O dia 14 de maio de 2014 marca para mim a conclusão de uma das mais importantes incumbências que já recebi. Em seu leito de morte, meu avô me pediu que eu cuidasse "dos seus" com um sussurro. Padecendo de câncer terminal, saturado de morfina, em seu último momento de lucidez tivemos uma conversa física e metafísica de despedida. E, no seu último olhar, que foi de preocupação, percebi que ele, vendo-se partir, me repassava a responsabilidade de cuidar dos de sua casa. E assim foi.
Os que moravam "sob a asa" do meu avô até ele partir, eram uma pessoa, 2 cachorros e 2 pássaros. Os cachorros, Jade e Whiskey, morreram de velhos com mais de 14 anos e pude, com carinho, cuidá-los até o fim do decreto de seus dias. Minha avó, cuidei bem, alimentei, pensei suas feridas, fiz compania e até ensinei a mexer no celular. Mas para surpresa de todos, precocemente, faleceu em viagem ao Rio de Janeiro, para encontrar parentes, de derrame cerebral. Dentro das minhas forças, dela cuidei o melhor que pude, no que esteve ao meu alcance. O papagaio Chico foi doado pela minha vó Tula há muitos anos para o viveiro de um veterinário.
Restava o canário, o mais longevo de todos.
Criar canários do reino é um velho costume português que herdamos e sinceramente não me lembro de nenhuma ocasião em que a casa de meu avô não tivesse ao menos um canário. Às vezes alguns. Chegaram a dar cria. Além de singelos e de trato simples, os canários do reino cantam bonito, e interagem de forma até carinhosa com seu cuidador.
Desde o falecimento de meu avô assumi essa responsabilidade com certo pânico: nunca ninguém me instruíra a como cuidar de um passarinho tão frágil, mas pude fazer o backup das muitas memória do Major Vicente Novais da Silva, homem talhado em pedra, redobrando-se em carinhos e cuidados com seus pequenos. É simples. Basta água fresca, alpiste, vitamina uma vez por dia e de vez em quando um pedacinho de ovo, de fruta ou folha verde.
É simples, mas não era um "canário qualquer", era o canário do meu avô, que ele amava, e me pedira em seu leito de morte para cuidar. Portanto, eu não tinha "só" que cuidar dele. Para honrar ao meu avô, e a confiança que ele depositara em mim, eu tinha que cuidar MUITO BEM do agora "meu" canário, como não pude cuidar do meu avô.
Esse sentimento de responsabilidade, de cumprir a contento uma missão muito importante, não tive só a respeito do canário. Mas diferentemente dele, o papagaio, os cachorros, minha vó INTERAGIAM diretamente comigo. Depois da morte do Morzinho, minha relação com eles passou a ser DIRETAMENTE com eles. O Chico, que eu conhecia desde criança, mesmo esclerosado, ainda dançava às mesmas músicas de 20 anos antes. Os cachorros, até o problemático Uísque, me abanavam o rabinho e faziam festa. Minha vó conversava comigo, eu a levava ao shopping, almoçávamos juntas.
O canário não. Eu sabia que já era adulto, ninguém soube precisar o quanto, mas minha vó garantiu que estava com eles desde antes de eu entrar na faculdade, portanto há pelo menos 7 anos. Não me lembrava de ter ouvido meu avô chamá-lo pelo nome, e questionei Tula, mas ela não soube me dizer se tinha nome. Remexendo entre os discos de meu avô, encontrei um de Frank Sinatra, e como nosso canário era bom cantor, escolhi eu mesma este ser o nome pelo qual o chamaria.
Por pelo menos 2 anos ele me estranhou. Se assustava e entrava em rebuliço quando eu me aproximava da gaiola. Bichinho frágil e arisco, no qual nem se pode tocar, enquanto o papagaio Chico nos franqueava ainda coçar-lhe o cangote...
O canário hesitava em ter uma relação direta comigo, então minha relação sempre foi com a lembrança do meu avô, através dele. Até este dia do hoje, todas as manhãs, quando descobria Frank do seu pano de dormir azul e lhe dava vitamina, me lembrava logo cedo do meu avô. E todas as noites, quando olhava no relógio para não deixar passar da hora de pôr pra dormir o canarinho idoso, me lembrava de meu avô ao cuidadosamente cobri-lo com seu pano azul para dormir, dizendo "boa noite, Frank, durma bem."
E o mesmo terror de falhar na missão em relação a cada um destes seres que eram da responsabilidade de meu avô me assombrava em relação ao canário. Tinha medo de deixar faltar-lhe água ou comida e que morresse por minha irresponsabilidade. Tinha medo de pegá-lo para cortar suas unhas e quebrar um de seus delicados ossinhos, matando-o com minha brutalidade. Tinha medo de deixá-lo fugir da gaiola ou vê-lo atacado por um pardal e que ele morresse por minha inépcia. Tinha medo de esquecer de cobri-lo à noite, no frio, ou de esquecer de descobri-lo pela manhã, e ele sufocar, morrendo por meu descuido.
Enfim, tinha um profundo medo de não corresponder a contento à missão que meu avô me dera, e mesmo post-mortem, decepcioná-lo. Que um dia eu viesse a sonhar ou vivenciar ele me recriminando a dizer: "fui tão carinhoso sempre com você e você matou o meu canário!"
Com o tempo eu e Frank fomos construindo uma amizade. Afinal, foram quase 8 anos e após o estranhamento inicial, ele percebeu que eu era sua cuidadora agora e passou a me saudar, cantar para mim, quase a comer na minha mão. Posso dizer que enriqueci sua alimentação. Mudei o simples alpiste por um mix de cereais. Sempre lhe cozinhava ovos ao ponto de perceber que ele preferia a gema à clara. Sempre lhe oferecia diferentes tipos de vegetais até o ponto de constatar que seu prediletos eram o pepino, o brócolis e a alface. Em dia quentes, lhe colocava a banheirinha e ele se refestelava com uma alegria que com certeza valeu o registro em vídeo.
http://youtu.be/_KFV-qIZeZw
Até a véspera de morrer, sempre esteve muito bem, se alimentando de forma voraz, detonando as folhinhas, limpando o cocho de vitamina. Sua convalescença foi curta. Em 13 de maio acordou baqueado, passou todo o dia sonolento e desanimado, mas ainda comeu e bebeu um pouco. Não acordou no dia 14. Não morreu de surpresa, atacado, neglicenciado. Sua água e ração estavam cheias. Sua gaiola limpa. Ele, protegido, abrigado dentro de casa.
Morreu em paz. E assim trouxe paz para uma questão de honra para mim: fazer frente e cumprir o último desejo do meu avô. Neste dia morreu o último ser que estava sob a responsabilidade do meu avô quando ele se viu surpreendido pela morte, e cuja incumbência me repassara. Hoje, mais de 7 anos depois, todos estão mortos. E posso dormir tranquila, pois cuidei deles o melhor que pude. E a morte de nenhum deles foi causada por mim.
A partir de hoje, nem eu, nem meu falecido avô temos mais nada com o que nos preocupar. Tudo está bem, em paz, completo.
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