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sábado, 21 de janeiro de 2017

Dezessete e Trinta e Quatro, Trinta e Quatro e Cinquenta.


É um título cabalístico. O escrevo como homenagem, reminiscência.

Eu tinha dezessete anos quando iniciei o mais longo e marcante relacionamento da minha vida. E meu parceiro tinha 34, exatamente o dobro de minha idade. Hoje sou eu quem tem 34 anos, e ele está prestes a fazer 51. Seria motivo para eu divagar alguns instantes solitariamente, não tivesse ele, a quem chamarei simplesmente de "J", me mandado um e-mail exatamente no dia do meu aniversário, em 29 de dezembro último.

Eu nunca esqueceria igualmente seu aniversário, em 9 de fevereiro, a o que se soma o detalhe de que também é o aniversário de minha única sobrinha. Ela nasceu bem ao final de nosso relacionamento de 4 anos, e ele soube à época da "coincidência ". Este ano ela fará 13 anos.

Vendo de hoje e de fora, parece sim um despropósito um homem adulto se relacionar com uma adolescente com metade de sua idade. Hoje, eu com 34 anos, não consigo imaginar que conseguiria ter um relacionamento com um moleque de dezessete anos. Mas J não se relacionou com uma "adolescente com metade de sua idade", ele se relacionou COMIGO, que nem aos 17 tinha dezessete anos. Não foi ele quem "deu em cima de mim". Fui eu quem "deu em cima dele", insistiu, seduziu, e, apaixonada, fez de tudo para engatar e manter o relacionamento. E confesso que sim, me senti à época muito orgulhosa de mim mesma por conseguir despertar a atenção de um "homem feito", bem mais velho, admirado, respeitado e até disputado por outras colegas.

J é uma pessoa muito humana, cheia de consciência e escrúpulos. Ele mesmo não gostava do fato de eu ser tão jovem, o falou diversas vezes, que preferia que eu fosse alguns anos mais velha, para não sentir que estava "se aproveitando" de mim. Talvez ele soubesse, lá no fundo, que também eu "me aproveitava dele", não no sentido material (longe disso, ao longo do nosso relacionamento ele sempre esteve muito ruim financeiramente, não pensem que eu tinha qualquer interesse escuso em relação a J, era um sentimento verdadeiro). Eu me aproveitava dele, e de estar neste relacionamento, para amadurecer, crescer, evoluir. J sempre foi um ótimo professor.

Namoramos durante todo o tempo em que estive perdidamente apaixonada por ele, 4 anos e meio, e chegamos a morar juntos. Por isso, quando me perguntam, digo que tenho sim um "ex-marido", embora nunca tenha me casado. Passamos por experiências fundamentais juntos. Eu estava com ele quando entrei na faculdade, saí de casa, virei adulta. Ele estava comigo durante o processo de luto por seu pai, e a morte de sua segunda mãe. Estávamos juntos durante a construção da minha vida e a dissolução da sua. E, sabendo da constância dos meus sentimentos, ele me chamava de "seu porto seguro".

Mas, em determinado momento "a chama apagou". Não foi nenhuma briga, traição, decepção ou mentira em particular. Gradualmente , o sentimento de paixão foi arrefecendo em mim, e talvez também nele, o relacionamento foi se desgastando e resolvemos, de comum acordo, nos separar. A minha e a sua vida haviam mudado. Depois de 4 anos de relacionamento, eu não mais queria, como aos 17 anos, "me casar com meu grande amor" e começar a ter uma "vidinha doméstica". Não aos 21 anos, estudando História na USP.

Eu queria, assim como ele, ter a oportunidade de VIVER, experimentar, quebrar a cara, errar, me arrepender, FAZER E ACONTECER. Não queria "me assentar" tão cedo, ser uma pessoa "dependente e dominada" por um marido muito mais velho. Ele entendeu. Terminamos nosso relacionamento íntimo, mas continuamos amigos.  

Depois de terminar a faculdade, me mudei para o interior e continuamos a, esporadicamente, trocar mensagens. Certa vez em que precisei vir a São Paulo nos comunicamos e ele me ofereceu sua hospitalidade. Dormi em sua casa de homem solteiro só com cachorro, como "velhos e bons amigos". De outra feita, alguns anos depois, eu estava em São Paulo por ocasião das festas de fim de ano e lhe mandei um sms na noite de Natal, apenas saudando-o. Em poucos minutos sua nova parceira começou a me mandar mensagens furiosas enquanto eu só pensava "Que mulher louca e insegura, nem com 17 anos eu me rebaixaria a fazer isso, ainda mais na noite de Natal..." Enfim...

Muitos anos se passaram desde então, mas em nada diminuiu meu carinho e admiração por J, pelo papel tão importante que ele teve em minha vida e em minha evolução pessoal. Grande parte do que eu sou, sei que devo a ele, por todas as nossas conversas e experiências compartilhadas ao longo desses 4 anos em que estivemos juntos. Ele sempre será meu gigante com voz de trovão. Ainda sonho com ele, de tempos em tempos. Me traz o conforto de me sentir acolhida ao lado de um bom e velho amigo. Ele foi fundamental à formação da mulher adulta que sou hoje. Fez de mim uma pessoa mais humana, comedida, intelectualizada, engajada, assertiva, e com um gosto musical muito melhor. Foi J quem me apresentou a Chico Buarque, Eric Clapton, BB King e Billie Holliday. Se apenas isto tivesse feito por mim, já seria muito. Mas sua contribuição à formação do ser humano que sou hoje foi infinitamente maior.

Gostaria que ele soubesse o quanto sou grata por termos divido tantos momentos juntos. Que eu sei que sem ele eu não seria hoje boa parte do que sou. Que me lembro dele com carinho e admiração. Que não importa quantos anos passem ou o que aconteça, nada irá mudar tantas lembranças especiais que guardo dele comigo. Que torço sinceramente por sua felicidade. Que gostaria de sempre que for a São Paulo reencontrá-lo nos restaurantes em que gostávamos de ir.

Que estou bem, sou dona de mim mesma, no domínio do meu destino, independente, sem dever nada a ninguém. Que hoje sou uma pessoa adulta, tenho uma vida respeitável e sou admirada pelo meu conhecimento. E que grande parte da base sobre a qual essa "Fernanda adulta" se assenta, reputo a tudo o que aprendi ao seu lado. Muito obrigada por ter permitido que eu fosse seu porto seguro. De certa forma, você ainda é o meu.

Kings of Leon - Use Somebody https://www.youtube.com/watch?v=gnhXHvRoUd0

Eric Clapton & BB King - Ridding with the King https://www.youtube.com/watch?v=sJK78Y3zoQk

Dave Matthews Band - Where are you going https://g.co/kgs/PhsWHN



sábado, 24 de setembro de 2016

Nome de personagem ecológico

 

É comum as pessoas não gostarem de seu próprio nome. Afinal, com qual autoridade alguém pode escolher o nome de outro ser humano? É uma escolha muito importante e frequentemente os pais não dão a devida atenção a este processo tão importante.

Quando estudamos Literatura os professores nos ensinam que os autores dos livros, ao escolher escolher o nome de seus personagens, muitas vezes já colocam "inserido no nome" algo da personalidade que projetam sobre aquele ser. E daí em diante passamos a cada filme ou livro ver no nome dos personagens "pistas" sobre sua real essência.

Por toda a minha vida cri ter um nome banal, sem nenhum significado ou "duplo sentido". Desde os doze anos falo fluentemente inglês e tenho tido contato com francês, alemão, italiano, castelhano, hebraico e até japonês sem nenhuma indicação de que meu nome tivesse qualquer "subjacência"... Até que...

Soube da existência de um programa na TV americana chamado "Between Two Ferns", programa de entrevistas com o humorista Zach Galifianakis https://en.m.wikipedia.org/wiki/Between_Two_Ferns_with_Zach_Galifianakis e só então procurei por "Fern" num dicionário de língua inglesa e descobri que significa "SAMAMBAIA"!

Nada demais se meu sobrenome não fosse "Ramos", ou "Palmer" em seu correspondente em Inglês. Sim, meu nome equivale a "Ramos de Samambaia". Sim, eu sou um personagem ecológico de um romance água com açúcar nova era "BEM VERDE"... 

E não só quem escolheu o meu nome não tinha a menor ideia disso como eu mesma passei 30 anos de minha vida sem me dar conta de que meu nome é sim um clichê ecológico risível. Tal como "River", "Leaf" ou "Summer" Phoenix, só que acidentalmente!

Na faculdade eu tive uma colega cujo nome do meio era "Relva" e ela explicava aos outros "é por causa da 'grama' mesmo" e eu ria internamente. Pois é. Meu próprio nome é uma referência ecológica completa e eu nem sabia! 



quinta-feira, 21 de julho de 2016

Dez conselhos que a Fernanda de 34 anos daria pra Fernanda de14 anos



1 - Não tenha pressa. Para nada. Para casar, ter filho, escolher profissão, para nada. A vida é longa e você tem que pensar muito bem antes de tomar decisões definitivas. Não se contente com o primeiro cara legal que aparecer no seu caminho. Outros melhores te aguardam.

2 - Não fume. Fumar na década de 1990 era legal, mas agora já não é tanto. Isso só vai prejudicar sua saúde e te fazer gastar muito dinheiro à toa.

3 - Cultive as boas amizades. Amigos de escola são inestimáveis e te trazem uma sensação de segurança. Amigos de faculdade te ajudarão a ter mais oportunidades de emprego. Cultive-os. Não perca o contato com eles.

4 - Jamais se deixe dominar por ninguém. Família, namorado, melhor amigo, patrão, por ninguém. Ouça com atenção os conselhos das pessoas, especialmente as mais velhas, mas jamais permita que outra pessoa te domine.

5 - Tenha a si mesma como prioridade, sempre. Você é a única pessoa preocupada com o seu próprio bem-estar. Se você mesma não se valorizar, ninguém o fará.

6 - Preste atenção nas aulas de Matemática. Na escola parece que não servem pra nada, mas a maioria das profissões que pagam bem são da área de Exatas.

7 - Não tire fotos comprometedoras, não exagere nas selfies, e nudes jamais! 

8 - Pense antes de falar. Nascemos com duas orelhas e uma boca pra ouvir muito mais do que falar. E em boca fechada não entra mosquito. Se abstenha de "tiradas engraçadinhas" em que só você vê graça. A Fernanda de 34 anos passou por incontáveis situações constrangedoras ao tentar fazer piadas.

9 - Não perca seu tempo comparando sua vida com a de outras pessoas. Cada um tem sua própria trajetória, seus percalços e merecimentos. Enquanto você perde o seu tempo se ressentindo que fulano fez algo que você gostaria, esse mesmo fulano se ressente que você alcançou algo que ele almejava.

10 - Não tenha medo. Você é jovem e tem a vida toda pela frente. Se joga! Tope, encare, vá, viaje, tente, pule e voe! Você só é jovem uma vez e a vida de adulto é muito chata!


sexta-feira, 8 de julho de 2016

Quatro motivos porque somos contra a compra e venda de filhotes de raça.


Você tem uma cachorrinha fêmea de raça. Ela é muito linda, fofa, meiga, uma gracinha. Aí você pensa "Ah, que mal tem? Vou cruzar minha cachorrinha, vender os filhotinhos, fazer algumas famílias felizes e de quebra ganhar uma graninha extra, que mal tem?" 

Aí você compartilha o anúncio da venda dos filhotinhos, tão lindinhos, e não entende porque aparecem uns malucos que se dizem "protetores de animais" te criticando. O que é que você está fazendo de errado, trazendo lindos filhotinhos de raça ao mundo? Que mal tem isso? 

Ou você leva os filhotinhos pra uma feira de pets e aparecem uns loucos protestando contra os maus-tratos aos animais, contra os canis de fundo de quintal, mas você não tem nada a ver com isso, né? Seus filhotinhos são "puro fruto do amor", ainda que vez por outra você saiba que alguns deles morrem logo depois de vendidos. Que pena, né? São tão pequenos e frágeis... Mas não dá pra devolver o dinheiro...

Os protetores de animais nada têm contra cachorros de raça. Amamos cachorros. E gatos. E todos os pets. Sem raça, com raça, de meia raça, de qualquer jeito. O que somos contra é a irresponsabilidade, a exploração e o abandono. Vamos, portanto, tentar explicar pra você, que nós acreditamos que goste de cachorros, porque você deveria parar de cruzar o seu e vender os filhotes.

1 - Você está arriscando a vida, e explorando biologicamente, seu próprio cachorro, a cada gestação. Cada gravidez traz inúmeros riscos de complicações e problemas, ainda mais em raças pequenas. Por melhores que sejam os cuidados que você dedica à fêmea matriz, cada gestação sacrifica o corpinho da sua fêmea.

2 - Você está causando danos psicológicos à fêmea matriz e aos filhotinhos prematuramente desmamados. Imagine o que é uma mãe ser engravidada uma vez por ano, amamentar só até os três meses e ter seu bebê arrancado de si e vendido, como se fosse mercadoria. E para o bebê, ser separado da mãe tão cedo... Não parece legal, né? Se não é legal pra você, porque seria legal para aquela que você chama de "filha"?

3 - Cada filhote vendido é um cachorro de rua a mais que nunca encontrará um lar. Cada pessoa que compra um cachorro, se não fosse possível comprar, adotaria um, que seria retirado da rua. Portanto, cada lindo filhotinho que você traz à vida tira o lugar que poderia ser ocupado por um cachorro de rua.

4 - Cachorros não são mercadoria, e muitas vezes são comprados por pessoas irresponsáveis, que os abandonarão assim que derem "problema". Tome-se por exemplo o filhotinho presenteado no auge da paixão, num dia dos namorados. E depois que o namoro acaba? E o filhotinho lindo, que cresce demais para morar em apartamento? E aquele que late demais, e os vizinhos reclamam? Sim. Muitos desses acabam simplesmente abandonados na rua, pro dono "se livrar do problema". E, na rua, acabam se reproduzindo sem controle. Mas seus filhotes mestiços não serão adotados, porque  a "avó matriz" continua produzindo lindos filhotinhos, até morrer.

Nós, protetores de animais, acreditamos que você seja uma pessoa boa, que realmente ama seus cachorros, e pedimos que você reflita sobre esse texto e se questione se realmente é certo continuar cruzando seus filhinhos e vendendo seus netinhos.

Porque para nós o amor não tem preço. E filhos e netos não se compra nem se vende.





terça-feira, 14 de junho de 2016

A história de Cacau



Há mais de três anos, desde que passou o luto por minha avó, eu não atualizava este blog. Por diversos motivos, que ainda explicitarei. Mas sobretudo por estar a esperar por algo de realmente bom para escrever.

Há alguns meses atualizei meus perfis incluindo a descrição "noachide operária de 'tikkun olam' e um pseudo projeto de 'boddisattva'." "Tikkun Olam" se traduz por "retificação do mundo". E mais do que ganhar dinheiro , ter sucesso ou "felicidade" isso é o que sempre tive como objetivo principal a atingir em minha vida. E é a respeito de uma pequena contribuição neste sentido que escrevo agora.


No começo deste 2016 na atribuição de aulas escolhi, além de minha escola sede, voltar a dar aulas numa escola que eu já conhecia de anos anteriores, situada num distrito afastado 6 kms da cidade, chamado Assistência, entre Rio Claro e Piracicaba. Tivera boas experiências lá na outra vez. 

Começando a dar aulas, vi que a escola alimentava com restos de merenda a uma cachorrinha, branca com manchas marrons. Como sempre tive e gosto de cachorros, peguei simpatia por ela, e aos poucos a fui observando. Dois meses depois de iniciadas as aulas, outra cachorrinha, pretinha, com gravidez a termo, meio que "invadiu" a escola, e pariu na sala de informática. Em alguns dias o Canil Municipal, pressionado, a buscou com seus filhotes.

Ouvi conversas aqui e ali que a outra, branquinha, precisava ir embora antes que aparecesse grávida. Um aluno disse que de final de semana ela ia pedir comida no bar, e às vezes apanhava dos bêbados do boteco. Isso cortou meu coração. E passei a observá-la mais de perto.

Ela sempre ficava ao lado da inspetora. Comecei a cogitar abrigá-la para ser castrada. Perguntei a esta inspetora, Bete, se a cachorrinha tinha nome. Disse que a chamava de "Maria Encrenca". Não era um bom nome. Tirei uma foto e publiquei num grupo do Facebook perguntando como poderia castrar uma cachorra de rua gratuitamente.

Me indicaram o centro de Zoonoses de RC, liguei e me deram seis meses de prazo. Me casdastrei, pensando se em seis meses a cachorrinha ainda estaria na escola.

Foi então que um grupo de protetoras de animais, que nunca me viram pessoalmente até agora, se dispuseram a pagar pela castração da cachorrinha, se eu me dispusesse a lhe dar abrigo, "lar temporário", no jargão dos protetores. Morando sozinha num apartamento de dois quartos, topei. Era uma sexta-feira.

Na segunda, alto outono, trouxe a cachorrinha pra minha casa e lhe escolhi um nome que acreditei não só lhe cabia como lhe traria bons augúrios: Cacau, pois era branca e marrom, como um bombom de chocolate branco, e igualmente doce. No mesmo dia, horas depois, Rio Claro teve uma enorme tempestade. Na mesma semana levei Cacau para castrar, mas descobrimos que já  era castrada, então as protetoras da AICA de RC trocaram o pagamento da castração pela vacina V10, que tem duas doses.

Compartilhei, e comigo diversas pessoas, a foto da Cacau para adoção, e apareceu uma família interessada, levei Cacau até a casa deles de carro, pois queria me certificar das condições e com quais pessoas ficaria. Era um casal com duas crianças, uma delas bebê, numa casa de classe média baixa. Senti firmeza e lá deixei Cacau com o compromisso de ir buscá-la se qualquer coisa desse errado.

Fiquei feliz, segura que Cacau  estava em seu lar definitivo e até compartilhei pros meus amigos a notícia de que Cacau tinha tido um final feliz. Porém, uma semana depois, me mandaram ir buscá-la alegando que ela não tinha se dado bem com a filha menor do casal. A busquei em menos de 24 horas, de volta ao meu apartamento.

Já sabia a essa altura que Cacau era inteligente e de boa índole. E que estava disposta a fazer todo o possível para se agarrar a esta chance que lhe estava dando, de ser uma "cachorrinha de família ", e não mais uma cachorra de rua, à mercê das maldades dos bêbados. A cada momento percebi que Cacau estava bem disposta, a dar o seu melhor, a aprender, evoluir, mesmo com o choque de do nada deixar de ser uma cachorra de rua e virar uma cachorra de apartamento.

Não roeu nada. Nada destruiu ou sujou a toa. Não se entendeu muito bem com Amy, e pôr isso não pensei em mantê-la. Mas sempre por culpa da Amy, que a pentelhava e enchia o saco. Cacau nunca foi de sua parte agressiva ou hostil com minha Amy. Mas amizade entre elas não ia rolar.

Depois de sua primeira devolução, decidi divulgá-la aos meus alunos, imprimi um cartaz e passei em uma sala. Falei dela em outras. Alguns alunos se interessaram. Lhes dei meu telefone. Dois dias depois veio um aluno, feliz e sorridente:

- Professora, falei com meus pais, e eles concordaram em ficar com a Cacau!

Combinamos certinho, ele me passou o endereço, e fui lá entregar Cacau num sábado de manhã. Dei os mesmos alertas que à família anterior, que a buscaria se houvesse qualquer probelma. Era uma casa um tanto menos favorecida materialmente que a anterior. Na segunda-feira seguinte seria a segunda dose da vacina v10 da Cacau e deixei combinado de ir buscá-la. Qualquer problema já a devolveriam.

Qual não foi minha surpresa, ao chegar e perguntar à mãe do aluno, e ela muito mais receptiva, dizer que a Cacau era ótima, muito dócil, estava dando tudo certo. Só me pediu se poderia comprar uma casinha, pois não tinha condições. Comprei a casinha, levei pra vacinar, comprei coleira com medalhinha de identificação com o telefone celular dela.

A fui decolver quando o aluno, Davi, estava chegando da escola. Ele literalmente deu alguns pulos de alegria quando me viu tirar do porta malas do meu Uno Mille a casinha da Cacau. Grande, de compensado de TetraPak. Mas o suficiente para ela se esquentar. Adicionei um colchonete que já usava no meu apartamento, que coube perfeitamente dentro da casinha.

Há um mês "Maria Encrenca" estava na rua, passando frio e fome, sendo agredida por bêbados. Hoje, Cacau está vacinada, vermifugada e medicada, em uma casinha quentinha e fofa, cuidada por uma família, e especialmente por um menino de onze anos chamado Davi. E o fato de que eu de alguma forma propiciei que todo esse bem acontecesse a Cacau me traz profunda alegria e a sensação de que vim ao mundo para fazer coisas deste tipo, e que mais coisas assim quero fazer. É este tipo de história que quero contar a respeito de minha vida e de minha presença neste mundo. Espero que Deus me ajude a ter muitas mais histórias como essa para contar.






domingo, 24 de agosto de 2014

Pequeno guia com 12 dicas para os iniciantes na Internet



1 - Não aceite a amizade de estranhos. Tem gente que sai adicionando os outros "de bobo", outras que adicionam para passar vírus e dar golpes virtuais. E outras ainda que adicionam desconhecidos por motivos ainda mais escusos, criminosos mesmo. Simplesmente não aceite a amizade de ninguém que não seja previamente seu amigo na "vida real".


2 - Se você for menor de idade, não use uma foto de perfil (avatar) em que isso seja perceptível. Infelizmente, a internet está cheia de pedófilos e fotos que você acha normais e inocentes podem ser vistas de outra forma por esses tarados. Se você é menor, use como foto de perfil uma foto de um desenho, uma flor, uma paisagem, um personagem, de forma a que simplesmente pela foto o pedófilo não identifique que você é uma criança ou adolescente. Outra forma de evitar pedófilos é informar no seu perfil outro ano de nascimento, mais antigo, de forma a que os desconhecidos achem que você já é maior de idade. 


3 - Se algo é segredo, você deve ser o primeiro a guardá-lo. Não conte a NINGUÉM. Se você mesmo "espalha" o seu segredo, como pode achar que os outros vão guardá-lo? Procure, você mesmo, não espalhar fofocas nem publicar nada que ofenda a terceiros. Você poderá ser acionado judicialmente e processado no "mundo real" pelas coisas que publica na Internet.


4 - Nunca, jamais, em nenhuma circunstância, faça fotos "sensuais" ou nu. Nem com seu namorado, noivo ou marido. Pode parecer que "não tem nada de mais", mas tem sim. As pessoas são muito neuróticas com sexo e nudez. Uma única foto sem roupas poderá transformar sua vida num inferno, te tornar alvo de chacota e destruir sua reputação... para sempre. 


4 A - Pense: as pessoas cobram, muito caro, para posarem nuas... Por que você faria isso de graça... a menos que pretenda "divulgar seus serviços sexuais"? É justamente isso que as pessoas pensarão ao ver suas fotos nuas: que você é um profissional do sexo.


4 B - Pense nisso antes de tirar fotos com seu namorado ou marido na hora da "empolgação". Hoje vocês se amam de paixão, mas e quando esse relacionamento acabar? As pessoas são vingativas e aquele que você acha que é o "amor da sua vida" pode no futuro, por raiva, vazar na net suas fotos íntimas. Ele vai parecer um "garanhão conquistador", e você sairá dessa como uma "prostituta". Imagens que para você são de "amor", para os outros são pornografia.


4 C - Mesmo que você não seja vítima de um ex vingativo nem você mesma publicar as fotos "sensuais" que tira escondido de si mesmo, pense: e se você perder ou alguém roubar seu celular, tablet ou pen drive com essas fotos? E se um hacker invadir seu computador? Você acha que o ladrão terá algum escrúpulo em vender suas fotos para sites pornográficos ou de pedofilia? Com certeza, não. A única forma de se proteger disso é nunca, jamais, em nenhuma circunstância, tirar fotos sugestivas ou sem roupa. E até de biquíni.


5 - A internet é uma praça pública. Tudo o que você publicar será usado contra você, mesmo 50 anos depois. Tome muito cuidado com publicações polêmicas, brincadeiras "aparentemente inocentes" e "zoações" em geral. Se um dia, daqui a 30 anos, você for candidato a presidente, aquela sua foto entornando uma garrafa de vodka, ou com o "dedinho na boca" pode, e fará, você perder a credibilidade diante dos eleitores.


6 - Não faça postagens públicas, selecione "só para amigos". Proteja-se dos curiosos e dos haters (gente que te odeia). Seja cioso de sua intimidade, explore e se informe sobre as opções de configuração de privacidade com cuidado para que não "vazem" informações suas por aí sem o seu conhecimento.


7 - Se você for publicar algo e perceber que seus pais, ou seu chefe, não aprovariam, não publique. Nenhuma piada ou gracinha vale você "queimar seu filme" com aqueles que determinam o seu sustento.


8 - Pense se vale mesmo a pena atualizar seu "status de relacionamento" toda vez que trocar de namorado ou "ficante". Pense que no futuro quando você encontrar sua "cara metade" você pode até perdê-la se ela pesquisar e descobrir que você já teve 20 ou 30 outros parceiros. E também no que seu "grupo de amigos" vai pensar de você se você troca de parceiro engatando um novo relacionamento "sério" mês sim, mês não.


9 - Quando estiver namorando, não exagere nas "fotos românticas" e não publique fotos beijando. No futuro, se o relacionamento acabar, você vai odiar essas fotos, bem como seus futuros parceiros. Você poderá deletar as suas, mas e se houver várias dessa fotos, com dezenas de diferentes parceiros, nos perfis de outras pessoas? Nessas você não conseguirá "dar sumiço" e podem ser fruto de grande desconforto, dores de cabeça e crises de ciúme.


10 - Pense que um dia você terá filhos, netos e bisnetos. E talvez, se você não viver muito, eles só te conheçam a partir dos seus perfis nas redes sociais. Não publique coisas que poderiam envergonhar seus bisnetos daqui a 50 anos. Na internet tudo é eterno.


11 - Não perca o sono. É tentador "virar a madrugada". Não vale a pena. Não há nada que seja publicado depois da meia-noite que não possa esperar o dia seguinte para ser curtido, comentado e compartilhado. O sono é fundamental para nossa saúde e bem estar. Dormir poucas horas te fará se sentir mal e produzir pouco no dia seguinte. Durma pelo menos 8 horas por noite. E mais, se possível.


12 - Cadastre no seu perfil do Facebook todos os livros que ler e filmes que assistir. É uma forma legal de divulgar que você tem interesses culturais, de passar uma imagem positiva para todos. E, em nosso mundo, infelizmente, mais importante do que "ser" é "parecer" ou "divulgar". Cuide para que as informações que divulga sejam positivas, falem bem, e não mal, de você.


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quinta-feira, 15 de maio de 2014

O canario Frank Sinatra


O dia 14 de maio de 2014 marca para mim a conclusão de uma das mais importantes incumbências que já recebi. Em seu leito de morte, meu avô me pediu que eu cuidasse "dos seus" com um sussurro. Padecendo de câncer terminal, saturado de morfina, em seu último momento de lucidez tivemos uma conversa física e metafísica de despedida. E, no seu último olhar, que foi de preocupação, percebi que ele, vendo-se partir, me repassava a responsabilidade de cuidar dos de sua casa. E assim foi.


Os que moravam "sob a asa" do meu avô até ele partir, eram uma pessoa, 2 cachorros e 2 pássaros. Os cachorros, Jade e Whiskey, morreram de velhos com mais de 14 anos e pude, com carinho, cuidá-los até o fim do decreto de seus dias. Minha avó, cuidei bem, alimentei, pensei suas feridas, fiz compania e até ensinei a mexer no celular. Mas para surpresa de todos, precocemente, faleceu em viagem ao Rio de Janeiro, para encontrar parentes, de derrame cerebral. Dentro das minhas forças, dela cuidei o melhor que pude, no que esteve ao meu alcance. O papagaio Chico foi doado pela minha vó Tula há muitos anos para o viveiro de um veterinário.


Restava o canário, o mais longevo de todos.


Criar canários do reino é um velho costume português que herdamos e sinceramente não me lembro de nenhuma ocasião em que a casa de meu avô não tivesse ao menos um canário. Às vezes alguns. Chegaram a dar cria. Além de singelos e de trato simples, os canários do reino cantam bonito, e interagem de forma até carinhosa com seu cuidador.


Desde o falecimento de meu avô assumi essa responsabilidade com certo pânico: nunca ninguém me instruíra a como cuidar de um passarinho tão frágil, mas pude fazer o backup das muitas memória do Major Vicente Novais da Silva, homem talhado em pedra, redobrando-se em carinhos e cuidados com seus pequenos. É simples. Basta água fresca, alpiste, vitamina uma vez por dia e de vez em quando um pedacinho de ovo, de fruta ou folha verde.


É simples, mas não era um "canário qualquer", era o canário do meu avô, que ele amava, e me pedira em seu leito de morte para cuidar. Portanto, eu não tinha "só" que cuidar dele. Para honrar ao meu avô, e a confiança que ele depositara em mim, eu tinha que cuidar MUITO BEM do agora "meu" canário, como não pude cuidar do meu avô.


Esse sentimento de responsabilidade, de cumprir a contento uma missão muito importante, não tive só a respeito do canário. Mas diferentemente dele, o papagaio, os cachorros, minha vó INTERAGIAM diretamente comigo. Depois da morte do Morzinho, minha relação com eles passou a ser DIRETAMENTE com eles. O Chico, que eu conhecia desde criança, mesmo esclerosado, ainda dançava às mesmas músicas de 20 anos antes. Os cachorros, até o problemático Uísque, me abanavam o rabinho e faziam festa. Minha vó conversava comigo, eu a levava ao shopping, almoçávamos juntas.


O canário não. Eu sabia que já era adulto, ninguém soube precisar o quanto, mas minha vó garantiu que estava com eles desde antes de eu entrar na faculdade, portanto há pelo menos 7 anos. Não me lembrava de ter ouvido meu avô chamá-lo pelo nome, e questionei Tula, mas ela não soube me dizer se tinha nome. Remexendo entre os discos de meu avô, encontrei um de Frank Sinatra, e como nosso canário era bom cantor, escolhi eu mesma este ser o nome pelo qual o chamaria.


Por pelo menos 2 anos ele me estranhou. Se assustava e entrava em rebuliço quando eu me aproximava da gaiola. Bichinho frágil e arisco, no qual nem se pode tocar, enquanto o papagaio Chico nos franqueava ainda coçar-lhe o cangote...


O canário hesitava em ter uma relação direta comigo, então minha relação sempre foi com a lembrança do meu avô, através dele. Até este dia do hoje, todas as manhãs, quando descobria Frank do seu pano de dormir azul e lhe dava vitamina, me lembrava logo cedo do meu avô. E todas as noites, quando olhava no relógio para não deixar passar da hora de pôr pra dormir o canarinho idoso, me lembrava de meu avô ao cuidadosamente cobri-lo com seu pano azul para dormir, dizendo "boa noite, Frank, durma bem."


E o mesmo terror de falhar na missão em relação a cada um destes seres que eram da responsabilidade de meu avô me assombrava em relação ao canário. Tinha medo de deixar faltar-lhe água ou comida e que morresse por minha irresponsabilidade. Tinha medo de pegá-lo para cortar suas unhas e quebrar um de seus delicados ossinhos, matando-o com minha brutalidade. Tinha medo de deixá-lo fugir da gaiola ou vê-lo atacado por um pardal e que ele morresse por minha inépcia. Tinha medo de esquecer de cobri-lo à noite, no frio, ou de esquecer de descobri-lo pela manhã, e ele sufocar, morrendo por meu descuido.


Enfim, tinha um profundo medo de não corresponder a contento à missão que meu avô me dera, e mesmo post-mortem, decepcioná-lo. Que um dia eu viesse a sonhar ou vivenciar ele me recriminando a dizer: "fui tão carinhoso sempre com você e você matou o meu canário!"


Com o tempo eu e Frank fomos construindo uma amizade. Afinal, foram quase 8 anos e após o estranhamento inicial, ele percebeu que eu era sua cuidadora agora e passou a me saudar, cantar para mim, quase a comer na minha mão. Posso dizer que enriqueci sua alimentação. Mudei o simples alpiste por um mix de cereais. Sempre lhe cozinhava ovos ao ponto de perceber que ele preferia a gema à clara. Sempre lhe oferecia diferentes tipos de vegetais até o ponto de constatar que seu prediletos eram o pepino, o brócolis e a alface. Em dia quentes, lhe colocava a banheirinha e ele se refestelava com uma alegria que com certeza valeu o registro em vídeo.


http://youtu.be/_KFV-qIZeZw


Até a véspera de morrer, sempre esteve muito bem, se alimentando de forma voraz, detonando as folhinhas, limpando o cocho de vitamina. Sua convalescença foi curta. Em 13 de maio acordou baqueado, passou todo o dia sonolento e desanimado, mas ainda comeu e bebeu um pouco. Não acordou no dia 14. Não morreu de surpresa, atacado, neglicenciado. Sua água e ração estavam cheias. Sua gaiola limpa. Ele, protegido, abrigado dentro de casa.


Morreu em paz. E assim trouxe paz para uma questão de honra para mim: fazer frente e cumprir o último desejo do meu avô. Neste dia morreu o último ser que estava sob a responsabilidade do meu avô quando ele se viu surpreendido pela morte, e cuja incumbência me repassara. Hoje, mais de 7 anos depois, todos estão mortos. E posso dormir tranquila, pois cuidei deles o melhor que pude. E a morte de nenhum deles foi causada por mim.


A partir de hoje, nem eu, nem meu falecido avô temos mais nada com o que nos preocupar. Tudo está bem, em paz, completo.


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sábado, 5 de abril de 2014

Como faz bem fazer o bem



Como faz bem fazer o bem. Como fazer o bem nos faz sentir bem.


Percebi isso hoje.


Sempre tive medo/receio de mendigos, pedintes e moradores de rua. O típico medo da classe mérdia de ser assaltado, explorado, feito de bobo.


Embora os "valores cristãos" nos recomendem praticar a caridade e ajudar ao próximo, essas "boas ações" costumam ser cerceadas por diversos motivos:


1 - Recomendam não dar dinheiro aos pedintes. Pois dar dinheiro não apenas os estimula a continuar na mendicância, como a sua doação pode ser usada para a compra de entorpecentes que prejudicarão ainda mais a saúde, física e mental, destas pessoas.


2 - Recomendam, ao invés de doar diretamente aos pedintes, fazer doações a instituições de caridade, que usarão esse dinheiro em assistência social. Porém, grande parte desta verba é revertida para o pagamento dos funcionários dessa assistência, como os operadores de telemarketing que nos ligam e motoboys que vêm buscar nossas doações. Além de que grande parte dessa população de rua se recusa a ser "institucionalizada" pelo Estado ou ONG's.


3 - Recomendam até não dar comida em pacotes fechados aos pedintes. Era meu costume comprar pacotes de bolacha e miojo extra para dar aos pedintes. Porém em diversas ocasiões fui informada que é comum pedintes coletarem esses mantimentos e os trocar por pedras de crack nas "biqueiras".


4 - Recomendam não "dar trela" para moradores de rua. Pois grande parte deles apresenta problemas psiquiátricos e a última coisa que alguém quer é um morador de rua que "encafifou" com você. E, se você lhe der atenção ou doações uma vez, pode ser que ele bata na sua porta a toda hora, no estilo "você dá a mão, quer logo o braço."


Então, embora em algumas ocasiões tenha dispensado moedas apenas para me livrar rapidamente de pedintes, minha práxis comum tem sido ignorá-los, por mais mortificada que isso me fizesse sentir. 


De certa forma esse é um sentimento de culpa. Pela percepção do quanto somos abençoados por uma segurança financeira que se sustenta sobre a exploração e exclusão (ou inclusão perversa) dessas pessoas na sociedade.


Em São Paulo capital é tão grande o número de mendigos que eles chegam a fazer parte da paisagem, e tropeçamos neles sem pedir desculpas, considerando "um fato natural da vida" a existência de meninos de rua cheirando cola ao meio-dia na praça da Sé. 


Em Rio Claro - SP não há "meninos de rua" e mendigos como em SP. Estamos relativamente bem servidos por entidades de Assistência social. Temos orfanato, "Casa das Crianças", "Casa da Aldeia" (com "mães sociais") e a Casa Transitória que abriga moradores de rua. Portanto é raro, em Rio Claro, ver um mendigo jogado na calçada. E é de se supor que ao encontrar algum, ele esteja na rua justamente por se recusar à institucionalização, a ser "fichado e rotulado".


Esses andarilhos não querem "se enquadrar" no esquema de vida burguesa. O que sempre leva aos membros da "classe média", como eu, a passar por essas pessoas com ar de superioridade e desprezo, ignorando-as. E, ao sermos abordados, frequentemente nos sentimos aviltados "como ele ousa me dirigir a palavra, esse bêbado, esse drogado? Ai, que medo!" E passamos por eles correndo, virando a cara.


No dia de hoje estacionei meu carro em frente a um supermercado e perto dele havia uma casa lotérica, onde aproveitei para ir pagar umas contas. Nesse trajeto, passei a meio metro de um morador de rua. Ao passar por ele, me dirigiu algumas palavras, à quais me recusei a ouvir, passei direto, balançando minha cabeça em negativa, enquanto reparava em sua excessiva magreza. 


Prossegui meu caminho até a lotérica, pensando sobre ele, percebendo que seu jeito idiossincrático denotava que ele provavelmente era possuidor de transtornos mentais. E que estes poderiam ser o motivo de ele prosseguir na rua, recusando as possibilidades de Assistência Social que nossa cidade oferece.


Um bêbado, um louco, um drogado, um desajustado...


Pensando sobre isso na fila cogitei que direito tinha eu de julgá-lo. Netinha do vovô militar que sou, em tudo o que tive estímulo, ele teve desilusão. Em tudo o que tive oportunidades, ele teve barreiras. Em tudo o que tive conforto, ele teve dureza. Em tudo o que tive aconchego, ele teve violência.


Pequeno e magro, jogado na calçada, minha negativa em ajudá-lo começou a me incomodar. Era meu conforto que me incomodava. Era minha arrogância de superioridade que me incomodava. Era a percepção de que na verdade, pequenas circunstâncias da vida dos separavam, que me incomodava. Mas, sobretudo, que eu teria que passar de novo por ele, na volta a caminho do mercado, que me incomodava.


Resolvi que "daria uma chance às circunstâncias": se no trajeto de volta ele falasse comigo de forma que eu não me sentisse ameaçada, o ajudaria. Não com dinheiro. Isso seria pedir demais.


Na volta, mais uma vez ele falou comigo, baixo e timidamente, já antecipando ser ignorado por mais uma patricinha arrogante. Mas, para sua e minha surpresa, parei e o olhei, como a um ser humano, como talvez nem ele mais me sentisse e poucos (inclusive eu) o considerassem. Me dissera sussurrando:


- Me dá uma ajuda...


Parei e lhe disse com a maior simplicidade que pude:


- Você está com fome, sede? Estou indo no mercado, me fala do que você está precisando.


Ele abriu um sorriso amplo, mas com poucos dentes, e disse "Uma Coca". Talvez tenha pensado que se tivesse pedido uma aguardente, eu recusaria, mas eu não teria recusado. Teria-lhe sim comprado um litro de pinga, se pedisse. Na sua condição, é mais do que compreensível que queira se entorpecer. Mas só me pediu um refrigerante e isso me fez ter vontade de também lhe comprar algo de comer.


Fui ao mercado e peguei uma Coca de 600 ml pensando que depois que poderia usar a garrafa para guardar água. Fui à padaria do mercado e peguei uma bandeja de bauru de forno, quentinho, com guardanapos e sachês de maionese e mostarda. Passei pelo caixa e fui levar até ele.


- Comprei uma Coca e uma coisinha pra você comer também.


Ele abriu um sorriso um pouco mais largo, com um dente a mais e disse:


-Deus lhe abençôe!


Tenho certeza que isso me trouxe mais bem-estar do que a ele. Que este ato, quantitavamente, mais aliviou a minha própria culpa por me sentir abençoada e pouco solidária do que a fome objetiva dele. Ele se sentiu um ser humano, mas eu me senti um pouco mais "superior e boazinha".


Ao fazer essa "boa ação" que me fez sentir tão bem, me lembrei de todas as vezes nas quais, em circunstâncias similares, passei reto, ignorei, não ajudei quem previsava, e rapidamente essa intercorrência cotidiana foi esquecida. Como poderia tudo ter sido tão mais simples. E humano...


Graças a Deus, há vários anos tenho emprego fixo, segurança financeira e comprar um refri e um salgado de vez em quando para um pedinte não me custa nada nem faz rombo algum no meu orçamento, cada vez menos apertado. O que me impedia era o medo, tudo aquilo que, com certa sabedoria da experiência, nos recomendam para nossa salva-guarda.


Não escrevo isso para esfregar na cara de quem quer que seja que "sou boazinha" ou alardear "minha caridade", mas justamente para dizer que não costumo praticar caridade diretamente aos que dela necessitam, me abordam pelas ruas e pedem. E que hoje o resolvi fazer, pela primeira vez. E que, com isso, percebi que a oportunidade que esse mendigo me deu para lhe "fazer o bem" trouxe um benefício maior a mim do que a ele. Acho que, a partir de agora, rompida essa barreira, poderei fazer coisas simples como essa mais vezes. Com menos medo da próxima vez.





quarta-feira, 5 de março de 2014

Metade - Oswaldo Montenegro

Que a força do medo que eu tenho

Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
A outra metade é silêncio

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Pois metade de mim é partida
A outra metade é saudade

Que as palavras que falo
Não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas como a única coisa
Que resta a um homem inundado de sentimentos
Pois metade de mim é o que ouço
A outra metade é o que calo

Que a minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que mereço
Que a tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
A outra metade um vulcão

Que o medo da solidão se afaste
E o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita meu rosto num doce sorriso
Que me lembro ter dado na infância
Pois metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade não sei

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o seu silêncio me fale cada vez mais
Pois metade de mim é abrigo
A outra metade é cansaço

Que a arte me aponte uma resposta
Mesmo que ela mesma não saiba
E que ninguém a tente complicar
Pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Pois metade de mim é plateia
A outra metade é canção
Que a minha loucura seja perdoada
Pois metade de mim é amor
E a outra metade também


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Dos Fenômenos Literários



Em conversas com pessoas similares a mim em muitas coisas, como idade, nível social e educacional é comum um "estranhamento cultural": apesar de eu ser uma leitora voraz, não ser adepta de nenhuma "saga literária" das várias que se consagraram como "fenômenos" da "cultura pop".


As mais populares nos anos 2000 são Harry Potter, The Lord of the Rings e The Twilight saga. Não li nenhum dos livros nem assisti a nenhum dos filmes. Quer dizer, cheguei a ser compelida a assistir ao primeiro filme do "Senhor dos Anéis" com um grupo de amigos. E enquanto eu bocejava, eles exultavam.


Os motivos de eu não participar dessa "onda cultural massificada" são vários, e como já fui muitas vezes confrontada pelo espanto dos meus interlocutores por eu não parecer muito empolgada a gastar um ingresso de cinema para assistir ao "Hobbit", vale o registro.


- Tudo isso foi lançado (ou virou viral) quando eu já tinha mais de 18 anos, já tendo lido vários clássicos qualitativamente superiores em enredo, linguagem, estética, como Kafka, Shakespeare, García Márques, Sartre.


- Sempre soube reconhecer o tipo de literatura ou música classificável como "guilty pleasure": algo do que até se gosta, mas se sabe que não tem muita "qualidade". Estava ciente disso já aos 14 anos, ao reconhecer que ler livros do Paulo Coelho e chorar com as músicas do Bon Jovi eram coisas das quais no futuro eu meio que me envergonharia...


- Tive meu próprio "Harry Potter" na figura da série de 14 livros de Anne e Serge Golon "Angélica, a Marquesa dos Anjos", cada um em média com 300 páginas. Aos 12 anos já tinha lido todos, e já tinha um "cenário fantástico" no qual fantasiar com as aventuras de Angélique de Peyrac no século XVI, entre o Poitou, O Languedoc, Versalhes, o Saara e o Novo Mundo.


- Conhecer mitologia grega. Quando criança minha família tinha uma coleção de livros de mitologia grega. Como "descer o nível" depois disso?


- Ter feito faculdade de História, percebendo assim com facilidade todo o humor involuntário dos acochambramentos que os "autores pop" cometem. Isso também me trouxe uma certa visão de que se determinado autor não atingiu o nível de "clássico", com tantos clássicos imortais na minha lista de ainda por ler, devo direcionar meus esforços primeiro ao que é um "dever" ler, antes de qualquer coisa "acessória".


- Estudar a Torah. Se comparada à mitologia grega o "Senhor dos Anéis" parece bobo, o que dizer de sua comparação à Torah? Ter estudado a Bíblia Hebraica em toda a sua riqueza e multiplicidade meio que "estragou minha tolerância" a literaturas fantásticas de banca de revista.


- Perceber claramente uma "mudança de gosto" conforme os anos passaram. Um "fenômeno literário" no qual embarquei foi o de Dan Brown. Li as 400 páginas de "The DaVinci Code" em um final de semana, assim que lançado. Devorei e adorei, com 20 anos. 8 anos depois comprei "The Lost Symbol". Li, com sofrimento, 35 páginas. Achei um lixo completo. Coloquei na prateleira e nunca mais senti vontade de retomar. Se eu fosse ler hj o "Código da Vinci" seguramente também abandonaria.


Em suma, sem querer me desfazer das paixões de ninguém, passo muito bem sem literatura-pop de vampiros, bruxinhos, elfos e gnomos.


Depois de ler Eclesiastes, Provérbios, Sabedoria de Salomão, como poderia apreciar "O Segredo", "A cabana", "Quem mexeu no meu queijo"?



sexta-feira, 29 de novembro de 2013

15 curiosidades a meu respeito



1 - Nasci exatamente no dia do aniversário do meu avô - e sempre fui sua neta preferida. A gente se entendia só pelo olhar ;)

2 - Nunca chamei meu avô por "avô", o chamava de Papica, Moreco e Morzinho. Porque ele era o AMOR em forma de avô. Ah, ele era primo em segundo grau do presidente militar Humberto de Alencar Castello Branco.

3 - Estou no meu terceiro poodle branco, mas nenhum deles foi comprado - um ganhei de presente, os outros 2 foram adotados da rua. Eu adotaria mais cães se pudesse. Mesmo!

4 - Antes de eu nascer, minha família morou em Fernandópolis - SP. Mas não é por isso que me chamo "Fernanda". Nunca estive em Fernandópolis.

5 - Sou cinéfila e bibliófila. Tenho centenas de DVD's e livros. Quem for me dar um presente, filmes e livros são a melhor opção :)

6 - Sou muito ligada em nutrição, desde sempre. Faço questão de todo dia comer vegetais variados, nem que seja uma saladinha. E como castanha do Pará todo dia. Acredito que uma boa alimentação poderá me fazer chegar até os 100 anos!

7 - Quando criança, o "sonho da minha vida" era ser paquita da Xuxa. Virei historiadora. Portanto, quando você vir uma menina falando que seu sonho é ser funkeira, não perca a esperança.

8 - Criei minha primeira página na internet com 15 anos, em 1998. Era dedicada às poesias de Cecília Meireles.

9 - Meu primeiro computador era um 386, que rodava Windows 3.1 . Odiei quando lançaram o Windows 95. Já usei floppy disks no drive "A".

10 - Evito ao máximo tomar qualquer tipo de remédio. Até pra gripe e dor de cabeça. Só tomo se estiver quase morrendo.

11 - Aprendi castelhano vendo novelas mexicanas quando era adolescente. Só com esse "treinamento", já consegui ler livros inteiros em castelhano.

12 - Só uso brincos. Colares, anéis e pulseiras me incomodam.

13 - Já namorei um cara que tinha exatamente o dobro da minha idade. Durou 4 anos.

14 - Eu sou muito "prendada": sei cozinhar, bordar, tecer, crochetar, fazer caixas de tecido, costurar à mão. Mas não me peça pra fazer faxina. Odeio...

15 - Minhas cores preferidas são o lilás e o verde-água. Minhas comidas preferidas são charuto de folha de uva e salpicão de frango.

E você, quais são as 15 curiosidades a seu respeito?

sábado, 2 de novembro de 2013

Saudades Eternas



"Saudade" é um desses raros substantivos exclusivos da língua portuguesa. Análogo à melancolia, ao saudosismo, a sentir a falta, ausência, de algo, but not quite that. A saudade é muito mais amplo que tudo isso, pois podemos senti-la até do que não vivemos.

"Eterno" tem um significado universal, amplo, e fácil: é aquilo que não tem fim, não esmorece nem diminui conforme o tempo passa.

Dia 2 de novembro é Feriado de Finados, dia dos mortos, no Brasil. Estive hoje no cemitério, apesar de não gostar. Minha mãe me pediu que a levasse e não pude recusar, por mais desconfortável que isso seja para mim.

Eu não sinto que no túmulo no qual seus corpos jazem esteja também a "presença espiritual" dos meus amados já falecidos. Sei que a alma dos meus mortos não está mais presa ao seu corpo físico.

No túmulo da minha família jazem 2 mortos: meu avô Vicente e minha avó Tula. E ao visitá-lo hoje percebi que a saudade que sinto do meu avô é muito mais pungente que a da minha avó.

À Tula pude acarinhar, cuidar, cozinhar, conviver, acompanhar. Por 6 anos fui sua cuidadora e companheira.

O mesmo não tive a oportunidade de fazer por meu avô, meu amado Morzinho. Como gostaria de ter igualmente tido 6 anos para dele cuidar, acarinhar, em seu abraço me aninhar. Queria ter-lhe pensado as feridas. Ter-lhe feito mil comidas apetitosas. Ter assistidos várias novelas sentada ao seu lado.

Tula morreu há menos de um ano e a saudade que sinto dela me traz paz.

Morzinho morreu há quase 7 anos e a saudade que sinto dele ainda me rasga. Sinto que não gastamos até o fim a parafina de nossa vela. Sinto que havia ainda muito por fazer. Eu queria tê-lo conhecido muito mais profundamente. Queria, tanto, ter tido a oportunidade de cuidar dele, de conviver mais no dia-a-dia com ele, como fiz com a Tula, em seus últimos anos.

Ficou algo "no ar", algo incompleto, que ainda me faz sentir que há uma pendência entre nós. Não tivemos o tempo devido para, com ambos adultos, nos conhecer plenamente. Queria ter-lhe conhecido mais defeitos. Se tinha preconceitos. Se execrava a arte moderna. Se era contra a mini-saia. Se preferia cerveja lager ou pilsen.

Conheci meu avô como uma criança conhece a um pai protetor. Sinto que me faz falta tê-lo conhecido como adulta. Como dois adultos divagando sobre a vida. Queria ter-lhe mostrado minhas poesias. Queria ter-lhe exibido minhas fotos com amigos. Queria ter-lhe apresentado meus namorados. Ainda não tenho filhos, mas como queria que ele tivesse-os conhecido!

Restou muito "por fazer" entre eu e meu avô. Por isso ainda dói a saudade. Queria ter-lhe dito muito mais coisas, especialmente o quanto ele era importante, fundamental, basilar, para mim. 

Espero que talvez, de onde estiver, ele me escute, e saiba que a minha saudade dele é incomensurável.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Do Escapismo



Confesso que "escapei bastante" de finalmente sentar para escrever este texto. Há alguns meses elaborei esta idéia e inúmeras foram as noites nas quais planejei, enfim, colocá-la por escrito. Mas sempre fugia disso. Nem hoje o faria, apesar desta ser uma das ocasiões em que o planejei. Porém, sendo este um dia chuvoso, falham minhas 2 possibilidades de conexão (paga) à internet, e o desvendei como um "ultimato" para tornar o projeto realidade.

Sei porquê tanto disto fugi. É porque essa idéia não é, nem a mim, nem a ninguém, confortável ou reconfortante, mas seu exato oposto. Espero que cheguemos até lá. Incomoda sobre isso pensar, e plasmar em texto.

"Escapismo" é o nome de uma técnica através da qual os ilusionistas realizam o espetáculo do se livrar de amarras aparentemente impossíveis. Harry Houdini era um grande mestre nisso: ser enterrado ou submergido numa camisa de força cheia de cadeados, alarmando toda uma platéia com a possibilidade de morrer na frente deles, para poucos segundos depois reaparecer, magicamente, livre de todas as trancas, num feito aparentemente sobrehumano.

"Escapismo" também é o nome de um "fenômeno psicológico" marcado pela fuga, ou negação, da realidade imediata, que resulta num "projeto idealizado" numa "antevisão" de uma utopia "muito melhor que a própria realidade".

O movimento estético-literário conhecido como "Romantismo" se baseava grandemente nisso: na fuga da realidade através da idealização de um passado heróico. Ou, no caso brasileiro, da invenção de um passado grandioso, feito sobre o molde europeu (temos aí o "cavaleiro-índio" Peri de "O Guarani" de José de Alencar como melhor exemplo).

Vivemos, ainda, em um mundo Romântico. Embora a "moda literária" da "alta cultura" tenha passado pelo Realismo, Simbolismo, Parnasianismo, Modernismo e Pós-Modernismo, a "baixa cultura", do "povão" me parece ter meio que "estacionado" no "belo" paradigma romântico. 

Pois é muito confortável "escapar" da realidade que nos oprime. Que nos diz que somos pequenos, frágeis, desimportantes, vivendo um tempo passageiro insignificante, num lugar risível, sem nada de especial. Queremos ser grandiosos, protagonistas de uma heróica senda de descobrimento, queremos nos sentir herdeiros de antepassados gloriosos, portadores de uma herança superior a todas as demais. Enfim, gostamos de nos sentir especiais, únicos, expoentes de uma grande tradição.

E quando nada disso há, o inventamos. Simplesmente o inventamos. 

Nisso, vale a leitura do "A invenção das tradições" "Eric Hobsbawm", que basicamente explicita como todos os "símbolos da nacionalidade", muitas vezes venerados como sagrados e atemporais, foram fabricados em determinado contexto histórico, para cumprir objetivos políticos específicos, enumeráveis.

Muitas pessoas recorrem, portanto, ao Nacionalismo, para escapar da triste realidade diante dos seus olhos, num mecanismo psico-sociológico de negação, de fuga da realidade. É mais ou menos assim: "minha realidade é ruim, porém meu passado, o passado dos meus ancestrais, do meu povo, da minha nação, é grandioso, vejam nosso folclore, nossos herois, nossa tradição..."

E isso também pode se dar por adoção, por "adesão" a uma cultura vista como "melhor", ou "mais tradicional" (e portanto "mais verdadeira", supostamente). É nesse ponto que toco na conversão religiosa.

O Brasil é, ainda hoje, um país francamente católico. Mas não "Católico Apostólico Romano", mas "católico à brasileira". Vivenciamos um "Catolicismo folclórico", popular, poroso, osmótico, cheio de influências externas, reminiscências, marcado pela presença das tradições indígenas e africanas. Somos católicos por tradição, mas meio que "estranhamos" o Catolicismo "puro sangue", não nos identificamos com o latim do rito romano. Por ter sido uma religião que nos foi em grande parte imposta, muitas pessoas não a sentem como "verdadeira" e procuram uma alternativa "melhor".

E esse "melhor" necessariamente parece passar por um "mais antiga" ou "mais pura". 

Nisso, muitos enveredam pelo Protestantismo. Embora em "secos dados históricos" essas vertentes sejam muito mais jovens que o Catolicismo, todas elas alegam "reviver o Cristianismo primitivo" tal qual era praticado pelos primeiros cristãos, antes dos "desvios doutrinários" de viés pagão que teriam "manchado" a Igreja Católica. Portanto, embora mais jovens, as igrejas protestantes alegam representar um "resgate" de práticas primevas, "abandonadas" pelos desvios da Igreja de Roma.

Mas há muitos que não se satisfazem com uma tradição de "meros" 2 mil anos. Querem ir além, embora nem sempre "radicais" ou "fundamentalistas", conseguem perceber que todo o Cristianismo é uma derivação de algo mais antigo, e portanto, "idealmente" "mais verdadeiro": o Judaísmo.

E isso vai ao encontro de outra ponta histórica mal-amarrada: a ausência de uma "etnia brasileira". O "brasileiro" é, essencialmente, mestiço e bastardo. E isso nos traz grande desconforto. Como povo, somos o resultado de relações ilícitas, ou mesmo forçadas, entre brancos, negras e índias. Somos filhos do estupro, e não nos sentimos bem com isso. Somos filhos bastardos de mãe negra/índia pobre, não reconhecidos pelo pai branco, rico.

Para fugir ao enfrentamento dessa realidade que não nos agrada, INVENTAMOS (ou aderimos a) TRADIÇÕES GRANDILOQÜENTES que nos permitam, num claro mecanismo de fuga, ressignificar nossa identidade, avolumando-a, aprofundando-a, melhorando-a, tornando-a em todos os aspectos superior àquela diante dos nossos olhos, palpável, da qual queremos fugir, a qual nos é desagradável, posto que real.

Como se disséssemos:

"Eu achava que não tinha tradição, mas veja só, 'redescobri' ou 'adotei' uma tradição antiqüíssima, super verdadeira, a mais antiga do mundo!"

"Eu achava que não tinha identidade, mas veja só como é tradicional, antiga, a senda que estou percorrendo!"

Tão mais bonito que assumir-se "católico por imposição, mestiço a contragosto, bastardo sem herança" é o INVENTAR-SE judeu, budista, messiânico, hare krishna, muçulmano, por "resgate" ou "conversão". Psicologicamente para nós, muito mais fácil que encarar uma realidade "desonrosa" é escapar-se dela enveredando por sendas exóticas, idealizadas, distantes no tempo e no espaço, e por impalpáveis, idealizadas, teóricas, "qualitativamente superiores" a tudo o que nos é real, cheio de defeitos.

Foi, é, difícil para mim colocar essa elaboração de idéias por escrito por perceber-me também sua praticante. Também eu, em variadas fases da minha vida, procurei caminhos que me permitissem fugir de mim mesma, de encarar-me em profundidade: amores românticos, identificação com a tradição oriundi, paulista, como bat anussim, noachide. 

Por muito tempo considerei seriamente a possibilidade de me converter ao Judaísmo. Fosse mais fácil, o teria realizado e talvez essa reflexão nunca se realizasse: se eu ocupasse minha mente no aprofundamento numa "cultura mais verdadeira" que a minha própria "gastaria" minha "libido reflexiva" no apreender reflexões de veneráveis outréns. E não no aprofundamento reflexivo em mim mesma.

Muito mais fácil que encarar a mim mesma constatando a fraqueza de minha "parca filosofia" é adotar o escopo interpretativo de gigantes filosóficos testados pelos séculos como Maimônides, Buda, o profeta Muhammad, Jesus de Nazaré.

Como se desistíssemos de investir na meditação própria "terceirizando" essa reflexão, confiando em uma "revelação" feita a doutos terceiros. Por isso é tão confortável, e reconfortante, "abancar-se" numa doutrina religiosa. E quanto mais "tradicional", justificada em sólidos fatos históricos ela for, melhor para nos convencermos de que "esta sim" é a "filosofia de vida real" pela qual devemos nos pautar.

Muito mais simples que executar a árdua, e muitas vezes infrutífera, tarefa do encarar-se em profundidade é o escapar de si mesmo, dirigindo nossos esforços reflexivos para o "aprender o caminho dos outros", adotando uma religião que nos ilude com realizações que o "descobrir às cabeçadas o próprio caminho" pode jamais nos prometer.

Elis Regina (via Milton Nascimento) - Cais http://youtu.be/aHoBvW16q78 
Natiruts - Vamos Fugir http://www.youtube.com/watch?v=iQ2ddk4VOsc 
Vespas Mandarinas - Não sei o que fazer comigo http://www.youtube.com/watch?v=9f5ERVxbcZc 
O Teatro Mágico - Eu não sei na verdade quem eu sou http://www.youtube.com/watch?v=Hlj8EtVoRi8 

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quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Vou-me embora pra Pasárgada - Manuel Bandeira


Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

 

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

 

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

 

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

 

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.




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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Balanco de Yom Kipur 5774

Como é difícil escrever este texto!  Muitas foram as coisas inesperadas que me surpreenderam neste último ciclo anual. Há 1 ano nem remotamente eu suspeitava que coisas tão determinantes me aconteceriam tão rápido.

Minha vida sofreu uma verdadeira guinada, uma reviravolta completa. Muita coisa mudou, à minha revelia. Me mudei de casa e desde que isso aconteceu, tenho tido bem menos inspiração para escrever, e até algum ponto isso é até bom.

A esta altura dos meses, ano passado, minha avó passou por uma cirurgia de catarata. Por 2 meses não pôde dirigir, cozinhar, tomar banho. Neste intervalo, aproveitou para vender seu velho carro, e ficamos apenas com o meu. Sua convalescença foi um período em que nos aproximamos bastante. Apesar de nossa proximidade nos últimos anos, sempre houve um certo "estranhamento" entre nós.

Quando eu era criança, ela foi obrigada a me criar, e sempre me deixara bem claro que isso era a seu contragosto. Diferentemente da Cristhiane e da Patrícia, que ela tratava como se fossem suas filhas, e a chamavam de mãe, sempre houve uma linha bem traçada, clivando que ela não me considerava da mesma forma, que eu era um estorvo em sua vida, uma "agregada indesejada". Nunca lhe joguei isso na cara, e até compreendia isso. De fato, não era obrigação da Tula me criar, eu morava em sua casa de favor, e isso sempre ficou bem claro de sua parte. 

Mas foi com um certo deleite que certo dia, após sua cirurgia, enquanto a pensava e lhe levava comida que lhe disse:

- Vc imaginava, Tula, que das suas 3 netas, seria EU a que cuidaria de vc quando vc estivesse idosa?

Ela fez uma expressão que dizia "se eu soubesse, teria te tratado com mais carinho", mas disse apenas:

- A vida nos ensina muitas coisas inesperadas.

Me sinto bem em poder dizer que dela tratei melhor quando ela precisou de mim do que ela me tratou quando eu era criança e precisei dela. Porém, tudo o que fiz por ela foi de boa vontade, não meramente para "cumprir uma obrigação". Independentemente de ter me cuidado quando criança, Tula era minha avó, eu a amava, e por ela fiz tudo o que podia, e mais até.

Muitas foram as comidinhas que preparei para sua e minha degustação. Posso dizer que cozinhava "para ela" pois desde seu falecimento, consigo morreu minha gana de preparar tais quitutes. Pouca graça tem cozinhar apenas para si própria. 

Recebi em Rio Claro, ainda na casa de minha avó,  a visita de amigos muito queridos, que vieram especialmente de Sampa. Romeu e Gisele, esta com marido e filhinho. Foi uma grande alegria que estes tenham se disposto a viajar quase 200 quilômetros para me visitar e conhecer minha então casa. Prova de profunda e duradoura amizade.

Também recebi a visita de Mainá, vinda de Piracicaba. Em 5773 estive em sua casa de Sampa 2 vezes. Uma quando fui prestar o frustrante concurso para professor na prefeitura de Sampa, outra para passar o Reveillon.

Meu Natal de 2012 foi um dos "top 5" de toda a minha vida. Tive a sorte de ser acolhida pelo Romeu em sua festa. A família do Romeu é simplesmente ma-ra-vi-lho-sa, tem uma ótima energia. São muitos os primos, os tios, os agregados, todos unidos numa "vibe" de amor, festa e comilança. Passei um Natal feliz, com uma família unida pelo amor. Adorei, e espero no futuro repetir a experiência. Aproveitei que estava na Vila Formosa para matar as saudades da tia Maria do Carmo, irmã do meu avô Morzinho, do tio Jaci e do falecido primo Mauro.

Passado o Natal, comemorei meu aniversário com 2 churrascos na beira da piscina na casa da Gisele. Todos os amigos antigos compareceram: Maty, Romeu, Aline, Thaís e até o Chico. Inesquecível.

O Reveillon passei com a Mainá e a Sandra. Fomos a uma festa super dez, dos amigos da Sandra. No dia seguinte, primeiro de janeiro, estava tão feliz, despreocupada, até receber uma ligação e "cair do céu". Era minha mãe Maria José Tomasella dizendo que justo na noite da virada a casa de minha avó tinha sido assaltada. 

Eu pretendia ficar mais um pouco em Sampa, mas tive que voltar imediatamente para Rio Claro. Minha avó Tula estava viajando, em Ubatuba, e cabia a mim tomar as providências práticas necessárias.

Foi triste chegar e ver a casa toda revirada. Meus objetos pessoais devassados. Itens de valor, bijuterias finas, jóias, barras de ouro, dólares, subtraídos. Só com o chaveiro gastamos mais de 500 reais. Tomei todas as providências necessárias, para poupar minha vó disso. Só no dia seguinte recebi uma ligação dela, bem menos nervosa do que eu esperava, comunicando que acabara de saber do ocorrido. Quando lhe disse que eu já tinha feito tudo o necessário e a casa já estava com novas trancas, percebi na calma expressa em sua voz que confiava em mim para cuidar e guardar sua casa.

No final de janeiro vieram nos visitar meu tio Renê e meu primo Renan. No retorno ao Rio de Janeiro, levaram a Tula, pois Cristhiane viria da Austrália com namorido e bebê Liam Novais Dermott. Foi numa sexta à noite, ao voltar do trabalho quase onze da noite, que vi minha avó pela última vez. Nos abraçamos e despedimos rapidamente. Na manhã do sábado seguinte foi para o Rio de Janeiro, saudável, alegre e saltitante, para me ser devolvida menos de 1 mês depois dentro de um caixão.

Não queria ir ao Rio. Queria voltar depois de 2 semanas, mas insistiram para que ficasse mais. No sábado 16 de fevereiro liguei no seu celular, estranhando que já fazia algum tempo que não me ligava. Quem me atendeu foi Regina. Fingiu não reconhecer minha voz e perguntou "quem está falando".

-É a neta dela.

Me disse que Tula estava hospitalizada com crise respiratória, o que sempre acontecia quando ia ao Rio. Lhe disse que a fizesse me ligar quando retornasse para casa. Neste sábado, quase pelas 23 horas, Tula me ligou para dizer que já estava em casa.

A última vez em que falei com minha avó Tula foi na noite de terça 19/02/2013. Era tarde da noite. Ela me ligou e enquanto desfiava o rosário de suas dores e mal-estares, os quais eu estava acostumada a pacientemente acompanhar, ouvi ao fundo a voz insensível de Cristhiane dizendo:

- Lá vai ela fazer o relatório das doenças...

Percebi que isso fez Tula resumir seu relato, sentindo-se criticada como uma "velha chata", e rapidamente se despediu. Ainda me machuca que a última vez em que pude falar com minha avó, nossa conversa foi diminuída, interceptada, por essa frase. Tenho certeza que, do além, Tula sabe extamente do que estou a falar.

2 dias depois Tula sofreu um derrame cerebral. O soube por Maria José. Perguntei aos do Rio se ela corria risco de vida, pois em caso positivo imediatamente pegaria estrada com Maria José para lá. Me asseguraram que não. No domingo 24 de fevereiro meu tio Renê ligou, perto do meio dia, para comunicar seu falecimento.

Eu tive apenas 2 horas para fazer uma malinha com os itens essenciais e sair de casa. Pois 2 horas é o tempo que leva a viagem de Sampa a Rio Claro, e já estavam a caminho Regina, Patrícia, Letícia e Alex. Era demais para mim ter que lidar concomitantemente com o falecimento de Tula e a presença deles e dos parentes que logo viriam do Rio de Janeiro.

Liguei para Maria José vir em casa, para "receber as visitas" depois de eu sair. A ela expus toda a minha dor. Sei que minhas cordas vocais jamais voltarão a ser as mesmas depois de lhe ter externado, em 200 decibéis, toda a dor que rasgava a minha alma. E ainda rasga. Eternamente lhe serei grata por ter ouvido toda a expressão do meu sofrimento. Lhe expus minha pior face, sem máscara. Vomitei grande parte de minha mágoa, e isso me fez bem. Especialmente ao saber que, mesmo lhe expondo meu "pior lado", ela continuava me apoiando.

Após fazer minha malinha e lhe entregar as chaves, fui me abrigar na Toka do Shrek, república estudantil dos meus amigos da Física da Unesp. O João Eduardo Fonseca nisso me fez um favor inestimável. Na segunda seguinte do velório, só compareci na última hora, completamente fora de mim.

Pedi que João me acompanhasse pois sinceramente não sabia se conseguiria me controlar, ou se voaria no pescoço de Regina, se faria um escândalo homérico, se lhe cuspiria na cara. Sei porque não o fiz. Foi por causa de Sofia.

Minha prima em segundo grau, Viviani, tinha 2 filhas que eu conhecia: Ivana e Amanda, e uma terceira, a mais nova, que eu nunca tinha tido oportunidade de ver, Sofia. Moravam em Brasília, e eu só conhecia Sofia do Facebook e do Instagram.

Cheguei no velório, recebi um abraço do meu tio Renê ao qual hj me arrependo de ter aquiescido, e me arrastou para ver Tula no caixão; lá fiquei um minuto, e sem suportar, saí para fumar um cigarro. Nisso vi chegar Viviani, com seu marido Miguel e a menina Sofia. Me abraçaram, deram os pêsames e falaram que tinham vindo de carro, direto de Brasília.

Olhei a bela Sofia e comigo pensei: "Eu não vou fazer essa menina ter se abalado de Brasília até aqui para voltar traumatizada, sabendo que essa família é tudo menos 'uma família'." Então foi por ela, para não violar sua inocência, que "fiquei na minha" e me contive.

Terminado o enterro, voltei à Toka, segura de que os parentes em menos de 1 semana iriam embora. Ledo engano. Cristhiane, marido, Liam e Regina ficaram por um mês, o que nem em meus piores pesadelos eu esperava...

Nisso soube que quase levaram embora o canário Frank. Dele cuido há 6 anos, desde o falecimento do meu avô. Me disse Maria José que ao chegar do velório, Patrícia já estava de saída, com a gaiola do Frank no carro. E que foi ela que, alarmada, impediu que o levassem embora. Foi triste perceber que sem me consultar, sem me fazer uma mera ligação no meu celular, iam simplesmente levar embora o MEU CANÁRIO, do qual eu cuidava há 6 anos e do qual Regina já tentara dar fim. Falta de respeito, da mais rasa consideração é apelido. Iam simplesmente subtrair meu pet sem sequer pensar "hum, será que a Fernanda, que cuida dele há 6 anos, não vai achar ruim?". Agradecerei eternamente a Maria José ter impedido que o roubassem de mim.

Quando finalmente Cristhiane, Regina & cia foram embora, vi que tinham espoliado a casa. Sem me consultar ou comunicar, deram embora móveis. Levaram inúmeros itens. Quadros, fotos, utensílios. Até coisas que já eram minhas, q Tula me tinha dado, como um belo vaso de vidro, transparente com azul. Raparam completamente os porta-joias. Levaram todos os soutiens. O aparelho de som, e muitas outras coisas. A casa foi espoliada, pilhada.

Encheram 2 carros, levaram tudo o que quiseram. Como se com sua saída a casa fosse ficar vazia, sem ninguém. Pois como a um "ninguém" me consideravam.

Uma semana depois tive uma das piores decepções de minha vida. Menos de 1 mês antes de falecer minha vó tinha comprado, por indicação de Renê, uma televisão nova. Quando foram embora, Regina deixou avisado a Maria José que logo Patrícia viria busca a TV nova.

Me senti tratada como uma "caseira", uma empregada da família, sem direito a absolutamente NADA. Que direito Patrícia tinha à TV nova se tinha sido EU a cuidar de Tula, e Patrícia não fizera jamais NADA por ela, além de lhe pedir dinheiro? Além disso, já estava há alguns anos combinado entre eu e a Tula que quando fosse a ocasião de a casa dela ser desfeita, eu ficar, nas palavras dela "com uma casa montada": todos os seus eletrodomésticos e móveis ficariam comigo. Foi triste perceber que no momento em que ela faleceu, tudo o que ela "deixou dito" passou a ser sumamente ignorado pelos parentes. Ela, e sua vontade, deixaram de ser respeitados no momento em que morreu.

Mandei um e-mail a Renê dizendo que pretendia ficar com a TV nova. Ele me ligou, tresloucado, completamente fora de si, me xingou, ofendeu, inventou que tinha "sustentado a mim e ao meu gigolô" (desconheço a o que se referia), ameaçou vir a Rio Claro me bater, desligou o telefone na minha cara.

Neste dia perdi um tio, o único que tinha. Eu jamais havia-lhe feito nada. Pelo contrário, até então sempre me tratara muito bem, com o respeito que eu mereço. No momento em que Tula faleceu, tudo isso sumiu. Eu passei a ser "um problema" em sua vida. Os 6 anos, e seis anos não são seis dias, durante os quais eu tinha cuidado da Tula eram simplesmente IRRELEVANTES. Me tratou como um lixo, insinuou que eu era uma prostituta, e que eu lhe devia dinheiro. Neste momento, morreu para mim. Não pretendo jamais voltar a vê-lo, constatado que por mim não tem nenhum respeito, nenhum agradecimento, nenhuma consideração. Nunca mais me ligou, nem nos falamos. Que assim fique.

Depois disso percebi que a minha simples existência era uma "pedra no sapato" dos 2 herdeiros da minha avó. Se me permitiram continuar na casa mais um tempo, não foi por eles. Foi por 2 coisas, que fugiam completamente a mim.

Quando eu soube do AVC da minha avó uma só coisa me veio imediatamente à cabeça: avisar aos seus amigos do Centro Espírita Fé e Caridade, pois sabia que Tula, muito dedicada ao Espiritismo, o queria, e estava necessitada de suas preces.

Imediatamente pensei em ligar para Dona Dirce Martins. Só não o fiz na hora pois já era tarde da noite. Na manhã seguinte, esperei soar 9 da manhã e liguei para Dona Dirce, pedindo que mobilizasse os amigos do centro em oração. Depois de Tula falecida, Renê me disse que pedira a dona Dirce orientações de como proceder e ela determinara: "tudo deve ficar como está por 6 meses", o tempo mínimo para o espírito de Tula se "desprender" de suas coisas materiais.

Isso Regina não respeitou, espoliando a casa em menos de 1 mês. Só não fez pior pois estava de viagem marcada para a Austrália. Não fosse essa viagem, previamente marcada, eu não teria podido permanecer mais na casa. Portanto, se fiquei 4 meses na casa após o falecimento da Tula não foi por "bondade" ou "favor" de ninguém, nem em respeito aos meus direitos ou sentimentos. 

Ao saber que Regina voltaria da Autrália no final de julho, estabeleci esta como a minha "deadline" para me mudar. Não queria jamais voltar a ver-lhe a cara.

Tive 4 meses para encaixotar tudo. Lavei TODAS, todas as minhas roupas. Selecionei e lavei, todos, os panos de prato, tapetes e toalhas da Tula que queria levar. Foram 4 meses melancólicos, cheios de fantasmas, reminiscências, lembranças, saudades, nos quais todo dia ia ao antigo quarto da Tula, montado como um diorama à sua memória, como se ela ainda estivesse presente, e em sua memória, eu fazia orações. Várias vezes, com o coração triste e pesado, lhe agradeci por tudo, e dela me despedi.

Minha tristeza só foi aplacada pela chegada da pequena Amy. Presente da minha mãe, já explorado em outro texto. Ganhei uma nova filha, uma poodlezinha branca, com mais personalidade do que eu gostaria, mas adorável justamente por ser cheia de "marra". Amy é única e não a trocaria por nada.

Em julho, de férias, fui a diversas imobiliárias escolher minha nova residência. Visitei mais de 15 e escolhi uma que, embora mais cara do que gostaria, é per-fei-ta pra mim e pra Amy, com um grande jardim, que aproveitamos ao máximo.

Quando eu era criança, Maria José morava numa chácara, na qual plantava diversos gêneros alimentícios. Estou de certa forma emulando em meu amplo jardim a chácara na qual cresci. Plantei canteiros com ervas (manjericão, orégano, hortelã, salsinha, cebolinha, menta, pimenta, boldo, babosa). Tenho um tomateiro, em produção, só para mim. Plantei sementes de mamão, e farei ainda canteiros de diversas verduras. Não quero "flores", mas coisas úteis, de comer.

Me sinto muito feliz na minha casa nova. Ao me mudar da casa da Tula, levei tudo o que considerava que justamente me cabia. Deixei muitas coisas de valor: metade de uma baixela, a batedeira, o filtro de água, a cafeiteira, o foot spa, o umidificador de ar, a lavadora a pressão, o microondas, uma mesa de jantar com aparador, várias camas, colchões, 3 televisões, 1 videocassete, enfim, deixei várias coisas que poderia ter levado, mas não o fiz. Não por quem os viria levar, mas pela Tula. Levei apenas o que eu sentia que ela aquiescia em eu levar.

Na casa nova, só minha, me sinto muito mais leve, pronta para começar "vida nova". Ao me mudar rompi definitivamente com meu tio, minha ex-mãe e irmãs. É triste saber que não deixei para trás boa coisa, ou grande coisa. O falecimento da minha avó Tula foi o fim da triste família que um dia tive.

Hoje me sinto livre. Livre do peso das lembranças, das obrigações, das cobranças, das mágoas. Coloquei uma pedra, um ponto final, no passado.

Agora, aos 30 anos, me sinto livre para começar vida nova. Espero sinceramente que o ano de 5774 me seja mais propício, me traga mais alegrias, pois 5773 foi "bem foda", difícil, com muita coisa ruim. Mas agora tudo passou e um novo futuro, limpo, se descortina.

Que venham coisas melhores!

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