Mostrando postagens com marcador SP. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador SP. Mostrar todas as postagens

sábado, 5 de fevereiro de 2011

De meu biso e minha Nonna – imigrante e oriundi

Os noticiários locais brasileiros freqüentemente divulgam reportagens sobre estrangeiros que imigram para o Brasil e sua condição social. Não somente o Brasil mas todo o continente americano foi determinantemente colonizado por estrangeiros, dos 3 continente que compõem o Velho Mundo: Europa, Ásia e África.

É inegável a contribuição não só genética como cultural que os latino-americanos devem reputar a seus antepassados indígenas. No Brasil, especialmente, algo da indolência latente típica aos brasileiros remonta aos nossos avós autóctones. Certa vez um aluno me perguntou, claro que não nesses termos, mas nesse sentido: “Quando vemos aos demais povos latino-americanos, são expressas suas feições indígenas. Mas, e no Brasil, o que aconteceu com os índios brasileiros?”

Para além do genocídio, intencional pela guerra ou acidental pelas doenças, os índios brasileiros, mais que dizimados foram absorvidos. Portanto, respondi-lhe: “Os índios brasileiros somos nós. Embora não tenhamos olhos tão puxados, todos nós aqui nessa sala de aula seguramente temos sangue indígena.” O aluno, sabendo-se multi-mestiço, até deu um sorriso com minha resposta e talvez tenha depois reconhecido em seus olhos amendoados algo se seu sangue tupi.

Freqüentemente muitos não entendem pq a identidade nacional brasileira é mais difícil de ser compreendida, e muito crêem que no Brasil o patriotismo não existe no mesmo grau que na França, na Espanha, ou na Inglaterra. De fato. A identidade francesa, inglesa e espanhola remete-se não só a “nações” mais antigas, como tb mais uniformes, forjadas no sangue de uma Revolução Burguesa. Que poderia ser expressa pelo termo “etnia”. Um certo reconhecimento de que descendemos de um grupo que lutou e derramou seu sangue para garantir-nos nossas liberdades “democráticas”. O que não ocorreu no Brasil; que nunca passou por nenhuma Revolução verdadeira, popular. Isso, infelizmente, ainda sói fazer.

É muito mais fácil reconhecer um francês, espanhol ou inglês pelo seu fenótipo do que um brasileiro. Brasileiros podem ter qquer aparência exterior, de qquer etnia, pois o Brasil recebeu imigrantes dos 4 cantos do mundo. Por isso nosso passaporte é muito falsificado. Em “The Bourne Identity” grita o passaporte brasileiro de João do Carmo, assinado por Gilberto do Piento, só para ilustrar.

Creio que a única “etnia” reconhecível como exclusivamente brasileira refere-se ao que alguns chamariam pejorativamente como “nordestinos”. Os nordestinos são os únicos brasileiros que, pelo seu fenótipo, são imediatamente reconhecíveis como brasileiros. Pelo diâmetro ampliado do crânio, pela “cabeça chata”, pelo tronco reto, pela estatura baixa, pela pele morena, cabelo enrolado e feições mestiças de branco, índio e negro. Tenho eu também sangue nordestino via meu avô materno. Também meu amado avô era um reconhecível “nordestino” étnico, ainda que branco. Não havia boné que lhe coubesse.

Tenho eu portanto esse sangue etnicamente exclusivamente brasileiro, e dele tenho orgulho, pois quem mo legou foi um homem honrado. Porém minha identidade americana vai muito mais além. Sou também fruto da imigração. Pela via paterna sei que tenho sangue espanhol. Pela via materna sei que tenho sangue português e italiano.

Fizessem meu perfil genético, ao analisar meu DNA mitocondrial, diagnosticar-me-iam como oriundi. A mãe da mãe da mãe de minha ex-mãe era a signora Maria Bianchetti, italiana, que emigrou para o Brasil. Desta linhagem herdei meus seios fartos, minhas emoções passionais, meu gosto pelo drama e meu gesticular incontrolável, pois italianos, para além de com a boca, falam com as mãos. Minha trisavó oriundi Maria Bianchetti casou-se com o também italiano Geronimo Pilon originando minha nonna já brasileira Giselda Pilon, que casou-se com o português Agostinho José Alves, espírita kardecista, filho de Maria Cândida Gonçalves de Vila Pouca de Aguiar em Trás-os-Montes (Portugal), e originou minha avó já muito citada Shirleÿ Pilon Alves quando solteira, vulga “Tula”, que casou-se com meu avô mui citado, o nordestino Vicente Novais da Silva, originando Regina, que me pariu.

Posso pois traçar minha linhagem até a quinta geração, remontando-a à Itália, a Portugal e ao Ceará. Sei que tenho direito à cidadania européia por minha avó Tula, ainda viva, ser filha do já falecido português Agostinho José Alves. De minha linhagem portuguesa também tenho a única informação sobre os possíveis genes defeituosos que carrego pois o pai de meu bisavô Agostinho, Dom Augusto José Alves, era surdo. Para além dele, nunca tive notícia de nenhum parente ou antepassado portador de nenhuma deficiência. O que é até atípico.

Reconhecer ser descendente de imigrantes estrangeiros traz subjacente uma confissão de pobreza ancestral. Pessoas migram por motivos de opressão: religiosa, política, étnica ou econômica. Por este motivo final emigraram meus antepassados, e para o Brasil vieram iludidos talvez pelo sonho de “fazer a América” e aqui enriquecer.

Minha Nonna Giselda foi uma mulher cuja história é admirável e merece registro. Se eu não o fizer ninguém mais o fará e sua memória cairá no esquecimento. Portanto, para honrar à vovó, eternizo aqui, mais do que em tinta preta sobre papel, em pixels e bytes, que a traça não rói e o ladrão não rouba.

Minha Nonna foi registrada apenas aos 5 anos de idade, disseram-me pq precisava do papel para ingressar na escola, que freqüentou apenas 2 anos, para se alfabetizar. Portanto, ao morrer seu registro em papel marcava 5 anos a menos que seus 99 anos e 10 meses. Quase completou um século. Não, não viu o cometa Halley 2 vezes, pois na década de 1980 ele foi indivizável. E quando criança, tb não o viu. Contou que sua mãe, ao avistar o cometa mandou-a esconder-se no armário, por estar certa de que o cometa vinha para anunciar o Fim dos Tempos e o Juízo Final.

Consta igualmente que minha bisavó, paulistana como eu, quando criança fugiu com a família de uma fazenda de café em Serra Negra pois os capatazes dos cafeicultores queriam dispensar aos italianos o mesmo trato dado aos negros escravos. Chocados com tal selvageria, os Pilon fugiram de madrugada, com a roupa do corpo, para Rio Claro, onde o tecelão Geronimo conseguiu trabalho na fábrica da família dos também oriundi Matarazzo.

Foi tb trabalhando para os Matarazzo que minha bisavó ficou “meio surda” ainda criança, já de volta a São Paulo, capital. Fiquei sabendo disso com muita surpresa. Certa vez, assistindo com minha Nonna à televisão, ela pediu-me para subir o volume do áudio. Subi e comentei que era normal, dada sua avançada idade, ela ter problemas de audição. Ela sorriu. Eu não entendi. Ela explicou que sua surdez não era devida à idade. Contou-me então que percebera-se “meio surda” já aos 12 anos, pois trabalhava já há muito tempo entre as máquinas de tecelagem dos Matarazzo, muito antes de alguém pensar em “Leis Trabalhistas”.

Minha nonna era uma mulher de muita coragem, como eu. Ela casou-se com um rapaz 7 anos mais jovem. O que hoje é comum e então era anátema. Soube que quando ela era moça, na então “idade de casar” (creio que entre os 15 e 21 anos), foi noiva de um rapaz que, descobriu, a traía. Ora, comum era às mulheres dos 1930 engolirem caladas seu orgulho e agarrar-se à primeira oportunidade de se casar. Não a quem carregava os mesmos genes que me animam. Minha bisa mocinha rompeu orgulhosamente seu noivado. Solteira, viu os anos se passarem.

Aos 31 anos, já segura de que seu destino era “ficar para titia” conheceu um rapaz mais jovem. Meu biso Agostinho tinha então 24 anos e alguns “problemas com a Justiça”. Não era bandido, mas manifestava os genes da insubordinação, tal qual eu. Estava envolvido em questões sindicais, Anarquismo e greves operárias. Por ser estrangeiro, sabia que o governo já estava a adiantar os papéis para sua extradição como persona non grata, de volta para Portugal.

Imagino que tenham-se apaixonado. E que tenha sido algo escandaloso, em 1937, uma “solteirona” oriundi casar-se com um tipo português meio suspeito, envolvido com “arruaças” e, acima de tudo, mais jovem! Não tivesse minha nonna coragem de enfrentar as fofocas da vizinhança, não estaria eu aqui para o narrar. ;) Casaram-se em janeiro de 1937. Meu biso foi com sua certidão de casamento dar entrada nos papéis de sua naturalização e permanência no Brasil.

A burocracia disse-lhe que casar-se com uma brasileira não era suficiente para certificá-lo de sua estadia. Enquanto não tivesse ele, tal qual futuramente Ronald Biggs, um filho nascido no Brasil, não poderia estar seguro de não ser extraditado.

Creio que a situação de meu bisavô fosse frágil pois ele não pôde esperar que sua esposa engravidasse. Creio que nisto confesso um crime, mas já prescrito, e cometido por dois já falecidos. Meu biso então fez um falso registro em cartório. No dia 13 de fevereiro de 1937 registrou, menos de um mês após casado, o nascimento de uma filha deste matrimônio: Shirleÿ Pilon Alves, pois eram os tempos áureos da menina-prodígio Shirley Temple. Este registro foi de um bebê fantasma, inexistente. Mas da posse de sua certidão de casamento e do nascimento de uma filha-fantasma, o português Agostinho obteve sua permanência no Brasil.

Meses depois perceberam que minha Nonna estava grávida. Nascesse menino, fariam um novo registro. Nascesse menina, ficaria com o registro já feito, em fevereiro. Nasceu menina, e minha avó. É por conta disso que, embora 99,999% das pessoas que são registradas em data errada o são em data posterior, minha avó é um caso único de alguém que em seu registro é 9 meses mais velha do que de fato é, pois foi registrada em cartório quando ainda não existia.

Não tive tempo de explicá-lo aos para-médicos que, ao meu chamado, a socorreram em 2009. Na ambulância, pediram que eu lhes entregasse um documento dela.

Com ele em mãos, perguntaram-lhe:

- Qual é o nome da senhora?

Confusa, mas ainda lúcida, disse:

- Shirley Alves da Silva.

- E quando é o seu aniversário?

- Primeiro de novembro.

O bombeiro leu no registro 13 de fevereiro e concluiu que ela não estava tão lúcida assim.

Acudi em esclarecer, sem tempo para explicar:

- Seu bombeiro, ela falou a data certa, a data do documento é que é a errada.

Minha avó nasceu santista, filha de estivador líder sindical e de uma dona de casa. Como durante a II Guerra Mundial rarearam os navios cargueiros no porto de Santos, a família realocou-se na Vila Formosa, São Paulo, Capital, onde sua filha mais velha, minha avó, casou-se já aos 18 anos com seu vizinho de muro, meu avô Vicente, nordestino. Em São Paulo capital meu biso Agostinho assumiu a profissão de motorneiro, que eu própria desconhecia e que Tula explicou-me referir-se aos "motoristas e cobradores do bonde elétrico".

Não tivesse ocorrido a II Guerra Mundial talvez nunca Tula e Vicente teriam se conhecido e o amálgama que resultou em mim nunca teria-se realizado. Nunca saberemos do que não se passou, pois a II Guerra veio e Shirleÿ, já com 15 anos, noivou com seu vizinho Vicente. Muita falta de imaginação noivar aos 15 anos com seu vizinho de porta. Já o disse à Tula. Longe de criticá-la, pois meu avô sempre foi um homem que honrou a sua esposa e à sua família. Alguém que merece verdadeiramente por sua estatura moral ser reputado como patriarca de uma beit’av, tal qual Abraão.

Seu sogro, meu biso português Agostinho, faleceu quando eu era nova demais para plasmar lembranças. Convivi com sua viúva, minha Nonna já octogenária durante a infância e dela guardo ternas memórias. Mulher digna, teimosa, ranzinza, discreta, mas sempre carinhosa com sua descendência. Mais calava do que dizia. Criava por estimação um pássaro preto (não me refiro à cor, mas esta é a designação de uma espécie) e uma tartaruga, presente de sua neta Viviani Alves da Cruz, mãe de Ivana Gabriela, Amanda e Sofia. Além de minha avó Tula, minha Nonna Giselda teve outros dois filhos, Waldomiro Pilon Alves “Leco”, casado com Clara Reiter, (pais de Viviani, Vânia e Alexandre) e Agostinho José Alves Filho “Chanchan”, casado com Áurea Massuella (pais de André, Andréia e Adriana).

Pois é, tal qual os mafiosos napolitanos da Cosa Nostra, meus antepassados e colaterais oriundi nascidos antes dos 1950 têm, ainda hoje, epítetos/alcunhas/apelidos familiares indissociáveis. Urge também registrar que o nome de minha prima carioca Gisele Rani Martins da Silva é uma homenagem à bisa que ela pouco conheceu, Giselda; da parte de meu tio Renê, que como eu anima genes nordestinos, ibéricos e romanos; e creio que procure honrar aos que o antecederam.

Tiveram ambos, meu biso Agostinho e minha Nonna Giselda vidas memoráveis, que merecem registro. Português e Oriundi, contribuíram, com seu trabalho, filhos, netos e bisnetos para a construção da Mérica, mérica, mérica... Não creio que seu sonho tenha sido frustrado. Sinto-me orgulhosa de ser brasileira miscigenada, nordestina, lusitana, oriundi. E espero honrar a meus antepassados e toda a Speranza que depositaram no futuro. Que sou eu.

E, para além de mim, também são fruto deste sonho todos os meus tios e primos em segundo, terceiro e infindáveis graus. Só o fato de existirmos já testemunha algo do sucesso de nossos antepassados e de como a terra brasílica lhes foi propícia.

domingo, 9 de janeiro de 2011

De deus. Ou de Chico Buarque

Não que eu pretenda dar upload em todos os meus pensamentos, como o título do meu blog possa sugerir ao visitante desavisado. E tampouco esta postagem refere-se a qualquer assunto teológico, como visitantes já avisados poderiam supor.

Contumazmente elejo assuntos sobre os quais pretendo, algum dia, futuramente, redigir algum tipo de postagem. Como é típico à disposição psicológica brasílica, estes intentos são sempre reiteradamente, redundantemente, para mais que protelados, deixados para um depois que quase nunca desnuda-se numa esquina futura.

Mas às vezes sinto-me como intimada pelas pequenas coincidências que nos obrigam, de forma plenamente humana, a tentar procurar algum tipo de propósito, mesmo que arbitrário entre quaisquer dois ou dez eventos variados, pinçados a esmo da nossa particularíssima, mas cremos telúrica, biografia.

Toda pessoa meio que mais ou menos desperta para a vida deveria ser uma grande interessada por linguagens, para além da sua própria, pois pensamentos, rimas, métricas e até certo tempero apenas podem ser conferidos por um termo exato, ainda que estrangeiro, ou apenas por ser estrangeiro. E as palavras são a matéria-prima de nosso próprio pensamento, de nossa forma de expressão pessoal. E às vezes as diferentes línguas têm palavras específicas, que não possuem correspondentes em outros idiomas.

Em português o caso público mais clássico e banal é o da lusitana “saudade”. Não que estrangeiros não a sintam, mas talvez sua saudade não seja tão profunda a ponto de merecer um substantivo específico, como lá em Trás-os-Montes. A comparação mais handful é com o inglês. Quantas vezes não vemos nos filmes cenas ao som de “I missed you” traduzidas pelas legendas “Eu estou com saudades de vc” ou “Senti sua falta”. Certo, num reencontro este sentimento é inequívoco.

Mas em português o termo saudade ou a falta de alguém distante não têm nada de correlato a outros usos para “miss” como: “I almost missed my flight”, ou “My cell phone is missing”, ou mesmo: “I won the contest of miss Alabama.” Que o vocabulário e a própria expressão em língua inglesa são inequivocamente mais pobres e fáceis de dominar que o português é óbvio urrante. Não que os anglófonos não sintam saudade, mas talvez esse seja um elemento menos definidor de sua índole, se comparada aos melancólicos lusitanos, que criaram assim uma palavra repetida, enrolada e quase eterna, tão bela para ser cantada e tão sonora na voz de Amália Rodrigues.

Escrevo isso pq, como hoje é domingo, acordei, e ao contrário de lançar-me a um longo acorda-não-acorda, pulei da cama pois precisava dar uma saída. A manhã de domingo arranca-me assim que acordo da cama pois para mim domingo é sinônimo de uma coisa deliciosa: o jornal de domingo, em especial o “Caderno Mais” da Folha de SP, recentemente reformulado com o nome “Ilustríssima”. Tão tradicional é este suplemento dominical que até seu principal concorrente, o Estado de SP “ Estadão”, desistiu do combate direto de intelligentsia no domingo e, conformado, lançou seu “Sabático” aos sábados. Pulei da cama pois no domingo passado, no qual haveria a cobertura da posse de Dilma Roussef, quando cheguei na banca, não só não havia mais exemplares da Folha, como já acontecera, como até o Estado já se esgotara.

Foi através do então caderno Mais que descobri, aos 17 anos que, para além das coisas imediatas de meu universo sensível, haviam multiversos de conhecimento a ser descobertos ou mesmo desvendados. Descobri que as minhas respostas certas não eram tão óbvias assim, que o mundo era muito maior, multidimensional, para além da paisagem quase plana que até mesmo eu, que pensava tanto de mim era capaz então de ver e arquitetar.

O Caderno de hoje traz o texto “Na ponta da língua. O idioma dá forma ao pensamento?” de Guy Detscher, que analisa a influência da língua materna na própria conformação psíquica das estruturas do pensamento individual. Analisa línguas em que há masculinos e femininos para objetos inanimados e como isso influencia a própria concepção que estas pessoas têm desses conceitos, a depender do “sexo” arbitrário que lhes atribuem, citando "The awfful german language" de Mark Twain. Apresenta análises e comparações de “idiomas geográficos” incutidores de uma concepção toda diferente da localização espacial de todas as coisas, memórias e expressões. Assinala que assim duas pessoas falantes de línguas distintas se lembrarão de forma completamente diferente da mesma realidade, pois seus falantes submetem todos os seus parâmetros ora a algo absoluto, cardeal, ora a um parâmetro auto-centrado, particular.

E ainda aprendi, além deste novo conceito, uma nova palavra em alemão, e sei como soa bonito usar, numa roda da intelligentsia, um ou outro termo bem sonoro em alemão: Schadenfreude (alegrar-se com o infortúnio alheio). Não que os brasileiros ou portugueses não sintam inveja, muitas vezes perversa, mas talvez esse não seja um elemento definidor de sua índole a ponto de merecer um verbo especial.

Atualmente, é estranho perceber como as pessoas continuam sempre as mesmas. Enquanto que até agora penso estar cada vez mais aceleradamente, tal qual o Universo, para mais e além de digitar mais rápido, de forma progressivamente mais bela, com opulento vocabulário, melhores e mais lapidados conceitos; outras, antes iguais a mim conformaram-se com seu estar passado e, vistas de minha perspectiva, “pararam no tempo”.

Nunca, talvez, leram aos cadernos intelectuais dos grande jornais paulistas. Talvez abram o jornal apenas para ler ao resumo das novelas e o horóscopo. Talvez dêem uma passadinha pelo caderno de empregos, verifiquem, só pra constar, a cotação do dólar. E, num dia realmente inspirado sua sabedoria burguesa resvale na leitura integral do caderno de entretenimento e num passar de olhos nas notícias das guerras pelo mundo, como tantas vezes eu mesma fazia. Até os 17 anos de idade, quando um certo bichinho me infectou, e este vírus contaminou-me através da leitura do Caderno Mais da Folha de São Paulo, as aulas do professor James do cursinho e a audição quase compulsiva das músicas de Chico Buarque, que é o mote final deste texto em redemoinho, ou talvez em pororoca.

Nesta mesma edição de Ilustríssima, na seção Arquivo Aberto – Memórias que viram histórias há o texto, algo até sentimentalista, mas delicioso “Saramago almoçou em minha casa. Carapicuíba, 1997” de Cristiano Mascaro. Tudo ia meio mais ou menos quando uma frase arrancou-me da mesmice inércia do hoje.

O autor lista os que convidara para o almoço, citando banqueiros, intelectuais, quatrocentões e arremata: “E, para despertar uma certa preocupação no Franco, meu genro, e alegria em minhas filhas Isabel e Teresa (e acredito que em Satiko também) [convidei] Chico Buarque.”

Como explicar a preocupação de Franco para quem desconhece quem é Chico Buarque? A coceira que imediatamente sentiu na testa? Como explicar a explosão de ansiedade nas três anfitriãs? Como piscaram longamente seus olhos na doce expectativa de poder estar a um metro de distância de Chico Buarque? Quem teria coragem de cozinhar para tentar alegrar ao paladar de Chico?

Numa expressão curta para demonstrar a mesura que sua presença suscita: Chico Buarque é deus.

Que fique claro que sou monoteísta estrita, e não pretendo com isso diminuir ao atribuir auxiliares ao meu Criador. Apenas pretendo fazer alguma justiça à arte de Chico Buarque.

Para ilustrar: é dito popular conhecido que absolutamente todo e qualquer homem é um potencial corno na presença de Chico Buarque. E toda mulher inteligente deveria colocar em seu acordo pré-nupcial: qualquer tipo de relacionamento, emocional, sexual ou intelectual com Chico Buarque não é adultério, mas a realização de um sonho inatingível acalentado por milhões de mulheres. Mesmo atualmente, com Chico já bem passado dos 60 anos. E todo homem corneado com Chico Buarque deveria, resolutamente, conformar-se que simplesmente nenhum mortal é páreo para competir com Francisco Buarque de Hollanda. E deve, compreensivamente, dar razão à sua esposa, reconhecendo que, se ele mesmo fosse mulher, não poderia deixar passar qquer oportunidade de poder eternamente gabar-se diante das amigas da inesquecível noite de amor que teve ao lado de Chico. Este é o tipo de feito que eu relataria até a meus bisnetos! Não digo que eu venderia minha alma ao diabo por uma noite de amor com Chico Buarque, mas acho que eu daria um rim para passar uma noite inteira com Chico, cantando-me, baixinho, no cangote. Ui!... Isso, com certeza, vale um rim!

Dizem que há um ranking do Índice de Felicidade Mundial análogo ao IDH, “Índice de Desenvolvimento Humano". E que no ranking da satisfação o campeão imbatível é o Butão, minúsculo e perdido no topo do Himalaia. No Brasil, tenho certeza, o campeão imbatível é o Rio de Janeiro pois as cariocas têm o deleite de eventualmente, ver Chico Buarque passar pelo calçadão, ainda mais diáfano que Helô Pinheiro, mesmo aos 20 anos. Só a felicidade de Marieta Severo, famosa e discreta atriz, que foi esposa de Chico por muitas décadas, já dispara exponencialmente a felicidade de todas as cariocas na média geral.

Se eu morasse no Rio, eventualmente, esperaria, como os paparazzi, Chico Buarque passar desavisadamente pela rua, só para poder suspirar a 4 metros dele, mas creio que não teria coragem de pedir-lhe um autógrafo, com medo de que sua pessoa física pudesse manetear sua persona criativa, que tanto amo. Fique tranqüilo, Chico, jamais me tornaria aquilo que os malucos americanos têm um ótimo termo para ilustrar: stalker. Um desses vitimou outro gênio musical, já citado: John Lennon. Mas como o Brasil tem bem menos malucos por km2 que os EUA, seus gênios e presidentes podem andar quase tranqüilos.

Assim como as pessoas se utilizam de seu acervo pré-fabricado, seu campo semântico familiar, sua língua, para expressar seus pensamentos, creio que da mesma forma utilizam-se de um certo acervo de expectativas, imagens mentais, arquétipos, clichês, sentimentalismos, que adquirem em parte através das músicas com as quais permitem-se chorar, e ouvem até decorar a letra ou até decifrar arranjos e partituras. Talvez eu não precise “maldizer o nosso lar, sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço te adorando pelo avesso” pois eu já chorei não só ao ouvir Chico cantá-lo mas também pela interpretação avassaladora de Elis Regina desta “Atrás da Porta”.

Em outras palavras, creio que a experiência de ouvir as músicas ricas e geniais de Chico Buarque alargou meu campo proximal de emoções e projeções psíquicas. Ampliou minha própria capacidade de ter sentimentos e fazer associações e transferências emotivas. Para quem tem 17 anos é muito mais proveitoso ouvir a discografia de Chico Buarque do que ler a “Os Lusíadas”. Não que Camões não seja relevante. Mas há pouco, sinceramente, que Camões realmente diga aos corações verdes dos adolescentes do séc XXI.

A maioria das pessoas contenta-se com um João Bosco & Vinícius, ou Maria Cecília & Rodolfo, ou Ivete Sangalo e similares. Eu pensava que Oasis, Pearl Jam, Renato Russo e a Legião Urbana eram o mais longe que eu poderia ir, mas vi-me inesperadamente diante de deus. Caí de joelhos e, como toda brasileira que já ouviu falar dele, me apaixonei. Não que eu tenha parado em Chico, depois fiquei mais boquiaberta ainda, embora não apaixonada, por João Gilberto, e a queda vertiginosa prossegue até hoje nas experiências emotivas e intelectuais que as músicas podem suscitar.

Assistir aos DVD’s de Chico Buarque e perder-se em seu olhos, como duas águas-marinhas é uma experiência hipnotizante. Perceber as diferentes nuances de sua voz em gravações com às vezes 30 anos de distância é o louvor de perceber como os anos, os cigarros e os excessos fizeram-lhe bem à expressão. Além de musicista, letrista, cantor, compositor, dramaturgo, Chico também tem se tornado romancista e é com orgulho que digo que já li 3 livros escritos por deus. A Torah? Não!!! Estorvo, Budapeste e Benjamin.

Até o recente “twiquito” (faniquito virtual via Twitter) pedindo que ele devolvesse o prêmio Jabuti recebido por seu mais recente Leite Derramado, tenho certeza foi despertado para satisfazer ao epíteto rodriguiano (do Anjo Pornográfico Nelson Rodrigues) de que “toda unanimidade é burra”. Então, não para dizer que Chico seja unanimidade pois há todo tipo de maluco no mundo, mas para reverificar o ditado ousaram sugerir que Chico não merece tal prêmio!

Para tentar ilustrar este texto tentei-me lançar à ingrata tarefa de elencar minhas músicas favoritas de Chico Buarque – estão a seguir sem nenhuma ordem. Tal tarefa é interminável. Em outra postagem elenquei, rápida e facilmente minhas favoritas de Amy Winehouse, Ella Fitzgerald e Billie Holiday. Mas com Chico não é tão simples assim. Sua obra é longa, abrange pelo menos 4 décadas, e é, toda, ótima.

Chico é deus. Chico é um gênio. Chico vai do samba ao blues, à valsa ao fado e ao samba, pára na bossa nova, dá uma pirueta no tango, no rock, no xote e termina num emocionante bolero. Outros artistas compõem letras de músicas. Chico Buarque é um ourives que rendilha, reconstrói e enobrece à última flor do Lácio, ou mesmo a enovela lindamente com suas primas, como em “Joana Francesa”.

Chico fez das próprias tripas a primeira lira que animou todos os sons. E canta toda sua profundidade abissal que apenas um eu-lírico feminino é capaz de compor, cantando com uma voz curtida numa longa boemia não só no Rio como em Paris, com um sobrenome duplo tão sonoro e pomposo, e tudo isso ainda engastado com dois hipnotizantes olhos azuis como uma turmalina-paraíba. Conhecer, saborear e enveredar-se pela obra de Chico Buarque é... orgásmico!


Lista das melhores músicas de Chico Buarque:


Amor Barato

Joana Francesa

Carioca

Chão de estrelas

Sem compromisso

Cotidiano

Morena de Angola

Notícia de jornal

Mulheres de Atenas

Samba de Orly

Sob medida

Teresinha

Pedaço de mim

Samba e amor

Homenagem ao malandro

A Rita

Construção

Minha história

Partido Alto

Xote de navegação

Assentamento

Cantando no Toro

Lígia

Luiza

Fado Tropical

Pois é

A ostra e o vento

Amanhã, ninguém sabe

As vitrines

Samba do Grande amor

João e Maria

Paratodos

Cálice

Vai passar

Bastidores

Futuros Amantes

Sobre todas as coisas

Valsa Brasileira

Cecília

Acalanto

Aquela mulher

Bancarrota blues

Cálice

Folhetim

Gota d’água

Romance

Samba e amor

Todo o sentimento

Tanto mar

Ciranda-da-bailarina

Apesar de você

Geni e o Zeppelin

Querido Amigo

Te amo

Bárbara

Olê Olá

A banda

A Rita

Trocando em miúdos

João e Maria

As minhas meninas

Beatriz

Sinal Fechado

Rosa dos Ventos

Carolina

Casamento dos pequenos burgueses

A ilha

Sonhos sonhos são

Feijoada Completa

Valsinha

Você vai me seguir

Atrás da porta

Deus lhe pague

De todas as maneiras

Tango do covil

Basta um dia

Umas e outras

Almanaque

sábado, 6 de novembro de 2010

Prosaica elegia de Jade e Lucca.

Hoje excede-se uma semana do falecimento de minha pequena e querida cachorrinha Jade, canis lupus angelicus. Para honrar sua acidentada e ilustre memória, expurgar e elaborar minha dor pessoal, escrevo este que, espero, sirva-lhe como justo obituário.


Sei que um animal de estimação é especial apenas para os que o acalentam e são abençoados diretamente por seu amor, e sei que poucos se interessarão pela leitura das memórias de um cão, mas prossigo e o divulgo mesmo assim, visto que minha preciosa Jade o merece, e muito mais.


Jade apareceu em minha vida no ano de 2002. Linda e extremamente dócil poodle branquinha, foi encontrada, prenhe e faminta na rua da amargura por uma amiga de minha irmã Patrícia da Silva Ramos. Na casa desta moça cujo nome nunca soube, Jade deu à luz sua ninhada vira-lata e na totalidade nati-morta. Por conta disso desconfiamos que Jade haveria sido envenenada para abortar a cria indesejada e, ao não abortar, seus donos a teriam simplesmente posto na rua. Essa desconfiança foi avolumada por sua foto ter sido divulgada largamente na região sul de São Paulo, caso seus anteriores proprietários a estivessem a buscar. Nunca houve ninguém à sua procura.


Como a moça que a acolheu prenhe não podia permanecer com ela, minha irmã a trouxe à nossa casa, à rua João Migliari, número 4, no Tatuapé. O motivo disso seria ela servir como esposa ao nosso pet, Lucca, que nos foi entregue por meu ex-sogro Aparecido Donizete de Faria como poodle, mas que sempre desconfiamos ser Bichon Frisé, apesar de sua trufa rosada.

Lucca sempre foi o cachorrinho mais esperto, carismático e fofo que conheci. Encantava a vizinhança até com seus latidos. Sentado à janela observando o movimento, muitos transeuntes surpreendiam-se com seu ânimo por julgar, à sua estática, tratar-se de um bicho de pelúcia. Angelicamente alvo, com o pelo macio e liso, toda sua cútis era lindamente rosada e seus olhos castanho-claros rajados em verde, numa cor que poderia ser chamada de “hazel”. Pobrezinho, era “monoball”, tinha apenas um testículo, que parecia uma cerejinha, pequena, róseo-carnal, e pensávamos, infértil.


Quando conheci Jade, a primeira coisa que notei foi sua eloqüente magreza. Via-se-lhe as costelas. No momento seguinte surpreendeu-me sua docilidade. Eu nunca havia conhecido cachorrinha mais afável, humilde e à margem do pedantismo carinhosa. Exsudava agradecimento por termos acolhido-a. Não tinha nome. Aprazer-me-ia chamá-la Marcela, o que foi execrado. Por fim, foi decidido que seu nome seria Jade, para fazer par com o Lucas, pois vivíamos a época da novela “O Clone” de Glória Peres, na qual o casal principal era o emasculado Lucas (Murilo Benício) e a sofrida Jade (Giovanna Antonelli). E Jade tornou-se. Igualmente desconhecíamos sua idade. Uma veterinário orçou-a em 4 anos, que era a idade de nosso Lucca. Passei então a considerá-los como da mesma ninhada, e a celebrar o aniversário de ambos no natalício de Lucca, 24 de novembro de 1998.


Ao chegar, Jade tinha uma fedorenta infecção auricular que fazia brotar em seus ouvidos uma cera marrom, terrosa. Jade não me conhecia. Tomei-a em meus braços e disse-lhe:


- Sou tua mamãe-sogrinha. E apesar de ser tua sogra, me comportarei com você como uma verdadeira mãe.


Ela confiou em mim e sinto-me grata a Deus por ter me facultado honrar essa promessa, sustê-la, acarinhá-la e pensar suas feridas, até seu último suspiro, como se minha filha carnal fosse. Ou até melhor. Sem me conhecer, Jade permitiu, mesmo aos ganidos, que eu tratasse e limpasse suas doloridas orelhas, sem em nenhum momento sequer cogitar rosnar-me ou morder-me. À essa época percebi uma das poucas coisas que foi possível apreender de sua vida pregressa: Jade seguramente ao longo de toda a sua vida havia sido banhada apenas em pet shops, pois ao contrário de nosso Lucca comumente higienizado no tanque, Jade era incapaz de secar-se sozinha. Ao colocar Lucca molhado sobre a toalha, ele se esfregava quase institivamente secando-se por si só. Jade permanecia parada, nos fitando como quem diz, sem nenhuma arrogância:


- Pode vir terminar o serviço. Vou ficar quietinha.


Quando Jade entrou em seu primeiro cio em nossa casa Lucca era virgem, pobrezinho. Conheceu então o amor. Jade era uma cachorra que, brinquei à época, era meio piranha. Parecia apreciar muito o coito. Enquanto Lucca descansava extenuado, com seu pequeno pipi escoriado, inchado e avermelhado, Jade esfregava-lhe ao focinho sua “pitrica” insaciável. Fartaram-se livremente no amor canino que, surpreendentemente, resultou numa linda ninhada de 5 filhotes: 3 machos e 2 fêmeas; 2 de pêlo liso, 3 de pêlo enrolado; todos de trufa negra, como Jade.


Fomos tomados pelo maravilhoso encanto que é ter uma ninhada de filhotinhos em casa. Jade ficou meio enervada com a presença de Lucca perto dos filhotes, e o tomei para passar uma temporada em meu apartamento do outro lado da rua do famoso bar “Rei das Batidas", próximo à Cidade Universitária da USP, bairro do Butantã, São Paulo, SP, Brasil. Esses dias foram os mais ternos que tive com meu filho Lucca, que me teve então como única provedora.


Minha melhor lembrança com Lucca data desta época. Num final de semana coloquei-o na mochila, peguei minha bicicleta e pedalamos até à USP, Lucca mesmerizado pelo vento suave em seu focinho, complexamente recendendo à Marginal Pinheiros. Telepaticamente transparecia um inefável êxtase olfativo, da forma que apenas um criador-canicultor-pedagogo-adestrador-pigmaleão que sabe-se demiurgo do desenvolvimento cognitivo “humanizado” de um animal de estimação sabe compreender e interpretar. Na Praça do Relógio, Lucca correu à toda, rolou na grama, sentiu aromas inéditos, pulou e sentiu-se completamente livre. Desfrutou a plenitude de saber-se um cão realizado e feliz, belo, maduro, casado, amado, protegido e até mimado, com filhos pequenos e prosseguimento biológico garantido, no auge do que poderia chamar de “vida”.


Lucca era muito inteligente. Compreendia uma ampla gama de palavras, sons e entonações. Jade não. Saltava aos olhos a diferença de “inteligência” entre ambos. Jade era meio “burrinha”. Mas seu coração e boa disposição animal eram gritantemente melhores que os de Lucca, ou de Whiskey (ou Uísque), outro poodle da família estendida. Intratável e intragável, pois fôra redundantemente mal-criado por minha outra irmã, Cristhiane da Silva Ramos e minha avó Shirleÿ Alves da Silva. Ao contrário de Lucca, que pude trabalhar e desenvolver desde a mais tenra infância (chegou-me minúsculo, com menos de 1 mês). Com Jade, que chegou-me adulta, nunca pude desenvolver uma comunicação quase que intuitiva, como tinha com Lucca. Talvez apenas em seus últimos meses, quando ela se viu completamente dependente de meus cuidados gerontológicos paliativos, rendida ao decreto inexorável do passar do tempo.


Seus filhotes foram doados. À época foi cobrado de seus adotantes, indicados por nossos conhecidos, apenas R$ 80,00, referentes à excisão do rabo e à vermifugação. O último a permanecer em nossa posse, de personalidade cativante e encantadoramente irrascível e impertinente, foi alcunhado de “Marrudinho”.


O próximo ato destas duas ilustres trajetórias domésticas é o triste interregno que resultou no falecimento de Lucca, aos 5 anos, em 12 de dezembro de 2003. No final de semana anterior eu havia viajado para Campos do Jordão. Ao voltar, no domingo, Lucas estava baqueado; e urinava sangue. Na segunda foi levado ao veterinário do bairro. Não melhorou. Na mesma semana, não me lembro se na própria terça ou na quarta foi levado ao Hospital Veterinário da Universidade de São Paulo, da qual eu era aluna na FFLCH.


Primeira suspeita: leptospirose hemorrágica. Ao olhar para a proeminente barriga de grávida de Patrícia, a veterinária murmurou em tom assustadoramente soturno:


- Essa doença é contagiosa e se contraída por humanos pode ser abortiva.


A resposta de Patrícia foi afagar Lucca mais uma vez, com seus olhos profundos e coração cauterizado. O HV funcionava apenas em “horário comercial”, não havia internação, portanto a cada dia tínhamos que levá-lo de volta para a Zona Leste, mesmo que não tivesse melhorado. Num dia seguinte dessa semana, após fazer ultrassons e exames de sangue, o pequeno Lucca foi diagnosticado com anemia hemolítica auto-imune. Seu sistema imunológico estava atacando seus glóbulos vermelhos. Entrou em falência renal e, percebam, em 2003, numa das maiores metrópoles do mundo, não havia um único estabelecimento que oferecesse hemodiálise veterinária (Hoje até o há, cobrando milhares a sessão). Em seguida, Lucca entrou em falência hepática. Sua suave pele rósea passou a exibir um matiz sepulcral, num doentio amarelo-esverdeado, quase que neón.


Na tarde daquela sexta-feira eu tinha prova do professor Doutor István Jancsó, que foi meu orientador na Iniciação Científica. Naquela noite o meu grupo de amigos da faculdade celebraria o final do semestre numa festa à beira da piscina no prédio da Bela, nossa amiga também jornalista Gabriela Zini Megale. Por conta disso eu saíra de meu kitnet trajando sob a roupa meu biquíni verde-água, pois esperava que Lucca permanecesse estável e eu pudesse comparecer ao evento.


Terminando afoitamente a avaliação, peguei o ônibus circular e acorri à Veterinária. Lucca, com o soro na veia, repousava tranqüilamente na maca. Patrícia, cabisbaixa, sentada à sua cabeceira. Aproximei-me dele e, acariciando-o, dirigi-lhe palavras doces, familiares entre nós. Para meu horror ele começou a contorcer-se estranhamente, de uma forma que eu nunca vira, nem sabia ser possível. Os veterinários vieram prontamente socorrê-lo. Patrícia principiou a chorar. Eu, chocada, surpresa e atordoada, não sabia o que se passava e murmurei algo neste sentido. A pingar lágrimas em olhos cor de vinho, Patrícia exclamou:


- Você não está vendo que ele está tendo uma convulsão?!



Eu não estava vendo pois eu mal sabia o que era uma convulsão. Para mim isso era coisa exclusiva de epilépticos. Patrícia é fisioterapeuta e compreendia muito melhor do que eu a fragilidade da saúde de Lucca àquela altura e a evidentemente manifesta premência de sua morte. Deixei então de lado o projeto de comparecer à festa supostamente imperdível pois marcaria o “encerramento do semestre”. Perdeu imediatamente diante da cena que eu testemunhava qualquer relevância ou atraência. E neste instante o biquíni incógnito que eu trajava principiou a constranger-me maculando, como a insistente nota dissonante de um instrumento mal afinado, aquele momento que desvelava-se o começo de um drama definitivo.


Findou a tarde e Lucca estava como que em coma. Precisaria de uma urgente transfusão de sangue. Não havia, sub-desenvolvidamente, banco de sangue canino na mais populosa metrópole da América do Sul. Patrícia havia arranjado para o dia seguinte um cão grande para servir de doador, por parte de seu namorado, pai de minha sobrinha Ana Letícia Santos, então em gestação. Ao nos aprontarmos para levar Lucca para casa testemunhei parcialmente quando a veterinária entregou a Patrícia uma injeção, creio hoje eu que de morfina ou similar. Elas conversavam em tom baixo, em um canto, e depreendi que estavam a fazer algo “off the record”, if you know what I mean, pois a veterinária tinha diante de si uma interlocutora que era uma profissional da área médica.


Entramos no carro, Patrícia dirigindo e eu no banco de trás com Lucca no colo, em posição quase rígida de descerebração. Ele não estava em condições de passar a noite em casa e o levaríamos a uma clínica veterinária 24 horas no Tatuapé para ser assistido durante a noite. Naquele longo poente sofri excruciantes excedentes a 3 horas de congestionamento quelônio na Marginal Tietê. Lucca pungia em meus braços, num certo limbo entre o vivo e o moribundo. Defenecia. Seu ânimo parecia vazar-lhe e desvanecer a cada respiração.


Após algumas horas de deixado na clínica, ligaram para informar que Lucca falecera. Chorei desesperadamente, de forma quase pietàica. Jade agora viúva e castrada permaneceu morando naquela casa até que sob algum pretexto de inconveniência material foi remetida para morar em Rio Claro, onde faria companhia ao egocêntrico e neurótico Uísque.


Conheceu então o amargor do abandono pela segunda vez. Foi com hospitalidade veterotestamentária acolhida por meu avô major Vicente Novais da Silva, a exemplo de todos que tenham algum dia recorrido ao seu generoso coração. Quando eu vinha a Rio Claro percebia que Jade, que conheci emaciada, estava agora, de forma até preocupante, obesa. Fartava-se na atenciosa e apetitosa alimentação que meu avô, Morzinho, devotada e diligentemente praticamente deglutia, bem picadinha, em sua gamela e na de Uísque, que estava mais para anoréxico em sua neurose idiossincrática e indelével, apesar de meu esforço posterior. Muitos há interessados no legado material de meu Papica. Já no legado de sua estima, apenas eu. Triste perceber como a poucos engaja honrar a memória de seus mortos.


Em 15 de dezembro de 2006, ao concluir meu bacharelado e licenciatura em História na USP, realoquei-me em Rio Claro, para morar com meus avós maternos, os únicos que reconheço. Meu avô, acometido por câncer na próstata, vivia seus últimos dias. Faleceu no primeiro de fevereiro próximo. Vi-me então moralmente incumbida de cuidar dos seres que meu querido Moreco estimava. Além de sua viúva, minha avó Tula, passei a cuidar de duas samambaias decenárias, um papagaio que me vira nascer, um canário alaranjado que batizei “Frank Sinatra” (que permanece entre nós), Jade e Uísque.


O papagaio Chico, já meio esclerosado e decibéricamente inconveniente, irritante, obstinado e constrangedor perante a vizinhança, foi encaminhado ao viveiro/santuário de um veterinário da região, sem minha interferência ou conivência. Uísque idoso faleceu suavemente após uma curta convalescença de 3 dias. Após 3 anos de convivência comigo, observando a confiança e o bom trato que eu dispensava à sua obsessivamente idolatrada Jade, ele já permitia-me há muito tempo banhá-lo com a água fria da mangueira e até ensaboá-lo, com certa precaução às “áreas nobres” tão preciosas a uma macho inseguro como ele. Uísque em sua terceira idade permitiu-me manipulá-lo, para fins de higiene ou simples carícia, de uma forma que jamais permitira à sua pretensa pseudo-mãe, a anti-fraterna e atavicamente mal-resolvida Cristhiane, que o comprara por alto preço, com pedigree, filho de pai inglês. E que o deixara rapidamente para trás à primeira inconveniência material.


Jade permaneceu entre nós por mais um ano excedido, quase cega e quase surda, pele assustadoramente manchada por seu hábito de tomar longamente o sol matinal. Olhos secos e irremediavelmente inflamados, secretando uma gosma lipídica algo amarela. Cresciam-lhe reiteradamente verrugas, que ela feria ao roçar nos móveis, estando habitualmente manchada de sangue em algum ponto de seu corpo. Desde sempre tinha o hábito de coçar-se constantemente, a ponto de supliciar-se.


Dog spins to itch bottom - Cachorra gira para coçar a bunda


A respeito da coceira, sempre foi dito por veterinários que seriam pulgas ou irritações cutâneas e ela foi algumas vezes tratada com inseticidas veterinários, sabonetes e xampus terapêuticos. Nada fez efeito. Sua coceira inclusive incomodava o sono, não só dela, mas de minha avó, com quem repousava. 3 meses antes de ela morrer, ao ir buscá-la após o banho e tosa no pet shop que freqüentava há muitos e muitos anos, a dona do estabelecimento me interpelou a respeito da coceira compulsiva de Jade. Pronunciou experimentadamente segura, entre hesitante e indignada:


- O veterinário não prescreveu Meticorten? Em casos de alergia como esse, é o que resolve.


Furtei-me ao prosseguimento da conversa, constrangida que estava por sentir-me criticada como uma mãe desmazelada. Nenhum veterinário nunca havia mencionado a possibilidade de tratar-se de uma alergia. No mesmo dia comprei o remédio e o administrei conforme o peso calculado de Jade, 10 kg. Magicamente, ao final do segundo dia de ingestão do antialérgico Jade, simplesmente, parou de se coçar. Senti um misto de alívio e frustração por perceber que teríamos podido, há muitos anos, aliviar o persistente incômodo que a afligia, com uma coisa tão simples quanto administrar-lhe um medicamento acessível a poucas quadras de nossa casa, onde quer que ela fosse. No Brasil existem mais farmácias do que padarias. E por que aquela senhora nunca havia me alertado antes?! Resignei-me depois em não mais me torturar de forma vã a vazia a respeito disso, e de tantos outros pesarosos fardos. Às vezes as coisas se passam exatamente do jeito que têm que ser, apesar de qualquer esforço que esteja a nosso alcance. Assim foi a passagem de Lucca, jovem; e de Jade, idosa.


Não pretendo levantar a bandeira anti-alopática, mas após começar a administração deste remédio que tanto a aliviou, sua saúde rapidamente se deteriorou. Entre agosto e setembro, numa temo inescapavelmente fatídica sexta-feira à noite percebi que Jade estava caminhando de maneira “engraçada”, meio que “rebolando”. Na manhã do sábado banhei-a e até então aquilo era só uma leve suspeita de um problema. Naquela noite Jade já não conseguia andar. Tentava, insistentemente. Orei e pedi ajuda por si, pois um cão que não consegue suster-se em pé não faz suas necessidades fisiológicas, o que não é coisa que possa ser ignorada ou relevada. De alguma forma tive uma súbita epifania ou insight. Possuo eu um cinto largo. Passeio-a sob o ventre de Jade, segurando-o de forma a sustê-la quase como um títere ou um bebê em seu andador. Após perceber-me sustendo-a, Jade abandonou-se à confiança de que eu não a deixaria cair e, apoiada na tipóia improvisada, aliviou-se do inadiável chamado da natureza. Também eu aliviei-me. Não fisiológica, mas emocionalmente, ao menos por aquela noite.


No domingo levei-a ao veterinário. Ao examiná-la percebi mesmo em seu enigmático semblante nipônico a imediata suspeita de que Jade não andava pois poderia ter sido agredida e sua coluna partida. Doutor Márcio Kayano apalpou longamente sua coluna vertebral e abriu um meio sorriso ao perceber sua integridade ortopédica. Solicitou exames de raio-X, que realizei na segunda imediata, ao final da qual retornei a seu consultório. Dos exames, depreendeu que Jade padecia de “bico de papagaio” e hérnia de disco. Para tal até existe cirurgia, mas que não recomendava a Jade, aos 13 anos. Receitou um suplemento ósseo-cartilaginoso e um anti-inflamatório. Acupuntura, caso ela não voltasse a andar com a medicação.


Eu estava desesperançosa de sua restauração mas para minha alegria Jade ao cabo de 2 dias voltou a andar, quase que normalmente. Continuou a ser medicada até seus últimos dias. Porém, com o andar célere do tempo, percebi-a progressivamente fragilizada e envelhecida. Viver principiava a pesar-lhe. Na derradeira semana de outubro deste 2010 Jade começou a vomitar, mesmo a melhor ração disponível, e a recusar-se a comer, mesmo à papinha elaborada e nutritiva que diligente e devotadamente cozinhei-lhe. Ela recusava. Fiz outra e mais outra. Ofereci-lhe carne moída e peito de frango desfiado puros, e até isso recusou. No intervalo de uma semana, tal qual Lucca, Jade rapidamente definhou. Emagreceu, recusando-se a comer. Nos últimos dias entuxei-lhe diretamente na boca com seringa leites vitamínicos. Ela não tinha opção. Era sorvê-los ou afogar-se.


Com o coração na boca, ao longo de toda a semana, toda vez que a olhava checava sua respiração. Até o ocaso da sexta ela era longa, pausada, abdominal, tranqüila. Naquele princípio de Shabbat do que viria a ser o 30 de outubro véspero-eleitoral este compasso alterou-se. Percebi que Jade, já incapaz de suster-se com qualquer macete que eu pudesse cogitar, respirava torácica e ofegantemente. Não parecia mais tranqüila. Telecomunicava incômodo e dor. Só então cogitei, com muita dor, a possibilidade da eutanásia, que não me é absolutamente justificada.


Ao retornar do quase centenário Centro Espírita Fé e Caridade, do qual é decenária freqüentadora, minha avó exclamou entre orgulhosa e humildemente agradecida:


- Se eu te contar, você não vai acreditar! Aconteceu hoje uma coisa que nunca se tinha passado: o veterinário espiritual Rui de Castro pronunciou-se diretamente a mim, a respeito da Jade, e disse para nos acalmarmos pois ela está sendo atendida e socorrida espiritualmente. Que ela não sentirá dor e falecerá suavemente. Foi um acontecimento realmente único e especial! Doutor Ruy de Castro nunca havia se manifestado para nós!


Senti-me presenteada e agradecida pela alta deferência exclusivamente disponibilizada a minha honrada e meritória filhinha. E meu coração algo que acalmou-se. Naquela madrugada, já shabbat, Jade faleceu durante o sono, em hora incerta, a menos de um metro de mim.


Naquele dia, levei-a com a ajuda de minha verdadeira mãe Maria José Pereira da Silva Tomazella ao sítio de seu enteado, o generoso Anthony Secco Tomazella, que franqueou sua hospitalidade para enterrarmos minha filhinha em Itapé, ao som de passarinhos livres. Sepultamo-a no pomar, à beira do riacho, enquanto o céu vertia gotas atemorizantemente pesadas, exibindo-se profético e argênteo, ibericamente melancólico e fatídico. Enquanto eu prestava a última homenagem à inscrita no livro da vida como Chaya bat Noach, umectavam nossa dor solenes lágrimas celestes, e isso, apesar da inconveniência prática, me consolou. Sobre seu túmulo cultivei uma roseira branca e assinalei-a com uma singela joaninha de cerâmica com a inscrição “Jade 30/10/10”. Não é só Jade que jaz ali. Sepultei consigo uma boa parte de minha vida e minhas memórias. E arrepio-me ao digitar isso.


Chico Buarque - Assentamento


Counting Crows - A Long December


Dave Matthews - Gravedigger

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Da bastardia e dos testes de paternidade


DNA. Ácido desoxirribonucléico com quatro simples nucleotídeos básicos: adenina, guanina, citosina, timina. Maravilhosa descoberta de Watson & Crick em 1953 que, insuspeitamente, desembocou em novas tecnologias como os transgênicos, a clonagem de touros premiados e os exames de paternidade. É sobre este último que pretendo digressar.


Graças a Deus ou à reincidência errática de minha ex-genitora nunca precisei de um teste de DNA para colocar um nome num campo em branco no meu RG, e imagino o quanto seja humilhante precisar recorrer a um teste de DNA, tanto para a mãe como para o filho, a fim de precisar quem é o seu genitor. Talvez seja por isso que o rabinato há mais de mil anos determinou: judeu é todo aquele filho de mãe judia, não importa quem seja o pai. Na verdade, porque nunca se tinha certeza de quem realmente era o pai. Além da também recente e inconclusiva tipagem sangüínea, não havia como saber com certeza se o filho “legítimo” era bastardo ou se o filho duvidoso o era de fato.


Os exames de paternidade de certa forma resolveram um antigo problema filial e patrimonial: a bastardia. Hoje, quando a noção de família, honra e “normalidade” se tornaram bem mais elásticas, ser filho “bastardo”, especialmente no Brasil, não é mais tão traumático. Houve tempo em que qualquer filho concebido fora de um casamento sacramentado pela ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) era um bastardo, mesmo que fruto do relacionamento de duas pessoas solteiras, com nome do pai e da mãe na certidão. Vivemos na época de Papa don´t preach. E isso é bom.


Ter um filho bastardo antes da década de 1960 era uma anátema que não raramente resultava no aborto, infanticídio ou na exposição de bebê (abandono na “roda dos expostos” dos orfanatos). Isso resultou, entre outras coisas, no sobrenome italiano Spositto e na mais torrencialmente pesarosa cena da novela Terra Nostra, quando a pérfida neo-sogra (Ângela Vieira) põe na roda o fruto bastardo do amor puro entre Giuliana (Ana Paula Arósio) e Matteo (Thiago Lacerda).


Ser um filho bastardo, sem nome do pai, ou até sem saber quem era o seu pai, costumava ser um estigma. Uma marca indelével que apenas a dedicação à Igreja podia alvejar. Analisemos o caso do padre Diogo Antônio Feijó, filho bastardo de uma tradicionalíssima família paulista, exposto literalmente na pocilga do bispo de São Paulo. Adotado, educado e ordenado, Feijó pôde, em princípios do séc. XIX, transcender à mácula de seu sangue possivelmente “infecto”, tornar-se uma importante liderança política brasileira e alçar-se ao grau até então inimaginável a alguém sem estirpe determinada: governante do Brasil. Ele foi Regente do Império do Brasil durante alguns anos da minoridade de Dom Pedro II. Trajetória comparável à conquista também inédita do corso Napoleão Bonaparte ao tornar-se Imperador da França. Dá-lhe “O Vermelho e o Negro” de Stendhal...


Fui testemunha do trauma e do pesar que a ausência do nome do pai de um “grande amigo” então JPN, filho de mãe negra, solteira e pobre com pai branco, solteiro, rico e escusem-me violar a memória de um falecido, pouco responsável. Do pai JPN carregava o prenome, não, porém, o sobrenome e o reconhecimento. Não que seu pai não soubesse ou duvidasse que ele fosse seu filho, Mas à década de 1960 ainda vicejava até no ambiente urbano paulistano uma certa mentalidade desvendada por Gilberto Freyre em “Casa-Grande & Senzala” ao diagnosticar a função do “negro na vida sexual e de família do brasileiro”. Já adulto e ele mesmo pai, JPN foi reconhecido por seu pai, já idoso, sem necessidade de teste de DNA, e tornou-se orgulhosamente JPNSC. Fez questão de ostentar a longa seqüência de todos os sobrenomes a que tinha direito, tal qual quatrocentão, embora fosse um mulato carcamano. Embora pouco prático ou estético, isso deve ter cumprido a função catártica de “lavar a alma” e a honra da família.


Casos famosos envolvendo questões de reconhecimento de paternidade, e que exemplificam comportamentos opostos, são os de Pelé e Mick Jagger. O triste caso de Pelé, Edson Arantes do Nascimento, o atleta do Século (XX), o liga a Sandra Regina Arantes do Nascimento, “A filha que o rei não quis”. Embora comprovado por testes laboratoriais que Sandra era de fato integrante de sua prole, Pelé recorreu até ao Supremo Tribunal Federal para não reconhecer a paternidade de sua filha, já adulta, fruto dos longínquos tempos do anonimato. É claro que Pelé perdeu a causa, Sandra pôde ostentar seu “Arantes do Nascimento” e passá-lo à sua própria descendência.


A lei brasileira é generosa neste sentido: todo filho, natural ou adotivo, tem direito à herança de seus pais, mesmo que à revelia. Ou seja, nenhum filho pode ser deserdado. Legítimo ou bastardo, concebido dentro ou fora de um casamento; cada filho, amado ou rejeitado, tem direito a igual quinhão do espólio. O único caso de exceção é no de o herdeiro causar a morte de seus genitores, tal qual no caso de Suzane Louise von Richtoffen, que assassinou aos próprios pais, Manfred e Marísia. E ainda num caso assim, é necessário que o(s) co-herdeiro(s), entre(m) com um processo para a exclusão da(o) parricida de seus direitos naturais no inventário.


Pelé rejeitou Sandra, e esta talvez seja a maior mácula em sua biografia. Postura diferente teve Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, então casado com Gerry Hall, quando se viu pego no “golpe da barriga”. Bem ciente dos avanços do DNA, a então desconhecida modelo brasileira Luciana Morad Gimenez teria tido um encontro casual com a lenda do rock, supostamente num canil, que resultou numa muito alardeada gravidez e no divórcio Jagger-Hall. Mesmo numa situação extremamente constrangedora, talvez aconselhado por um media trainer, tal qual Ronaldo Nazário, o Fenômeno, diante da gravidez de Milene Domingues, Jagger comportou-se com um legítimo cavalheiro: em nenhum momento criticou Gimenez, ou negou a paternidade. Obviamente exigiu o teste de DNA e à revelação, na corte americana, do resultado positivo, Jagger, pelo telefone, disse estar muito satisfeito com o resultado, e prontificou-se a comparecer com todas as suas obrigações de pai conforme acordado fosse pela corte na presença de seu advogado. Cifras em dólares àparte, Mick Jagger fez, e faz, muito mais por Lucas Morad Jagger, que destruiu seu único longo casamento, que pagar-lhe uma morbidamente obesa pensão alimentícia: faz-se presente. São lindas as fotos dos dois juntos. Jagger fez de um tropeço uma superação exemplar, dá uma lição de como um homem honrado deve comportar-se diante de um filho inesperado: como um pai.


Por mais indesejadas que tenham sido as circunstâncias que resultaram numa descendência inesperada, nenhuma pessoa com honra pode permitir-se furtar-se às responsabilidades, financeiras e emocionais, provenientes de um filho. Por mais que a mãe tenha sido uma oportunista, ela não importa. A pensão é para a criança. O registro é da criança, que não é uma oportunista e que é filha tanto quanto qualquer outro filho que alguém venha a ter. Ninguém tem o direito de negar a outra pessoa a certeza e o orgulho sobre sua origem. Toda criança tem o direito à presença e à referência de ambos os seus genitores.


Pena que cerca de 30% das crianças brasileiras sequer tenham o nome do pai em sua certidão de nascimento. E muitas das que têm um nome ali, seu “pai” é apenas um nome, de papel, completamente imaginário.

Vivemos tempos familiarmente tristes...

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...