe a figura da "mulher independente". Na sociedade hebraica da Antiguidade toda mulher estava submetida a uma autoridade masculina. Sendo solteira, seu pai. Sendo casada, seu marido. Tanto que a palavra, e qualquer compromisso assumido, por uma mulher não vale nada até que seja chancelado pela autoridade a que está submetida. Vejamos:
Números 30:
2 Moisés falou aos chefes das tribos de Israel: «Assim ordena Javé: 3 Quando um homem fizer um voto a Javé ou se comprometer com alguma coisa sob juramento, não deverá faltar à palavra. Cumpra o que prometeu.
4 Quando uma mulher, ainda solteira e morando com o pai, fizer um voto ou se obrigar a uma promessa, 5 se o pai, conhecendo o voto ou a promessa que ela fez, nada lhe disser, então os votos dela são válidos e a promessa ficará de pé. 6 Contudo, se o pai, no dia em que tomou conhecimento, fez oposição à promessa, nenhum dos votos e promessas que ela fez serão válidos. Javé a dispensa, porque o pai dela desaprovou.
7 Se ela se casar comprometida pelo voto ou pela promessa que fez sem pensar, 8 e se o marido, ao tomar conhecimento, nada lhe disser no dia em que for informado, os votos e promessas que ela fez serão válidos. 9 Contudo, no dia em que o marido tomar conhecimento, se ele fizer oposição, o voto que ela fez ficará nulo, e a promessa que fez sem pensar não terá efeito. Javé os dispensará.
10 O voto de uma viúva ou repudiada e todas as promessas que fizer serão válidos.
11 Quando uma mulher faz um voto na casa do seu marido, ou se compromete com alguma coisa sob juramento, 12 se o marido, ao saber do fato, nada lhe diz e não lhe faz oposição, então os votos dela são válidos e a promessa que fez ficará de pé. 13 Contudo, se o marido, ao ser informado, os anula, então os votos e promessas dela ficam inválidos. Seu marido os desaprovou e Javé a dispensa.
14 O marido pode confirmar ou anular qualquer voto ou juramento de penitência feito pela sua mulher. 15 Contudo, se o marido nada lhe diz até o dia seguinte, então confirma todos os votos e promessas que a obrigam: ele os confirma com o silêncio que guardou ao ser informado. 16 Todavia, se foi informado e os anula mais tarde, ele próprio levará o peso da culpa de sua mulher».
Apenas o voto de uma mulher "desobrigada", viúva ou repudiada (divorciada), é válido sem a chancela de uma autoridade masculina. Daí podemos derivar que nenhuma mulher "solteira" (que ainda vive na casa paterna) é livre e dona de si. Enquanto solteira ela pertence a seu pai. Enquanto casada pertence a seu marido. E deve ser dito, que pela lei do levirato, caso ela não tenha dado ao menos um filho ao falecido marido, deverá se casar com o cunhado (Dt 25:5-10).
Portanto, pela perspectiva bíblica, o único jeito de uma mulher ganhar o que poderíamos chamar de liberdade e "autoridade sobre si e sua própria palavra" é submeter-se à determinação do casamento paterno, e posteriormente ver-se livre do marido e das obrigações que deve à família deste. Após isso o pai não poderá revendê-la uma segunda vez "usando de fraude para com ela" e seu futuro marido, repassando-a a um terceiro como se virgem fosse.
Essa passagem também diz, numa interpretação especular, que nenhuma moça solteira pode prometer a si mesma em casamento. Qualquer compromisso assumido por uma moça solteira deve ser aprovado por seu pai. Por isso ele não é obrigado a entregá-la em casamento mesmo que ela mesma entregue, por "amor", após ser "seduzida", sua virgindade ao parceiro de sua escolha. Biblicamente, a mulher não é dona de sua própria virgindade. Este bem, com valor em dinheiro, pertence ao seu pai. E caso ele veja avariado seu patrimônio, deve receber como indenização o "dote das virgens", mesmo que ele não permita que sua filha se case com quem a "seduziu" e "tirou sua virgindade".
Mas o leitor pode estar se perguntando o que toda essa análise tem a ver com o caso de Gulnaz. Ocorre que a Torah também tem Leis concernentes ao estupro. E que ecoam os preceitos da sharia adotada pelos muçulmanos. Leiam com seus próprios olhos:
Deuteronômio 22:
23 Se houver uma jovem prometida a um homem, e um outro tiver relações com ela na cidade, 24 vocês levarão os dois à porta da cidade e os apedrejarão até que morram: a jovem por não ter gritado por socorro na cidade, e o homem por ter violentado a mulher do seu próximo. Desse modo, você eliminará o mal do seu meio. 25 Contudo, se o homem encontrou a jovem no campo, a violentou e teve relações com ela, morrerá somente o homem que teve relações com ela; 26 não faça nada à jovem, porque ela não tem pecado que mereça a morte. É como o caso do homem que ataca seu próximo e o mata: 27 ele a encontrou no campo e a jovem pode ter gritado, mas não havia quem a socorresse.
28 Se um homem encontra uma jovem que não está prometida em casamento e a agarra e tem relações com ela e é pego em flagrante, 29 o homem que teve relações com ela dará ao pai da jovem cinqüenta moedas de prata, e ela ficará sendo sua mulher. Uma vez que a violentou, não poderá mandá-la embora durante toda a sua vida.
Nisso deve ser apontado um princípio muito claro: uma mulher casada ou noiva que é estuprada apenas se livra da condenação à morte por adultério caso ela tenha sido violada "no campo", fora dos muros da cidade; pois ela "pode ter gritado". Se a violação se deu na cidade, ela deve ser apedrejada até a morte como adúltera. O leitor moderno nisso lerá um absurdo insensato. E o é, em nossa sociedade moderna, cujas casas contam com algum nível de isolamento acústico. Não em vilarejos da Antiguidade, com tendas de pele e casas construídas com barro no método do pau-a-pique. O conceito de "privacidade" nasceu com o aburguesamento das interações sociais, e recintos domésticos, que só se deu no século XIX. Até então o conceito de "invasão de privacidade" inexistia pois a própria privacidade individual era inexistente. Caso uma mulher gritasse, toda a vila seguramente a ouviria.
Podemos nos perguntar pq a moça que se entregou voluntariamente em Dt 22:16 não é obrigada a contrair matrimônio enquanto a jovem violada em Dt 22:29 é obrigada a se casar com seu algoz. A diferença entre essas passagens é o "pego em flagrante", a exposição pública da violação, que desonra abertamente à mulher e à sua família diante de toda a comunidade. Após tal vexame nenhum outro homem se disporia a casar-se com ela e por isso quem "a violentou, não poderá mandá-la embora".
Por essa passagem é com pesar que devo reconhecer: para fins de estupro, os mandamentos bíblicos não diferem em nada da sharia. Se nossa sociedade ocidental fosse julgar o caso de Gulnaz por suas próprias leis religiosas, ela seria igualmente obrigada a desposar seu estuprador para "limpar sua honra". Isso estabelecido, torna necessária uma ampliação de nossa visão sobre "as leis do outros" e uma mudança de perspectiva sobre a forma como analisamos os textos que consideramos sagrados em nossa própria religião.
O profeta Muhammad (abençoado seja seu nome, e de todos os que pregaram contra a idolatria) bebeu na fonte da Torah para elaborar a religião muçulmana e sob muitos aspectos do direito feminino a sharia pode ser considerada "mais avançada" do que nas Leis de Moisés. Por exemplo, pela Lei mosaica as filhas não têm direito à herança paterna. Pelas leis corãnicas elas têm, uma porção menor que a dos irmãos homens, mas ainda são titulares de alguns direitos patrimoniais na casa de seu pai. Deve ser acrescido que detalhe fundamental na biografia do fundador do Islã é seu primeiro casamento com Khadija, mulher mais velha, viúva, rica, e dona de si. Seguramente este fator influenciou determinantemente, de forma positiva, a construção da imagem feminina na religião islâmica.
Na Torah há apenas um caso de jovem solteira estuprada: Dina, única filha de Jacó / Israel citada pelo nome, ou da qual se tem notícia. E é uma referência melancólica.
Gênesis 34:
1 Dina, filha de Lia e Jacó, saiu para ver as mulheres do país. 2 Siquém, o filho do heveu Hemor, príncipe do país, tendo-a visto, tomou-a, dormiu com ela e a violentou. 3 Contudo, sentiu-se atraído por Dina, filha de Jacó, apaixonou-se por ela e procurou cativá-la. 4 Então Siquém falou a seu pai Hemor: «Consegue-me essa jovem para ser minha mulher». 5 Jacó soube que Siquém tinha desonrado sua filha Dina; mas, como seus filhos estavam no campo com o rebanho, esperou em silêncio até que eles voltassem.
6 Hemor, pai de Siquém, foi falar com Jacó. 7 Quando os filhos de Jacó voltaram do campo e souberam da notícia, ficaram indignados e furiosos, pois era uma infâmia em Israel que Siquém tivesse dormido com a filha de Jacó, coisa que não se faz. 8 Hemor falou com eles: «Meu filho Siquém se apaixonou pela filha de vocês. Peço que vocês a dêem para ele como esposa. (...)
25 No terceiro dia, quando os homens estavam convalescendo, Simeão e Levi, filhos de Jacó e irmãos de Dina, tomaram cada um a sua espada, entraram sem oposição na cidade e mataram todos os homens. 26 Passaram a fio de espada Hemor e seu filho Siquém, tomaram Dina da casa de Siquém, e partiram. 27 Os filhos de Jacó atacaram os feridos e pilharam a cidade, porque haviam desonrado sua irmã. 28 E deles pegaram as ovelhas, bois e jumentos, tudo o que havia na cidade e no campo. 29 Roubaram-lhes todos os bens, todas as crianças, e pilharam o que havia nas casas.
30 Jacó disse a Simeão e Levi: «Vocês me arruinaram, tornando-me odioso para os cananeus e ferezeus que habitam o país. Somos poucos: se eles se reunirem e nos atacarem, me matarão e acabarão comigo e com minha família». 31 Mas eles responderam: «Por acaso nossa irmã pode ser tratada como uma prostituta?»
Essa é a última passagem que cita Dina. Ela simplesmente desaparece dos relatos bíblicos depois disso. Isso demonstra numa primeira análise o seguinte: não existe mulher judia sem honra. A mulher judia que é "desonrada" (ao perder sua virgindade, mesmo que por estupro) "some", "desaparece", "deixa de existir", torna-se "invisível".
Numa segunda leitura percebemos como essa passagem se liga a Dt 22:25. Em ambas as situações a jovem tinha "saído de casa" sem a tutela de seu guardião. E nisso a Torah desaconselha o livre "ir e vir" feminino. Hoje isso pode parecer absurdo. E é. Em nossa sociedade moderna. Porém mais uma vez devemos fugir ao anacronismo e analisar a Lei munidos da perspectiva histórica.
Hoje a mulher é vista como tão depositária de "direitos" e "dignidade" quanto os homens. Não no "Antigo Testamento", no qual as mulheres são pouco mais que escravas. Enquanto solteiras pertencem a seu pai; após casadas a seu marido.
Atualmente, caso um homem veja uma mulher solteira livremente andando por aí e deseje fazer sexo com ela, ele se sentirá socialmente obrigado a cortejá-la, a convencê-la “pela lábia” a aquiescer, por livre vontade. E só fará sexo com ela caso ela aceda positivamente às suas investidas. Há 3 mil anos os valores morais e a etiqueta dos relacionamentos eram muito diferentes. Caso um homem encontrasse uma mulher "dando sopa por aí", não teria escrúpulos em violá-la, tomá-la para si, subjugá-la usando de violência. Tanto quanto se ele visse uma cabra ou vaca, sem dono, "dando sopa por aí" não titubearia em dizer "achado não é roubado" e agregar o animal ao seu plantel. Embora isso seja claramente proibido. Por isso as mulheres eram resguardadas, mantidas em confinamento no ambiente doméstico, e ocultadas por véus ao se exporem publicamente.
Pergunta final: e o que a Torah tem a dizer sobre a mulher solteira que não vive mais na casa paterna nem é mais sustentada por ele, mas que se provém por meios próprios?
A resposta é cristalinamente simples: nada. Na perspectiva bíblica é impensável a existência de uma "mulher independente" que se sustenta e é dona de si. Porém, como a Torah é perfeita, podemos inferir princípios que limitam a interferência paterna na vida de suas filhas. Cada palavra da Lei foi milimetricamente calculada e posicionada, nenhum caractere está lá sem motivo, gratuitamente. De cada Lei devemos extrair não apenas o que está explicitado em letras negras, mas também o que não está escrito, o que é calado, nas partes em branco. A isso, o ler o negativo da Bíblia, chamo de análise especular, por espelho. Cada Lei que diz uma coisa também afirma uma série de outras coisas, sobre as quais se cala. E isso está expresso na conclusão da passagem sobre a chancela masculina aos compromissos assumidos por uma mulher:
Números 30:
17 São essas as ordens que Javé deu a Moisés para o marido e a mulher, e para o pai e a filha, quando esta ainda vive com seu pai.
A expressão-chave aí é: "quando esta ainda vive com seu pai". Caso uma moça solteira que não resida na casa paterna ainda devesse satisfações para seu genitor a parte "quando esta ainda vive com seu pai" simplesmente inexistiria e não haveria como eu afirmar que a Lei nada diz sobre mulheres que moram sozinhas. A Lei fala sobre elas (calando-se a seu respeito) ao especificar que apenas quem ainda está sob a tutela e sustento paterno permanece submetida a sua autoridade.
À guisa de conclusão: devemos analisar muito criteriosamente nossas próprias leis religiosas, que o Ocidente acatou com o sua base moral, antes de nos arrogarmos o direito de considerar "atrasadas" as leis "dos outros". A Lei Judaica é um manancial riquíssimo de significados que podem ser lidos de múltiplas formas, caleidoscópicas, e que muitas vezes dizem uma coisa esclarecendo outras. Muitas lições estão escondidas de forma quase subliminar.
Devemos ter muito cuidado e respeito ao manejar e interpretar a Lei. Tão errado quanto violar um preceito da Torah é, pretensiosamente, adicionar a ela mandamentos que não existem.
Dt 28: 14 Não se desvie para a direita nem para a esquerda, em tudo o que eu hoje lhes ordeno, indo atrás de outros deuses para servi-los.
Dt 4:
2 Não acrescentem nada ao que eu lhes ordeno, nem retirem coisa nenhuma. Observem os mandamentos de Javé seu Deus do modo como eu lhes ordeno.
Nina Simone - Ain't got no... I got life
Alanis Morissette - Princes Familiar
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Deus como Washington Olivetto
O "grande público" conhece Washington Olivetto a partir do mais divulgado episódio de sua biografia: seu seqüestro. Por sessenta dias Olivetto esteve trancado num cubículo sem janelas nem comunicação com o mundo exterior. Isolado, incomunicável, como que numa dimensão oculta. Envelopado como que num Universo paralelo, engolido por um buraco negro. Afastado de todo convívio humano, como um eremita, ermitão. Ou alguém "abduzido" por alienígenas.
Olivetto não foi libertado após pagamento de resgate nem através de investigações policiais. E é a maneira pela qual salvou-se que considero análoga à forma de como D' está para nós, e o "método" pelo qual se dá a comunicação (parcial) entre a esfera humana e a divina.
Enclausurado num cubículo, Olivetto utilizou-se dos únicos recursos à sua disposição: seus músculos e sua voz. Esmurrou as paredes para fazer barulho. Gritou. Implorou por ajuda na esperança de que, através das paredes, do outro lado do muro, houvesse alguém que o ouvisse, que o ajudasse.
Quantas vezes eu e vc, leitor, não ouvimos barulhos, vozes, e até gritos através das paredes, erigidas cada vez mais finas? E quantas vezes vc foi verificar se, por trás daquele barulho, havia alguém pedindo por ajuda? Eu, jamais. Em prol da "boa convivência com os vizinhos" e o "não se intrometer na vida alheia", embora cotidianamente eu ouça criaturas atrás das paredes, prefiro sempre crer que estes sons são oriundos de uma briga de casal, uma criança birrenta fazendo escândalo, ou alguém arrastando móveis.
Apenas imagino a aflição de OIlivetto ao pensar que, através da parede, seus apelos poderiam estar sendo motivo de reclamação entre os vizinhos, incomodados com os ruídos indistintos e abafados. Imagino-o em suas centenas de tentativas desperadas. Seus punhos doloridos de bater infrutiferamente na parede, dia após dia. Sua garganta rouca, gasta de tanto gritar. Por 60 dias, obstinadamente, ele não desistiu de lutar por sua vida e dar seu melhor no pouco que estava a seu alcance. Tentando não enlouquecer e manter a esperança.

Intrigada com os barulhos que vinham do cômodo na casa contígua, Aline Dota colocou seu estetoscópio contra a parede. E ouviu o apelo desesperado da vítima no cativeiro "Estou preso aqui há 60 dias. Chame a polícia e as rádios. Pode dizer que sou o publicitário Washington Olivetto". Ato contínuo, ela chamou a polícia.
Sua vida estava salva. Através da comunicação entre incomunicáveis, possibilitada pelo instrumento médico providencialmente colocado nas mãos de uma vizinha preocupada o suficiente com o bem-estar alheio para se questionar se aqueles barulhos não eram os de alguém necessitando ajuda. E que teve a iniciativa de fazer alguma coisa a respeito. Coincidência?
Sinceramente, qual é chance de, do outro lado da parede de um cativeiro de um sequestrado, haver alguém na posse de um estetoscópio? E que, além disso, teria a genial sacada de perveter seu uso primário, e ressemantizando a função do estetoscópio, usá-lo para ouvir através das paredes? Creio que seja uma possibilidade estatisticamente muito baixa.
Esta analogia, da comunicação entre incomunicáveis, em planos distintos, através de sinais aparentemente incompreensíveis, que creio que desenhe uma imagem que ilustra como D' se comunica (ou não) conosco. D' não habita nosso plano, nem poderia. Nenhum aspecto essencial de D' está "a descoberto", exposto, visível. Podem ser citados os seguintes princípios bíblicos como demonstração: não podemos ver a face de Deus, pronunciar seu nome, conhecer sua essência, sondar seus desígnios. Apenas ouvir sua voz.
Claro que D' não está preso. Quem está preso, à matéria, somos nós. Utilizando essa imagem do cativeiro de Washington Olivetto, creio que D' está para nós assim como Olivetto estava para a estudante de medicina. Tentando, o máximo possível, se comunicar, esperando que do outro lado da parede alguém o ouvisse. D' está batendo, fazendo barulhos, tentado estabelecer uma relação conosco. A maioria de nós, absorta na corriqueira banalidade do cotidiano, não está nem aí para os barulhos, a princípio indecifráveis, que escuta.
Porém um ou outro está de posse de seu estetoscópio simbólico, que é o uso da razão, aliada à fé, e presta atenção aos sussurros. A partir disso, do se utilizar a razão como instrumento para o engrandecimento de nosso conhecimento de D', podemos passar a ouvi-lo, baixinho, abafado, reverberando através duma barreira instransponível, que não podemos derrubar nem vencer. Não podemos ver sua face, saber muito sobre o que existe "do outro lado", nem tocá-lo. Mas é possível estabelecer algum tipo de comunicação com Ele. É possível ouvi-lo.
D' está batendo. Pode ser à sua porta, do outro lado da parede, ou sussurando baixinho no seu coração.
Talvez esteja na hora de vc parar, apurar seus ouvidos, focar sua lente, e prestar atenção. Não precisa de estetoscópio, basta humildade, boa vontade e o desejo sincero de evoluir, de aprender. Quando vc parar para prestar atenção nas mensagens ocultas que D' nos envia, todos os dias, seguramente vc passará a compreender melhor não só a D' como a si e a sua missão nesse plano terreno.
Knock, knock. Neo.
Sequestro de Olivetto, por Marcos Dvoskin e Paulo Moreira Leite, 11/02/02
Ressurreição espiritual
sábado, 10 de setembro de 2011
O Onze de Setembro de 2001
Por estarmos tão perto, atados ao dia-a-dia, não vemos a curva, a parábola que descreve a longa duração, e menos ainda os picos e quedas das conjunturas. Vemos apenas os pequenos pontinhos dos acontecimentos, sem perceber que se nos afastarmos alguns passos veremos que estes pontinhos das efemérides descrevem zigue-zagues de conjunturas. E se andarmos muitos mais passos atrás, veremos, talvez, a longa curva descrita pelas conjunturas e na qual os acontecimentos individuais, embora integrantes, perdem sua definição detalhada diante do “esquema geral”.
Escrevo isso justamente para estabelecer que nós, testemunhas oculares da História, gostamos de dar maior relevo aos acontecimentos que nos são contemporâneos do que eles realmente merecem.
Após o 11 de setembro, muitos foram os alarmistas e até “profetas do Apocalipse” que viram neste fato algo parecido com os grandes eventos históricos secularmente sedimentados, que alteraram determinante os rumos da História. A respeito disso, lembro-me de uma cena curiosa passada no ano de 2003.
Eu estava cursando História, e fazendo Iniciação Científica com o Professor Doutor István Jancsó. Professor Titular da USP, diretor do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros “Sérgio Buarque de Hollanda”, apesar de húngaro, István era um brasilianista e intelectual muito respeitado e requisitado pela imprensa para entrevistas.
Nesta feita, estávamos em sua sala pessoal no Departamento de História (sala que não mais existe, foi desfeita numa reforma) quando o telefone tocou. Por nosso orientador, todos nós do grupo de Iniciação (que em sua máxima extensão abarcou, além de mim a André Nicacio Lima, “Godinho ou Gêngis”, Mainá Pereira Prada Rodrigues, “Mainas”, Andréa Paula Placitte, “Dea”, Bruno Fabris Estefanes, “Garfield”, Maria Inês Panzoldo de Carvalho, Júlia Relva Basso e Henrique Palazzo) tínhamos alta deferência, e lhe facilitávamos a vida nas pequenas coisas que podíamos, como ir buscar um café, uma xerox e atender ao telefone. Neste dia o atendi durante uma reunião com o professor. Do outro lado disseram:
- Boa tarde, aqui é da [revista] Caros Amigos. Gostaríamos de entrevistar o doutor István para uma matéria. Ele está disponível?
Passei o telefone para ele, e ficamos observando sua conversa ao telefone. Após a secretária transferir a ligação para o jornalista, István abiu seu típico sorriso e falou eu seu característico sotaque que nada tinha de húngaro, e muito da indolência baiana:
- Oi, meu amigo! Pode falar!... Hum... Não, não, de jeito nenhum! Vocês jornalistas... Ah, você conhece a história daquele menino que ficava avisando toda hora que tinha um lobo à espreita? Pois é... Não, ainda não, você ainda não pode escrever isso. Faz o seguinte, passa amanhã no IEB e a gente conversa melhor. Te espero então. Tchau.
Desligou enquanto dava um sorriso búdico. Balançou complacentemente a cabeça numa expressão negativa dum avô cheio de doçura que vê o netinho fazer uma traquinagem. Soltou uma risada solta, calma e pausada, Levantou seu indicador no ar, como lhe era tão típico ao ter um ponto que pretendia explicar. Seguiu-se a pausa dramática que todos conhecíamos e amávamos enquanto ele articulava a primeira sílaba vocal de seu pensamento abstrato, talvez em húngaro. Nos disse:
- Esses jornalistas, sempre tão desesperados, alarmistas, quase histéricos... rsrsrs. Sabem o que ele me perguntou? Se podia escrever em sua matéria que os Atentados de 11 de setembro são o fato que porá fim à História Contemporânea e iniciará uma nova era... rsrsrs... Ele estava querendo decretar o pentapartismo, e não mais o quadripartismo histórico... rsrsrs... Amanhã vou mandar ele ler “Filipe II” de Fernand Braudel e tentar lhe explicar a diferença entre estrutura, conjuntura e acontecimentos...
O jornalista, que embora escrevesse na respeitadíssima Caros Amigos, não tinha a menor idéia do que é História para achar que podia, 2 anos depois, dizer que os ataques perpetrados pela Al Quaeda eram tão importantes quanto a Invenção da Escrita (circa 4000 a.C.), a Queda de Roma (476 d.C.), a Queda de Constantinopla (1453) e a Revolução Francesa (1789). Citei estes fatos pois estes foram estabelecidos como as marcas que separam as 4 divisões do quadripartismo histórico nas seguintes eras: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Esta última iniciada pela Revolução Francesa e que, dizem os historiadores, continua em nossos dias, e queria o jornalista decretar encerrada. Risos para sua pretensão.
Hoje, véspera de completarem-se 10 anos dos piores atentados terroristas da história, pelo menos dos Estados Unidos, ainda é grande a leva dos alarmistas e profetas do Apocalipse. E como historiadora, tentando dar alguns passos atrás para divisar melhor a “imagem geral” desenhada pelos acontecimentos, é fácil compreender o porquê disso, pó-lo em perspectiva, e até “justificar” essa postura.
Como cada um de nós acha que o próprio umbigo é o centro em torno do qual o mundo gira, nos considerados testemunhas privilegiadas da História, e destinados e testemunhar acontecimento mais importantes que todos os que se desenrolaram antes de nós. O que não vemos perde importância. O que testemunhamos, já que nós somos tão importantes, tem que ser igualmente um fato chave, que alterará a História do Mundo, tanto quanto, achamos, nossa própria existência o fará. O nome disso é “Síndrome de Messias”, algo que o Cristianismo implementou profundamente em nossas estruturas psicológicas da longa-duração. Desde que Jesus morreu sucederam-se pelo menos 80 gerações. E cada uma delas teve certeza de ser a última, aquela que testemunharia as convulsões apocalípticas do “Juízo Final”. Eu, que vivi a virada do segundo para o terceiro milênio, a pretensa passagem para a “era de Aquário”, testemunhei o messianismo de meus contemporâneos e sua expectativa de que o mundo acabasse em 2000, depois em 2001 no “Bug do Milênio”, e agora se aguarda ansiosamente pelo 2012 profetizado pelos maias. Risos para nossa pretensão.
Como não há como eu mesma projetar-me fora da curva, pois minha consciência individual é apenas uma lanterninha fraca que ilumina muito pouco, para encerrar este texto redigirei meu próprio testemunho pessoal de como os atentados às Torres Gêmeas do World Trade Center me impactaram pessoalmente. No futuro, creio que todos serão perguntados “Onde você estava quando aconteceram os atentados do Bin Laden?”. E todos, seguramente, se lembrarão vividamente de sua experiência pessoal. A minha segue abaixo.
Eu tinha 18 anos. O fuso horário oficial de Brasília conta uma hora a menos que em Nova York. Era manhã e eu estava assistindo a aula no cursinho pré-vestibular. Um dia muito comum. No horário do intervalo, lá pelas 9 e meia, quando o primeiro avião atingiu a primeira torre, os atendentes da cantina nos disseram que um avião havia batido contra “um prédio alto” em Nova Iorque. A princípio, claro, todos achamos que teria sido um acidente. E nesse nível foram os comentários durante as aulas que faltavam até o meio-dia. Terminado o turno escolar, corri para casa e liguei na CNN.
Eu vi o fim do mundo.
Eu vi o Inominável. Eu vi o Horror, o Horror.
Ao vivo, live, diante de meus olhos, eu vi o começo da tão temida Terceira Guerra Mundial. Eu vi ruírem todos os esforços diplomáticos da segunda metade do século XX.
Chocante. Inesperado. Só quem acompanhou em real time os acontecimentos deste dia pode dimensionar o impacto psicológico dos atentados. E como o “imponderável” conspirou a favor de nossos maiores medos. Quem só sabe deste fato bem sedimentado pelos anos não carregará, felizmente, o trauma do desastre em cada ínfimo e escabroso detalhe. Não carregará em sua memória centenas de horas de jornalismo mostrando as pessoas assando nos prédios ainda em pé. Sacudindo panos nas janelas. Se espatifando, às dezenas, em torno do prédio.
E, muito pior, as cenas, minuto a minuto, dos prédios ruindo, um após o outro. A poeira tomando Manhattan, cobrindo os engravatados, os ricos e poderosos, aqueles que regem o mundo a partir de Wall Street. Milhares de nova-iorquinos peregrinando à pé pela ilha, chocados, machucados, respirando ar contaminado, indo, mas sem saber para onde.
Quem souber dos atentados de 2001 apenas por ler ou “ouvir dizer” seguramente perderá a dimensão de um detalhe que não escapou às testemunhas contemporâneas: absolutamente ninguém considerava possível que os prédios ruíssem. Esse “absolutamente” é, de fato, absoluto. Por isso supracitei o termo “imponderável”. O objetivo calculado por bin Laden era apenas “ferir” às torres gêmeas. Símbolos do Comércio Mundial, os mais altos prédios da Capital do Mundo Ocidental, tal qual Roma foi um dia, pareciam tão sólidos quanto a economia capitalista neo-liberal. Nada, nem bombas nem aviões pareciam capazes de as derrubar. Destruir as torres não era o intento da Al Quaeda. Sequer os terroristas foram capazes de dimensionar as conseqüências e a severidade de seus atentados.
Tanto ninguém achava que qualquer das torres pudesse ruir que parte dos mortos não estava nas torres quando os aviões as atingiram: são bombeiros e socorristas que acorreram ao Ground Zero para ajudar às vítimas. Subiram pelos prédios sem considerar o “imponderável”. Mas este sobreveio e a segunda torre a ser atingida foi a primeira a ruir, sepultando centenas de bombeiros heróicos do NYFD – New York Fire Department.
Muito mais impressionante que o fato de dois aviões de passageiros terem sido lançados contra o símbolo máximo do capitalismo yankee foi o colapso posterior das torres. Isto desnudou a fragilidade do sistema que considerávamos pétreo. O colapso demonstrou que as estruturas do Capitalismo, que achávamos sólidas e à prova de tudo, eram muito mais frágeis do que nossos medos antecipavam, e que poderiam ir facilmente ao chão. Não sob o ataque de um elefante, mas pela picada de um mosquito que ninguém achava tão virulento.
Nunca tínhamos ouvido falar de Osama bin Laden ou da al Quaeda. Descobrimos que muito mais perigosos são os inimigos que desconhecemos, ou que não levamos em consideração.
Não testemunhei aos “Treze dias que abalaram o mundo” na crise dos mísseis de 1962, mas teleassisti ao dia que sacudiu o mundo, como eu o conhecia. Vi a Grande Potência que emergiu da Guerra Fria e unipolarizou o mundo após 1991 colocada de joelhos, agora não pela vizinha Cuba e pelo Comunismo, mas por um grupo terrorista sediado no longínquo e (até então) facilmente esquecível Afeganistão e pelo fundamentalismo religioso islâmico. E este novo inimigo é muito mais difícil de combater que “os vermelhos”.
Durante a Guerra Fria assistimos à disputa de dois Estados, legítimos, governos constituídos, signatários de convenções internacionais, que se sentavam em mesas para negociar, que atendiam ao telefone. Inimigos equivalentes com os quais se podia dialogar. Liderados por chefes de Estado responsáveis, que não desejavam levar o mundo a um holocausto nuclear, que seria a Terceira Guerra Mundial entre EUA e URSS, que pareceu tão próxima entre as décadas de 1960 e 1970...
Essa “guerra tradicional” entre elefantes poderosos estatais não mais existe. Nossa guerra do século XXI é assimétrica, de guerrilha, do tipo que os americanos sempre perderam, dede o Vietnã. Não há comparação entre os “atentados de 11 de setembro” e a batalha de Waterloo, por exemplo. Nem Osama bin Laden nem George W, Bush chegam a poucos centímertos da estatura de Napoleão Bonaparte nem do duque de Welington.
Os atentados de 11 de setembro não foram levados a cabo pelo governo do estado do Afeganistão contra o governo dos Estados Unidos da América. Os atentados são responsabilidade de uma (múltiplos risos) ONG – Organização não-Governamental. “Organizada” em células terroristas. Com as quais não há negociação. Que não assina nem respeita ratados. Que talvez até tencione acelerar o “apocalipse”, ansiando pela chegada de seu próprio messias, o Mahdi.
Só para arrematar, quem em 2001 dissesse que hoje o presidente americano teria por nome do meio um “Hussein” igual ao de Saddam e por sobrenome um “Obama” tão parecido com o prenome de Osama, e que ainda por cima seria negro e havaiano, seguramente seria considerado completamente louco e fora de si. Talvez tanto quanto consideramos desprovidos de razão aqueles que viram no 11 de setembro de 2001 um fato histórico digno de iniciar uma nova era.
Apenas a longa duração poderá dizer quem é o louco e quem é o lúcido. Vamos aguardar.
π (pi/1998)
Nós que aqui estamos por vós esperamos