quinta-feira, 10 de julho de 2014

Da Máfia chinesa



Em texto anterior, mencionei que minha segunda experiência profissional foi em uma firma de videokê comandada por chineses, e au passant que meu desligamento desta empresa não foi tão pacífico. Vamos aos detalhes.


Os japoneses, ao que me consta, criaram uma forma de entretenimento denominada "karaokê", termo que significaria "sem banda". Pelo mundo espalhou-se o hábito de, em bares e locais de entretenimento, haver uma máquina que, com o acionamento de moedas, tocava a trilha de uma música, possibilitando aos clientes o entretenimento de cantá-la.


Na passagem entre os 1990 e os anos 2000 o karaokê "evoluiu" para o videokê, com o avanço de que agora havia uma tela que mostrava a letra da música a ser cantada. Rapidamente começaram a pulular pelos bares as "jukebox de videokê". E justamente no fornecimento de "máquinas de videokê" a empresa King Star entrava no mercado.


Entrei em contato com ela através do meu então colega de cursinho, e para sempre grande amigo, Henrique "Figura". Ele morava no mesmo prédio do dono da empresa, e assim conseguiu o emprego. No curso pré-vestibular Figura verificou que meu domínio do português era muito bom, e me convidou, a princípio, para um trabalho freelance como revisora da grafia da letra das músicas. Me forneceu um equipamento e por alguns finais de semana gastei todas a minhas horas livres nisso, entregando o trabalho antes do prazo.


Meu trabalho causou boa impressão e me convidaram para um trabalho fixo na King Star. Adorei pois seria minha segunda experiência empregatícia, e o local de trabalho ficava a 300 metros da minha casa no Tatuapé. Sem registro em carteira, receberia, em 2001, 300 reais por mês, o que creio que fosse próximo ao salário mínimo da época.


O dono da empresa atendia pelo nome "brasileiro" de Fernando, meu xará. Era um taiwanês de 26 anos com esposa e filho pequeno, empreendedor arrojado que também empregava seus irmãos, que atendiam por Cris e Mário. Soube que antes de se dedicarem ao videokê trabalhavam com máquinas de caça-níquel, mas que haviam abandonado esse ramo por conta da proibição legal e subsequente fiscalização.


Figura rapidamente me ensinou seu métier, que era bem mais simples do que eu pensava. As máquinas, semelhantes a DVD players, vinham prontas da China. A nossa parte era desenvolver o software. Ou, mais precisamente, adicionar o máximo de músicas ao acervo do software do videokê. Baixávamos pela internet arquivos .mid com a melodia e também pesquisávamos a letra dessa canção. Nosso trabalho era simplesmente o de sincronizar letra e música, acertando compassos, timbres e tons.


Mesmo sem saber quase nada de música e sendo incapaz de tocar qualquer instrumento, era muito simples esse trabalho. E até o de multiplicar músicas, se gravadas por mais de um artista. Nosso trabalho frutificava, e as vendas iam bem até o ponto em que foi contratado um terceiro membro para nos ajudar. Após algumas entrevistas, selecionaram Roberto Mautone Jr., que frequentava minha sala do cursinho pré-vestibular.


Tudo ia muito bem... Até que... A China chamou.


Nosso chefe Fernando não nos explicou muito bem os pormenores, mas pelo que pude entender, o capital que havia usado para iniciar o negócio viera de Taiwan, de parceiros comerciais que, portanto, eram sócios no seu negocio na King Star. Aparentemente seu sócio em Taiwan estava passando por problemas, ou desconfiava de sua retidão na condução da empresa, e portanto enviaria "emissários" para um tipo de "auditoria"


Os chineses que vieram eram 2, um homem e uma mulher, esta aparentemente esposa do superior de Fernando, e aquele aparentemente seu "testa de ferro". Só falavam chinês e um pouco de inglês. Sendo nós contratados numa firma com 3 chineses e 3 subalternos brasileiros, ouvir chinês para nós era corriqueiro. Fernando, com seu sotaque pesado, veio me perguntar se eu "realmente falava inglês de verdade" e quando disse que sim, me pediu que fizesse um "meio de campo" com os visitantes, os levasse para passear no bairro, almoçar, etc, e assim fiz.


Foi numa dessas oportunidades que descobri que minha primeira tatuagem não era em japonês, mas em chinês. No dia de meu aniversário de 18 anos eu comparecera a um estúdio de tatuagem. Folheara o portfólio e selecionara duma folha onde se lia "Letras japonesas" o ideograma sob o qual estava escrito "verdade". Estava tranquila desse fato até que o "testa de ferro" do chinezão, ao vê-la, abriu um sorriso e disse: "nice, honesty!"


Eu disse "I beg your pardon, what did you say?" E ele disse "I just read your tattoo". Repliquei: "can you read it? Is it in chinese? I thought it was 'truth' in japanese". E ele disse meio que rindo da minha cara "well, it's chinese, and says 'honesty', wich also can be translated as 'truth'." Me senti meio tranquila e meio lograda. Pelo menos eu não havia tatuado "conteúdo 300 gramas" ou "sopa de cebola".


Após algumas semanas chegou da China, ou de Taiwan, pois para eles "era tudo a mesma coisa" o chefão cuja esposa eu estivera ciceroneando, mesmo com seu péssimo inglês. Aparentemente vinha para "tomar o negócio" do Fernando. Num sábado de janeiro de 2002, logo após eu fazer as provas da segunda fase da FUVEST o Fernando nos disse para ir ao trabalho "normalmente", mas para ficarmos alerta, pois algo de importante aconteceria. Eu, Figura e Beto permanecemos no andar de cima, em nossos computadores, enquanto "a chinesada" fez uma reunião no andar de baixo. No meio do expediente, ouvimos do andar de cima barulhos que pareciam de uma briga física entre eles.


Quando se aproximou a hora do fim de nosso expediente, Fernando subiu as escadas, foi à nossa sala, nos dispensou e me entregou, numa caixa, uma fita de vídeo VHS. Me pediu que a ocultasse em minha bolsa, a levasse para minha casa, e disse que mais tarde, ainda neste dia, a iria buscar. E que eu a guardasse enquanto isso como a minha vida. Ok. Enquanto íamos embora, o testa de ferro do chinesão chamou o Figura para uma conversa particular.


Beto me acompanhou no curto trajeto até minha casa e, lá chegando, não nos contivemos em colocar a fita no meu videocassete, rebobiná-la e assisti-la. Era uma gravação de uma câmera escondida colocada na luminária do teto da sala onde acontecera a reunião, no andar de baixo. A "chinesada" obviamente só falara em chinês, mas mesmo não compreendendo uma só palavra, assistimos tudo, vidrados.


A linguagem corporal não deixava dúvidas. Travavam nosso chefe Fernando, o chinesão seu superior e seu testa de ferro que reconhecera minha tatuagem uma discussão aguerrida, por conta de dinheiro ou da condução da empresa. Assistimos ao momento em que o "chinesão big boss" deu uma série de socos na mesa, e este fôra o barulho que nos alarmara, ouvido do andar de cima.


Ao fim da tarde nosso chefe Fernando veio bater à porta da minha casa, perguntando com ansiedade e insegurança de menino "onde estava a fita". A entreguei na mesma caixa, sem lhe informar que a assistira, e ele a abraçou como a uma joia preciosa.


Abriu um sorriso, me agradeceu pela discrição e disse:


"Essa fita vai salvar a minha vida".


Na semana seguinte recebi a notícia de havia sido aprovada no vestibular da USP para o curso vespertino de História e pedi meu desligamento da King Star. E soube que o "chinesão big boss" não era o "big boss" after all. Que havia, acima dele, lá na China, um "chefão" superior, e que essa fita da discussão em chinês lhe havia sido remetida por Fernando como uma forma de provar sua honestidade na condução do negócio, no intento de "queimar", lá na China, com o "verdadeiro chefão" aquele que socara a mesa da King Star.


Nesse meio tempo o Figura nos revelou o conteúdo de sua conversa com o chinês. Ele sofrera uma tentativa de suborno. O chinês lhe dissera que a King Star seria desfeita, e o convidou para "virar a casaca": abandonar o Fernando e passar a trabalhar diretamente para ele, o que lhe valeria um reajuste salarial de 50%. De 300 passaria a ganhar 450 reais. Só ele, eu e o Beto não. Não havia espaço para nós. Figura nos disse que por nenhum momento cogitou aceitar isso. Que conhecia o Fernando há anos e não colaboraria com essa "puxada de tapete". Que não aceitaria essa proposta, levando o know-how que aprendera com o Fernando, para seus agora "inimigos" e futuros concorrentes. Que não faria parte deste "golpe empresarial" que resultaria no fim do emprego meu e do Beto, seus "trutas". O Figura sempre foi muito "firmeza".


Depois disso, não mais soube que rumo levou essa contenda. Com o avanço da tecnologia, e o fim da moda, essas máquinas de videokê que vendíamos caíram no ostracismo. Não há mais quem as compre. Não sei que rumo tomaram Fernando e seus irmãos. Mas tenho certeza que estão enriquecendo, empreendendo, trabalhando diligentemente, como os chineses, ou taiwaneses, sabem fazer tão bem.


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Um comentário:

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