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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Dos Fenômenos Literários



Em conversas com pessoas similares a mim em muitas coisas, como idade, nível social e educacional é comum um "estranhamento cultural": apesar de eu ser uma leitora voraz, não ser adepta de nenhuma "saga literária" das várias que se consagraram como "fenômenos" da "cultura pop".


As mais populares nos anos 2000 são Harry Potter, The Lord of the Rings e The Twilight saga. Não li nenhum dos livros nem assisti a nenhum dos filmes. Quer dizer, cheguei a ser compelida a assistir ao primeiro filme do "Senhor dos Anéis" com um grupo de amigos. E enquanto eu bocejava, eles exultavam.


Os motivos de eu não participar dessa "onda cultural massificada" são vários, e como já fui muitas vezes confrontada pelo espanto dos meus interlocutores por eu não parecer muito empolgada a gastar um ingresso de cinema para assistir ao "Hobbit", vale o registro.


- Tudo isso foi lançado (ou virou viral) quando eu já tinha mais de 18 anos, já tendo lido vários clássicos qualitativamente superiores em enredo, linguagem, estética, como Kafka, Shakespeare, García Márques, Sartre.


- Sempre soube reconhecer o tipo de literatura ou música classificável como "guilty pleasure": algo do que até se gosta, mas se sabe que não tem muita "qualidade". Estava ciente disso já aos 14 anos, ao reconhecer que ler livros do Paulo Coelho e chorar com as músicas do Bon Jovi eram coisas das quais no futuro eu meio que me envergonharia...


- Tive meu próprio "Harry Potter" na figura da série de 14 livros de Anne e Serge Golon "Angélica, a Marquesa dos Anjos", cada um em média com 300 páginas. Aos 12 anos já tinha lido todos, e já tinha um "cenário fantástico" no qual fantasiar com as aventuras de Angélique de Peyrac no século XVI, entre o Poitou, O Languedoc, Versalhes, o Saara e o Novo Mundo.


- Conhecer mitologia grega. Quando criança minha família tinha uma coleção de livros de mitologia grega. Como "descer o nível" depois disso?


- Ter feito faculdade de História, percebendo assim com facilidade todo o humor involuntário dos acochambramentos que os "autores pop" cometem. Isso também me trouxe uma certa visão de que se determinado autor não atingiu o nível de "clássico", com tantos clássicos imortais na minha lista de ainda por ler, devo direcionar meus esforços primeiro ao que é um "dever" ler, antes de qualquer coisa "acessória".


- Estudar a Torah. Se comparada à mitologia grega o "Senhor dos Anéis" parece bobo, o que dizer de sua comparação à Torah? Ter estudado a Bíblia Hebraica em toda a sua riqueza e multiplicidade meio que "estragou minha tolerância" a literaturas fantásticas de banca de revista.


- Perceber claramente uma "mudança de gosto" conforme os anos passaram. Um "fenômeno literário" no qual embarquei foi o de Dan Brown. Li as 400 páginas de "The DaVinci Code" em um final de semana, assim que lançado. Devorei e adorei, com 20 anos. 8 anos depois comprei "The Lost Symbol". Li, com sofrimento, 35 páginas. Achei um lixo completo. Coloquei na prateleira e nunca mais senti vontade de retomar. Se eu fosse ler hj o "Código da Vinci" seguramente também abandonaria.


Em suma, sem querer me desfazer das paixões de ninguém, passo muito bem sem literatura-pop de vampiros, bruxinhos, elfos e gnomos.


Depois de ler Eclesiastes, Provérbios, Sabedoria de Salomão, como poderia apreciar "O Segredo", "A cabana", "Quem mexeu no meu queijo"?



sábado, 25 de maio de 2013

Para gostar de cinema


Do primeiro filme iraniano, a gente nunca esquece. Também de nossos primeiros clássicos do cinema, daqueles filmados muitos anos antes de a gente sonhar em nascer. Filmes que são "clássicos" pela mesma razão que os "grandes livros" o são: tocam em "nódoas" emocionais inefáveis, muito difíceis de explorar em palavras, que apenas podem ser expressas por "parábolas", histórias exemplares em sua peculiaridade, mas epistolares em sua generalidade, que extrapolamos a nossa vida particular.

Eu tive a sorte de crescer numa casa chefiada por uma cinéfila. E não daqueles cinéfilos "metidos a intelectuais" que selecionam filmes por sua exclusividade, erudição e aparente incompreensibilidade. Para essas pessoas, quanto mais "difícil" o filme, tanto melhor.

Minha avó Tula era uma verdadeira amante da sétima arte. Inúmeras vezes me relatou como se lembrava com saudade de suas idas ao cinema ainda mocinha, na época em que as pessoas ainda não tinham televisão em casa. Contava com muita alegria dos grandes musicais que assistia com sua mãe e avó. Alguns desses filmes, protagonizados pelo galã Nelson Edy, compramos em DVD poucos anos antes de sua morte, e ela adorava reassisti-los no domingo à tarde, cantarolando suas músicas e dizendo entre suspiros:

- Não se faz mais filmes românticos como esses!

Quando eu era criança, ainda não existia TV a cabo no Brasil, e não fosse a cinefilia de minha avó, só teríamos a "Tela Quente" e os filmes pasteurizados da "Sessão da Tarde" à disposição. Mas ela nunca se contentou com isso.

Éramos uns dos melhores clientes da videolocadora, e muitas são minhas memórias de ainda criança indo acompanhá-la na seleção dos filmes que veríamos.

E não apenas de blockbusters, grandes lançamentos do cinema, eram feitos nossos fins de semana. Tula tinha ótimo gosto. Alugava filmes bons, de diversas origens. Adorava os chineses, sendo o "Clube da Felicidade e da Sorte" seu chinês predileto, mas igualmente com espaço para o "Clã das Adagas Voadoras", "Lanternas Vermelhas", "Adeus, minha concubina", "Comer, beber, viver"...

Também apreciava filmes europeus, um em especial de que me lembro foi a "Festa de Babbette", acompanhado de "7 noivas para 7 irmãos". Filmes considerados "obscuros", em preto e branco, como "Hellen Keller", tb eram sempre uma boa pedida em nossa casa. Todos os filmes de Romy Schneider dedicados à Imperatriz Sissi da Áustria, assistimos. Na mesma senda, também tenho bem gravado na memória "Os jovens anos de uma rainha", sobre a juventude da rainha Victoria da Inglaterra.

Também filmes de Hollywood, mas com grande qualidade, sempre figuravam em casa, como "A volta ao mundo em 80 dias", " Passagem para a Índia", "Duelo ao Sol", "Pimpinella Escarlate", "Indochina"...

Surpreendentemente, gostava muito dos filmes de Oliver Stone, e tínhamos em casa toda a sua trilogia sobre o Vietnã: "Platoon", "Nascido em Quatro de Julho" e "Entre o Céu e a Terra".

Cedo adquirimos dois videocassetes, e sempre que alugávamos filmes, fazíamos uma cópia, para reassistir sempre. Desta época data minha paixão pelo maior dos clássicos do cinema "... E o vento levou". Assistir e reassistir a este e outros filmes maravilhosos foi uma experiência definidora de minha personalidade.

Nunca vou me esquecer de quando alugamos "Acusados", clássico com Jodie Foster muito jovem. E de como fui "pega no pulo" por meu avô Vicente ao ver esse filme, pois chegou na sala justamente na cena mais violenta, a do estupro. Eu tinha uns 7 ou 8 anos, mas já sabia que não devia estar a assistir um filme "tão pesado". Tentei disfarçar, parei o filme assim que o percebi me supervisionando, mas não foi o suficiente para impedi-lo de depois recriminar minhas irmãs mais velhas e até à Tula por me permitirem ver um filme com cenas tão "gráficas".

Igualmente nunca me esquecerei da experiência de ver "As duas vidas de Audrey Rose", com um jovem Anthony Hopkins, e de como me abalou o suplício de Ivy, morta em uma sessão de hipnose, comprovando a "verdade" da reencarnação.

Mas também nunca me esquecerei de meu primeiro filme islâmico "cabeça". Para quem nada entende da empoada cultura dos cinéfilos, não há nada mais hype, mais "chique" que assistir a um filme obscuro off-Hollywood. E várias foram as ocasiões nas quais, já adulta, fui convidada por intelectualóides que queriam reforçar sua "finesse" divulgando aos outros que "assistiam a filmes iranianos", turcos, indianos: quanto mais longínqua a origem, tanto mais "intelectual" era o expectador.

Mas minha vó não era do tipo de pessoa que "assistia a filmes iranianos só pq eram iranianos, e isso é très chic". Ela assistia a filmes que fossem bons, se não eram mainstream, era só detalhe, que ela nem levava em consideração.

E assim chegou à minha vista o maravilhoso filme turco "Berdel". Eu era criança, e só o fui compreender plenamente muitos anos depois. O filme retratava uma situação familiar islâmica: um homem casado há muitos anos tinha apenas filhas mulheres. Querendo muito ter um filho homem, faz uma troca: entrega uma de suas filhas em casamento a um colega, e em seu lugar recebe como esposa uma parente dele. A nova esposa é muito mimada, na esperança de que providencie o filho homem que ele tanto queria. Ela engravida, e é cumulada de presentes. Sentindo-se relegada, sua primeira esposa sai de casa, e só depois se descobre grávida. Ao nascer o bebê da segunda esposa, a "má" surpresa: mais uma menina. Meses depois nasce o bebê da primeira esposa, já separada: finalmente vem o varão tão esperado, e sua mãe morre no parto. O arrependimento do pai dessa família, ao perceber que havia "desancado" a primeira esposa, que morrera ao lhe dar o "filho homem" tão sonhado é uma daquelas coisas, daquelas experiências estéticas e emocionais, que não tem preço, e que aprofundam nossa alma em muitos centímetros.

Desde criança, eu sempre soube valorizar essa cultura cinematográfica ampla que a convivência com minha avó amante do bom cinema me proporcionou. Enquanto meus amigos apenas podiam citar e se lembrar dos "sucessos do cinema" do dia, eu era bem versada em todos os grandes clássicos. Antes dos 12 anos já categorizava os filmes por diretor, e dizia coisas como:

- Kubric é uma experiência pós-moderna. Woody Allen é irônico. Tim Burton é tétrico. Steven Spielberg, pega pela emoção. Já David Lynch é surreal.

Zefirelli, Antonioni, Bertolucci, Fellini, Costa-Gravas, Hitchcock, Scorsese, Tarantino, Polanski, Chaplin, Coppola, Buñuel, Bergman, Milos Forman, Akira Kurosawa, Kieslowski, Ridley Scott, George Lucas, Truffaut, Orson Wells, Billy Wilder, Win Wenders, Attenborough, Pollack, Tornattore, Herzog, Brian de Palma, Zemeckis, James Cameron, Almodóvar e Hector Babenco, eram meus "companheiros", minhas referências culturais, meus "amigos íntimos".

A todos esses conhecia mais que a meus vizinhos, e de sua "visão de mundo" já me sentia bem versada. "Ver a vida" pelos olhos, pelo escopo, desses grandes cineastas foi uma experiência determinante, transformadora, enriquecedora. Ampliou minha visão, minha interpretação, minhas possibilidades diante da vida.

Crescer exposta a essas experiências estéticas aumentou em centenas de matizes minhas possibilidades de expressão, compreensão, fruição. Meus tons de cinza que separam o "certo" do "errado" ganharam mil complicações, mil discursos, mil viezes, mil possibilidades.

Hoje, que se completam 3 meses do falecimento de minha avó Tula, venho mais uma vez prestar homenagem e dar graças por ter tido em minha vida uma pessoa que tão bem me influenciou, que tantas experiências diversificadas e enriquecedoras me proporcionou. Muchas, muchas gracias, mais uma vez, por tudo, Tula. Sua presença, sua influência, é fundamental para mim. E sempre será.

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sábado, 27 de abril de 2013

O carro perfumado

Era 1995. Eu contava 12 anos e passava pela parte mais difícil de minha vida. Não por ter 12 anos e estar em plena efervescência hormonal. Mas por viver num ambiente muito pouco propício a um saudável desenvolvimento psicológico, de qualquer pessoa.

Morava à rua Pedro Pires, 427, Vila Carrão. O pior endereço, de longe, no qual já tive a má sorte de residir. Não pela localização, não pela casa, mas pelas pessoas q comigo moravam. Eu residia com minha ex-mãe, Regina, e com seu amásio, R. 

Certo domingo eu havia combinado com minha amiga Luciana, que estudara comigo na quinta série, e que não mais era minha colega, de irmos ao cinema do Shopping Aricanduva. Vivendo na megalópole "Sampa", bastante intimidadora para qquer tipo de deslocamento de uma pessoa inexperiente que poderia com muita facilidade "se perder para todo o sempre". Eu avisara no dia anterior a Regina deste combinado, e estava tudo certo para ela me levar ao shopping, eu encontrar minha amiga e com ela ver o filme enquanto Regina dava umas voltas e fazia umas compras por lá mesmo a tempo de eu sair da sessão e voltar com ela para casa. Tudo muito certinho.

Mas na manhã de domingo, não lembro ao certo o motivo, Regina resolveu que iria "me punir" por alguma coisa que eu havia ou não havia feito não mais me levando ao shopping. Chocada e em protesto, lhe disse algo como:

- Mas já estava tudo combinado! Já confirmei com a minha amiga que eu vou! Ela vai ficar muito brava se eu não aparecer!

Ao que Regina deu de ombros, e disse:

- Vá de ônibus!

Com frescos 12 anos, eu não tinha a menor idéia de como chegar de ônibus ao Shopping Aricanduva. E em 1995 ainda não havia internet como hoje, em que num simples click podemos tirar esta dúvida, nem nada que se parecesse com o GPS, ou Foursquare...

A discussão foi crescendo a um ponto em que percebi que Regina "amava mais" seu carro do que a mim, e que valorizava por demais seu próprio descanso, em detrimento de qualquer aspecto de minha vida. Eu tinha 12 anos, mas já era bem a mesma Fernanda que sou hoje. Num rápido lapso, pensando o que a poderia "abalar" e fazer capitular, subi as escadas como um raio, entrei em seu quarto e, bufando, tranquei a porta. Pensando em que tipo de retaliação lhe poderia fazer, vi em cima do gaveteiro contraposto ao espelho seu único vidro de perfume, enquanto Regina esmurrava a porta.

O peguei, fui até a varanda que dava para a garagem no andar de baixo e comecei a gritar, com todo o destempero do peito aberto de uma adolescente:

- Você ama essa p***a deste carro muito mais do que a mim! Quer saber, já que vc ama tanto a p***a deste carro, vou encher ele de perfume!

Regina, vociferava a esta altura já da garagem, do andar de baixo. Lembro-me até hoje do exato tom de azul bebê daquele frasco de "Tathy" do Boticário enquanto eu percebia: "se eu tacar o perfume fechado no carro, vai espatifar o para-brisa, ou amassar o capô, e isso vai dar uma merda enorme!" Então, inteligentemente, não taquei o vidro fechado sobre o carro, desenrosquei a tampa e, com prazer venenoso, despejei todo o seu conteúdo sobre o capô, enquanto Regina assistia boquiaberta.

- Agora seu carro tá bem perfumadinho!

Enquanto Regina subia e descia as escadas maniacamente, esmurrando a porta de vez por outra enquanto berrava descontroladamente coisas absurdas de qualquer mãe dizer a uma filha, peguei o telefone de seu quarto e liguei para Luciana:

- Minha mãe tá dando chilique aqui em casa e não vai mais me levar pro cinema, não vou poder ir.

Luciana, que também tinha seus problemas, me compreendeu, e disse:

- Vou pedir pra minha mãe passar na esquina da sua casa 13:30. Se vc puder sair, esteja lá e minha mãe te leva!

Lhe dei mil agradecimentos e falei que faria o possível. Num dos intervalos em que percebi que Regina estava no andar de baixo, rapidamente destranquei a porta, corri pro meu quarto e tranquei a minha porta. Peguei minha mochilinha com minha carteira, dinheirinho e documentos e fiquei "de tocaia". Ela veio esmurrar minha porta mais uma ou 2 vezes enquanto gritava impropriedades. Uma hora depois, ainda em tempo de ir ao cinema, ouvi o barulho do chuveiro no andar de baixo. Como seu amásio não estava em casa, percebi que Regina estava momentaneamente "fora de combate", peguei minha mochilinha, minha chave, e saí.

Esperei por mais de uma hora na esquina até que o carro da mãe de Luciana parou para me pegar. Consegui controlar o choro e quando ela me perguntou o que tinha acontecido, disse:

- Prefiro não falar sobre isso. Vamos mudar de assunto.

Sua mãe nos deixou no shopping, lhe deu um beijo, 20 reais, e disse:

- Me liga quando terminar a sessão que em meia hora eu te pego aqui mesmo.

Muito sorridentes e independentes, fomos ao cinema e vimos à (péssima) fita Debi & Loyd. A final do filme, enquanto íamos ao banheiro, disse a Luciana:

- Eu não queria voltar ainda pra casa, podemos ver mais um filme?

Ela me deu um meio sorriso de comiseração, daqueles que a gente nunca gosta de receber, e disse que tudo bem, ainda eram 4 horas, cedo, mas que tinha que ligar para sua mãe para avisar, se não ela ficaria preocupada.

Depois de ligar, me disse se eu não devia também ligar para minha mãe, pois ela poderia se alarmar com minha "demora extra", ao que eu disse que não era necessário. Voltamos ao cinema e assistimos à (razoável) fita "Ninguém Segura Este Bebê".

Saímos, muito alegres, ela ligou para sua mãe vir nos buscar, comemos alguma coisa, e quando fomos ao lugar combinado, percebi que já era noite. Enquanto sua mãe tomava o caminho da minha casa, me passaram na cabeça mil cenários do que poderíamos encontrar, afinal, eu saíra antes do almoço sem avisar, eu tinha 12 anos, e já era noite. Teria Regina chamado a polícia para me reportar como desaparecida? Teria Regina "convocado" familiares ou psicólogos para uma intervenção? Estaria ela me esperando sentada no sofá, com o pezinho balançando, para uma "conversa séria e definitiva"?

A mãe de Luciana me deixou na esquina e dei um suspiro de alívio ao perceber que não havia nenhuma viatura na porta de casa. O carro de Regina continuava na garagem, exalando um cheiro nauseante de Thaty. Girei minha chave na porta de entrada com um calafrio, de se daria de cara com ela na sala. Ufa! Não! Ninguém na sala.

Rapidamente corri pelas escadas, e enquanto passei pela frente de seu quarto com a porta fechada, ouvi que sua TV estava ligava. Corri e me tranquei no meu quarto, o sangue gelando nas veias: se daria tempo de trancar a porta antes que ela invadisse o recinto e me batesse. Tranquei e sentei no chão, contra a porta, com a certeza de que logo ela viria me dar um sermão de como ela tinha ficado preocupada e desesperada com o meu sumiço. Um, 2, 3 minutos, nada.

Fui para a cama, repassando os acontecimentos do dia. Meia hora, uma hora, 2 horas, nada!

Depois foi 1 dia, 2 dias, uma semana, nada! Ela simplesmente nunca mais tocou no assunto.

Eu tinha 12 anos mas já sabia que a pessoa responsável por ter "conversas sérias" comigo estava pouco se lixando em ter "conversas sérias" comigo e me dar orientações para a vida. E que a pessoa que mais deveria "se preocupar comigo" e cuidar de mim estava pouco se lixando para qualquer coisa minha.

Este foi o pior endereço em que morei e as pessoas que comigo lá moravam as que tive a maior infelicidade em conhecer. Esse foi o período mais triste de minha vida.

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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Do afogamento

Morrer afogado é um medo ancestral, bem cimentado em nossos arquétipos mentais. Uma daquelas fobias comuns, ao lado da aracnofobia (medo de aranhas), agorafobia (medo da multidão), acrofobia (medo de altura), aicmofobia (medo de injeção), nictofobia (medo do escuro), catsadidafobia (medo de baratas), musofobia (medo de ratos).

O medo de morrer afogado, ou de submergir-se em água, chama-se hidrofobia. Além de designar um transtorno psiquiátrico (medo de água) este nome tb se aplica a uma doença transmitida por vírus, popularmente denominada "raiva", cf: http://pt.wikipedia.org/wiki/Raiva_(doença) . Por sua incidência entre mamíferos silvestres e de estimação, todos os anos o governo brasileiro disponibiliza a vacina anti-rábica aos nossos pets.

A primeira vez q experimentei a sensação de afogamento, contava uns 6 ou 7 anos, numa piscina de hotel, creio q no Guarujá. Lembro q, muito confiante, já sabia mergulhar, e a piscina tinha um fundo em declive. Já tendo explorado toda a parte q me dava pé sem nenhum revés, comecei a fazer minhas gracinhas, me aventurando no fundo até q numa dessas o fôlego faltou, o pé não encontrou o chão, a boca não encontrou ar, comecei a engolir água, me debater como uma lagartixa. Batendo as mãozinhas na superfície, pra meu grande alívio, alguém, creio q Regina, percebeu minha aflição e me puxou pra cima. Cuspindo água, me agarrei no deck e me dei conta q ainda era criança, indefesa, apesar de me sentir muito adulta. O tomei como lição e não restou disso nenhum temor de fazer futuros mergulhos.

Aprendi a boiar com uns 10 ou 11 anos, na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Meu único tio, Renê, acabara de se casar com uma bela paranaense, minha tia Marilurdes, e para q todos se familiarizassem, fomos visitar os recém-casados em seu apartamento em Jacarepaguá: eu, Cristhiane, Patrícia, e meus avós Tula e Morzinho. Lembro q quando chegamos de carro ao Rio era aniversário de Cristhiane, 28 de dezembro, e justo nesta data o covarde Guilherme de Pádua assassinara Daniella Peres, filha da novelista Glória Peres.

Numa ida à praia da Barra, vi minha irmã do meio, Patrícia, magicamente suspensa na superfície da água. Perguntei-lhe como era capaz de fazer isso. Cheia de marra, me deu uma de suas comuns desancadas e me disse q estava boiando, e q para fazer isso não precisava saber nenhuma técnica ninja, bastava "relaxar o corpo e não ter medo, q o corpo bóia sozinho, pois 'bosta não afunda'." (palavras dela).

Tentei imitá-la 1, 2, 3 vezes, sem sucesso. Eu afundava. Tentava deitar na água, mas ao estirar os braços, sempre ia pra baixo, e lutava para voltar à tona. Virei pra Patrícia e disse: "eu não devo ser feita de bosta, pq eu afundo!". Ela riu e disse q todos somos feitos da mesma coisa, q o "macete" era "não ter medo de se afogar, não lutar contra a água".

Com dezenas de tentativas, aos poucos fui compreendendo o q ela queria dizer. Q eu não devia encarar a água como uma inimiga contra a qual lutar, mas como uma parceira da qual me aproveitar, ou uma companheira a saber controlar. Sim, a água era potencialmente fatal, se eu não soubesse corretamente me comportar nela. Mas podia ser fonte de diversão, relaxamento, se eu soubesse compreendê-la e decodificasse a "etiqueta" do bom nadador. Se antes eu a achava ameaçadora, quando a conheci e comecei a desvendar seus segredos, passei a amá-la. Me tornei ótima nadadora, e capaz de boiar tanto no mar como na piscina.

Muitos anos depois, assistindo a um programa da TV de "sobrevivência na selva" acompanhei o tutorial de Bear Grylls sobre o q fazer em situações de afogamento. Minhas sobrancelhas pularam quando ele, taciturno, decretou: (algo assim, estou transliterando de memória)

- O q mata as pessoas afogadas não é a água, mas o desespero. Quando se sente afogar, instintivamente a pessoa começa a se debater descontroladamente, o q só a faz afundar mais. Se vc se sentir afogando-se, o melhor é ficar calmo, não fazer nenhum movimento. O ar q ainda estiver nos seus pulmões te levará à superfície, e te fará boiar. Se vc vir outra pessoa se afogando, nunca vá pessoalmente salvá-la. A pessoa desesperada vai se agarrar em vc e continuar se debatendo até q os dois morram afogados. O melhor é jogar pra pessoa algum objeto q bóie na qual ela possa se agarrar: uma bóia, um pedaço de isopor, um galho de árvore.

Foi muito interessante meditar sobre este enunciado e verificar sua veracidade. Comuns são as tragédias em q um membro da família começa a se afogar, pula um parente e o resultado é um velório duplo.

É necessário compreender os perigos q nos cercam e não temê-los, mas respeitando-os, saber manipulá-los para q se tornem nossos aliados. Da mesma forma q a diferença entre o remédio e o veneno é a dose, a diferença entre a piscina q nos dá prazer e a água q nos traz o luto é apenas o auto-controle.

De forma análoga, a diferença entre a sociedade q nos aliena, atordoa, escraviza, deprime, limita, e o horizonte de possibilidades q nos estimula, desafia, realiza e enriquece é a forma como o encaramos. E nossa postura perante suas marés.

Há uma breve, mas significativa, cena no filme Amistad (1997, dirigido por Steven Spielberg) no qual o deus de ébano Djimon Hounsou, ao ser capturado pelos yankees, se lança ao mar, e tal qual Ícaro, começa a nadar em direção ao sol nascente, onde ele sabia estar a África, seu lar. É impossível atravessar o Oceano Atlântico a nado, e depois de poucas braçadas o ânimo lhe falta, ele afunda e num átimo deve tomar a decisão de sua vida: desistir perante a derrota momentânea de ter sido recapturado, prosseguir no intento q ele sabia inconquistável, além da força de seus braços, não baixar a crista, não aceitar ser reduzido à catividade mais uma vez; ou engolir o orgulho, parar de lutar, compreender q era necessário POSTERGAR a realização do sonho q, imediatamente, era impossível, e voltar ao barco onde grilhões o aguardavam.

Se vendo diante da escolha de perseverar, e morrer, ou capitular, e viver, Cinque escolheu a vida. Entre morrer "como um homem" ou sobreviver "como um rato", fez a única escolha possível: viver. Vendo-se derrotado por forças além das suas, escolheu racionalmente engolir sua vontade de partir como homem livre e submeter-se, ao menos imediatamente, às forças inimigas maiores q as suas. E posteriormente soube, ao conhecê-las, manipulá-las a seu favor. A mesma marinha americana q o capturou após a rebelião escrava no navio negreiro Amistad, foi a levá-lo de volta à África, depois dele inocentado na Suprema Corte americana.

Há 2 famosos ditos populares brasileiros q rezam: "não adianta dar murro em ponta de faca" e "não adianta chorar sobre o leite derramado". Essa sabedoria ancestral nos ensina justamente: se a situação está contra nós, se debater não ajudará em nada; e se a coisa está horrível, não tem volta e tudo deu errado, ficar se lamentando só vai fazer tudo piorar. Num nível superior, nos instruem: não importa o q acontece com vc, o q importa é como vc reage, qual é a sua atitude perante as situações ruins. E muitas vezes o melhor é não ter "atitude".

Acredito q até muito recentemente eu me debatia desesperadamente, e me afogava, no fluxo dos acontecimentos. Não compreendia a mecânica dos fatos, via as novidades, transformações e o passar dos anos me atingindo com medo, até das ondas calmas, da maré baixa. Encarava qquer maré alta como uma atemorizante ressaca, e os revezes como pequenos tsunamis pessoais, q me deixavam com fobia de voltar à praia da vida, mesmo na beira da arrebentação. Não queria mais fazer castelos de areia nem molhar os pés nas ondinhas.

Acho q estou começando a perceber q, da mesma forma q diante de uma onda alta, se soubermos ter sangue frio pra esperar o momento correto, nem vamos sentir sua marola e, mergulhando por baixo dela, podemos sobreviver incólumes, devemos ter postura parecida diante do fluxo dos acontecimentos.

Se no horizonte se forma um espectro q parece q vai nos derrubar, é melhor não se precipitar, não enfrentar a força descomunal de frente. Devemos nos posicionar de viés, manter o olhar fixo na ameaça, aguardar q a onda comece a vir em nossa direção e, só então, /tchibum/, mergulhar nos desviando do perigo. A onda continua seu caminho e nós, usando nossa inteligência, fomos obrigados a fazer uma capitulação temporária, mas vencemos no final.

Quando entramos num mar q não nos dá pé, não servirá de nada nos debater, pensando "eu não acredito q isso tá acontecendo, eu não mereço isso, sou inocente, sou uma boa pessoa, isso é injusto, q q eu fiz pra merecer isso? etcs, etcs, etcs..." Em suma, ter uma "atitude", mesmo de defesa duma honra merecida, diante dum revés, nada mais é q BURRICE. É preciso ter "jogo de cintura" e ser capaz de ter estômago para "dançar conforme a música" e sobreviver, ao menos imediatamente, quando a situação está manifestamente contra nós.

Não podemos ser simplistas, inocentes, de peito aberto, sem reservas, duelando quixotescamente contra o mundo inteiro. Devemos ser capazes de apreender nossa própria pequenez, como muitas vezes somos coadjuvantes elencados nas farsas alheias, e q muitas vezes é preciso fingir q nos conformamos com nosso papel secundário.

É preciso ao menos 3 décadas de experiência em natação no fluxo da realidade para começar a saber boiar no marasmo confortável do cotidiano pequeno-burguês, e então ganhar confiança para se lançar na arrebentação da infindas possibilidades q podemos lutar para conquistar, sabendo do risco de morrer na praia.

Até pouco tempo atrás, eu me debatia desesperadamente contra tudo q me acontecia e contra todos q conhecia. Tinha muito medo de soltar do deck seguro das minhas lembranças e projetos passados. Acho q já compreendi q devo perder o medo, relaxar meus músculos, reaprender a boiar na maré calma e reaprender a nadar no mar agitado. Acho q decidi "mudar de estratégia". Acho q percebi o valor, ou a necessidade social, de "fazer cara de paisagem", "se fazer de sonsa" e do "me engana q eu gosto".

A partir de hj vou passar a observar melhor o fluxo das marés. Um pouco mais cinicamente, vou aprender a calar meu orgulho e capitular, não pq eu queira, não pq vacile minha convicção, não pq não tenha gana para lutar até o fim de minhas forças, mas pq compreendi q é MAIS INTELIGENTE saber manejar as ondas a meu favor, e q enfrentar as adversidades muitas vezes é suicídio puro e simples.

Muitas vezes, melhor q enfrentar diretamente alguém, é "dar corda" para q a própria pessoa se enforque. Antes eu achava q, ao ver algo errado, eu devia ser "intransigente", era minha obrigação "exortar" cada um. Achava q ao alertar alguém sobre um erro a pessoa o veria e quiçá me agradeceria pela ajuda, pelo alerta. Ledo, crasso, engano. Percebi q, tentando ajudar, em troca ganhava um adversário ofendido, um ex-amigo ultrajado. Já calejada, hj percebo q da mesma forma q eu sou "cheia de boas intenções", todas as outras pessoas tb o são, cheias de SUAS PRÓPRIAS boas intenções, do seu próprio metro do q é "bom senso". E q ao tentar "ajudar" as pessoas eu apenas estava-lhes impingindo o meu conceito de retidão, q elas não queriam aceitar. Portanto, a partir de hj, quando ver alguém cavando a própria sepultura, tentarei a muito custo permanecer calada, por saber a priori q, se eu falar algo isso não ajudará a outra pessoa em nada, apenas me fará ganhar uma antipatia.

É sem orgulho q percebo q não será "o mundo" a se curvar para aprazer a forma q eu acho q as coisas deveriam acontecer. Sou eu q devo ter sangue-frio para saber capitular quando tudo está contra mim, e saber vir a tona, apresentando a atitude correta de lutar ou relaxar quando a calmaria vier.

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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Educação emotiva pelo cinema: Jerry Maguire

Há muitos filmes fundamentais que merecem ser assistidos não por serem grandes realizações estéticas, mas por transmitirem uma certa “moral da história” relevante à educação emotiva humana. Que fique claro logo no início que há um abismo entre ser “moralista” e observar a “moral da história”.

Muitas lições essenciais que precisamos aprender em nosso amadurecimento são muito difíceis de didatizar, descrever em tópicos e explicar numa simples lição. Por isso as parábolas, historietas que exemplificam certo princípio abstrato, são um recurso muito popular na literatura, e nas variadas artes.

Dentre os filmes com enredo delicado, cuja história busca ser algo mais que um “romance água com açúcar” merece destaque “Jerry Maguire”, em português adicionado de “A grande virada”.

O filme começa com um suicídio.

Não literal. Jerry Maguire (Tom Cruise) é um agente esportivo de sucesso que, incomodado com as práticas amorais da corporação capitalista em que trabalhava, escreve um “Memorando” no qual expõe sua intenção de “humanizar” seu trabalho. Esse é seu suicídio. Percebe logo que não há como “humanizar” uma corporação. E que seu memorando fôra sua nota suicida no mundo corporativo.

Começa então a “grande virada” de Jerry. E a crônica da humanização de um homem. O filme narra no entrelaçamento entre Jerry e sua secretária (Renée Zellweger) como se dá o amadurecimento emotivo de um homem que já se achava pretensamente adulto e se descobre, psicologicamente, infantilizado e temeroso de subir de patamar.

Não creio que outro ator conseguiria tão eloquentemente nos entregar Jerry Maguire em sua plenitude. O olhar de Tom Cruise tem 11 mil facetas, 20 mil dúvidas, 30 mil hesitações e 400 mil boas intenções. Tem as sobrancelhas retas duma alma pura. Um leve vinco de preocupação, tal qual de um jovem pai de família, sobre o nariz. Sua alma transparece no olhar, de um homem que tenta ser honesto e leal.

Tom Cruise enuncia um monólogo inteiro num movimento de sobrancelha. Seu sorriso é sem reservas, entregue, como o de um menino. E ao mesmo tempo sua postura exsuda insegurança, em seus ombros despontando à frente, como quem teme eternamente a derrota ou acaba de ser “chamado à atenção”.

Além de mostrar o amadurecimento emotivo de Jerry, o filme tb mostra a família que ele tenta construir. A descoberta do amor puro numa criança. A alegria do amor que surge da admiração, nascida no respeito. Como se ainda existissem “caras legais” que se prontificarão a ser um bom pai para o filho órfão de uma mãe solteira. E que dirá a ela “Você me completa”, para êxtase de todo um grupo de mulheres descasadas.

O filme também mostra, na cena do acidente em campo do único atleta agenciado por Jerry, como a vida pode dar 3 giros completos num segundo. E num simples átimo todos os seus sonhos podem ser destruídos. Ou colocados vários patamares acima. E como nada disso depende de nós ou de nossas “boas intenções”.

Mas como é um filme de Hollywood, tudo dá certo, Jerry fica rico e seu casamento segue adiante. Mas não julguemos o filme pelo fim. Sua riqueza é a trajetória que narra e desvenda. A crônica de Jerry Maguire é a do difícil caminho que pode fazer de um capitalista sedento de “Show me the money” em um ser humano, capaz de ter sentimentos profundos, verdadeiros, e que duram pela vida inteira. Mostra que o caminho do “verdadeiro sucesso” não é fácil, nem largo, nem próspero, nem bem-iluminado. Que é preciso perseverar, incansavelmente, de forma leal e constante, no caminho do bem. O que é bastante difícil, e para poucos.

Pegar a saída fácil é o caminho mais curto para harmonizar-se com o mundo. E desviar-se de nosso real propósito na vida. Que não tem nada a ver com dinheiro. O dinheiro, na verdade, nos desvia e esconde de nós a Verdade, com V maiúsculo.

Vivemos num mundo cínico”.


"Jerry Maguire", 1996


"The Corporation"


Tim Maia - O caminho do bem

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Dos atos públicos em pijamas

A moda é uma das maiores curiosidades da cultura humana. Nenhum outro animal jamais sentiu a necessidade de cobrir-se por motivos culturais, climáticos ou higiênicos (como até os naturistas algo fazem).

O uso de trajes não é universal a todas as culturas, tenhamos em perspectiva o choque indumentário-cultural dos Conquistadores espanhóis e portugueses ao desbravar as terras americanas; e a clássica observação da carta de Pero Vaz de Caminha de que os índios, de corpos e narizes bem-feitos, “não cobriam suas vergonhas”. Esse detalhe avolumou a noção da América como o jardim do Éden redescoberto, onde “não existe pecado ao sul do Equador”.

Essa noção da ausência de roupas ligada à inocência remete ao relato edênico, no qual igualmente Adão e Eva “andavam nus e não se envergonhavam” e o fato de eles imediatamente cobrirem-se após terem seus olhos abertos pela degustação da árvore do conhecimento. Portanto, desde o mito fundador da civilização judaico-cristã ocidental, as roupas são um detalhe sempre presente.

Atualmente não percebemos outro detalhe histórico fundamental para a compreensão deste tópico. Vivendo a, creio, quarta Revolução Industrial, e muitas vezes esquecemos o mote da primeira, que transformou o mundo: o tear mecânico. E o que fazem teares mecânicos? Tecidos, para fazer roupas. Mais especificamente, roupas baratas, acessíveis a virtualmente “todos”.

Qualquer um de nós, mesmo que de classe C, ou média baixa, tem um guarda-roupa tão vasto que seu número de peças equivale-ir-se-ia ao guarda-roupa inteiro de 10 famílias de mesma classe social da época pré-industrial. Antes dos teares mecânicos, a produção de roupas era tão onerosa quanto a dos livros pré imprensa de Gutemberg.

Antes do tear mecânico, os tecidos eram entremeados artesanalmente, à mão. Um processo lento e caro. As pessoas tinham poucas, e preciosas, peças de roupa. Talvez agora vcs compreendam pq em alguns filmes medievais os defuntos eram despidos, e sepultados sem roupas. Não faz sentido sepultar um morto com algo valioso, que ainda pode ser usado.

É fácil perceber essa penúria fashion nas pinturas de pessoas com sua mudança. Se pré-industrial, uma simples trouxinha. Se pós-industrial, algumas malas. Se pós-Globalização, volumosas malas.

Só para adicionar um toque de pimenta: eu mesma já fiz piada a respeito de Jesus usar “vestido”. Rsrsrsrs. Jesus nunca usou um vestido, ele usava túnicas. Mas se uma peça usada por Jesus fosse hoje posta à venda seria etiquetada como um “vestido hipponga”. E se Jesus fosse teletransportado ao hoje, os transeuntes desavisados teriam certeza pelo seu senso fashion que ele seria algum tipo de hippie, ou vegan, ou os dois. E ele encontraria irmãos com igual trajar apenas, talvez, em Alto Paraíso de Goiás.

À época de Jesus as próprias calças não existiam pois os modelistas não haviam ainda desvendado como fazer uma cava entre as pernas que não resultasse na roupa rasgar-se quando seu trajante se sentasse. Podemos ter um instantâneo das tentativas e erros da moda pelo figurino do filme clássico de Franco Zefirelli Romeo and Juliet, adaptação da peça de William Shakespeare. Até a era industrial, sequer os sapateiros haviam tido a brilhante idéia de fazer os pés dos calçados complementares e assimétricos. Sim, isso significa que Louis XIV, apesar de seus saltos altos, não tinha em seus sapatos o “pé direito” e o “pé esquerdo”: ambos os pés eram idênticos.

Hoje, que os tecidos são baratos, e adicionalmente as roupas e sapatos são costurados por semi-escravos asiáticos, e podemos ter dezenas de peças de roupas. E mais do que isso, diferentes tipos de roupas para diferentes ocasiões, não só para atos públicos como para a intimidade do lar.

Tecer mais um comentário sobre os maravilhosos vestidos da haute couture desfilados nos red carpets do jet set internacional seria chover no molhado, e está longe do que pretendo. A questão fashion que ora abordo é do como ou pq choca e desperta muita atenção o fato de algumas pessoas, eventualmente, apresentarem uma bandeira política através do trajar pijamas: roupas exclusivas para o ambiente privado.

Foi curioso pesquisar a trajetória dos pijamas para embasar este texto. Descobri que “pijama” ou pajama vem do persa payjama (ايجامه ), e que originalmente refere-se ao que chamaríamos no Brasil por ceroulas: uma peça acima da cueca ou calcinha, e usada abaixo da calça exterior. Quase uma “combinação” feminina, como a que faltou a Lady Diana Spencer usar em suas famosas fotos de ainda noiva.

Minha bisavó, mesmo nos anos 2000, quase centenária, fazia questão de usar, abaixo do vestido, uma combinação de tecido fino. Resquício das épocas em que os trajes eram como cebolas, com várias camadas de pano.

O “pijama”, portanto, seria referente à parte de baixo, calça ou ceroula, da roupa. Já a parte de cima da sleepwear, descobri, é todo um capítulo aparte, com diversas denominações, formatos ou mesmo origens.

Para as damas: peignoir, robe de chambre, miss Elaine, “baby doll”, nightgown, camisole, kimono, négligé.

Para os cavalheiros: pijama, robe de chambre, smoking jacket, nightgown, roupão, e, surpreendentemente, banian. Desconhecia eu o termo português, e o descobri por sua derivação inglesa banyan, referente ao pijama típico dos Iluministas.

Ampla e variada é, portanto, mesmo a moda das roupas destinadas a quase ninguém ver: criadas para o uso privado do quarto de dormir. Por isso é que trajar publicamente tais gowns desperta a atenção pública e, em mim, particularmente, esta reflexão.

Muito refleti e cheguei à conclusão que são dois os motivos essenciais que levam às pessoas exibir-se publicamente de pijamas: o desprezo e arrogância; e o passar a mensagem de certa fragilidade e inocência.

O sentido de fragilidade e inocência extraí dos casos públicos de Michael Jackson e Getúlio Vargas. O Rei do Pop pois compareceu a uma sessão do Tribunal do Júri californiano em que era acusado de pedofilia rajando pijamas e smoking jacket. Do grandiloqüente pai dos pobres brasileiros pois suicidou-se trajando um listradinho, deixando o bolso da lapela transfixado e manchado de pólvora, sangue e uma torrente de lágrimas da Nação. Especialmente Getúlio, que deu-se ao trabalho de deixar como “Suicidal Note” o longo texto em que afirma “Deixo a vida para entrar na História”, poderia ter escolhido quaisquer trajes para seu último ato. Seria, talvez, mais melodramático, se o fizesse de black-tie, com a faixa presidencial que carregou por quase 20 anos. Mas não. Trajava, em seu último ato, ao entrar para a História, um pijama. Quis, como Michael Jackson, apresentar uma declaração de inocência, afirmando com seu pijama ser era uma vítima surpreendida em “calças curtas” ou “mangas de camisa”.

Os sentidos de arrogância ou desprezo depreendi das aparições de John Lennon, Hugh Hefner e Mark Zuckerberg. Não tacho a John Lennon de arrogante, longe de mim, mas seu episódio “Bed”, protestando, de pijama listrado, ao lado de Yoko Ono, pela paz, traz subjacente certo desprezo pela própria, desculpem-me, “Nova Ordem Mundial”. Já o octogenário Hugh Hefner, sempre em seu indefectível Smoking Jacket de veludo com seu monograma bordado, transmite uma certa superioridade que só alguém que viveu, e ainda vive, uma longa e mui realizada vida pode ostentar. Hugh Hefner traja continuamente pijamas pois está acima de críticas. Sabe que, por sua idade e realizações, pode zombar de suas próprias, e várias, namoradas. Enquanto cada uma delas gasta por dia algo como 3 horas entre depilação, maquiagem, cabelo e escolha de trajes, ele sequer se preocupa: comparece às próprias festas “de arromba” em pijamas e, no fundo, ri-se que todos pareçam ignorar completamente tal fato. E que, não importa quais sejam suas roupas ele pode “traçar” qquer mulher presente.

Mark Zuckerberg é um capítulo àparte. A cena de “The Social Network” em que ele comparece de chinelo Adidas e um pijama quase roupão (de banho) a uma reunião de negócios em que seriam negociados milhões de dólares é uma sacada ESTUPENDA de David Fincher, se não for mesmo real. A “declaração”, ou statement de Zuckerberg em tal situação para seus interlocutores era:

- Vc, que gastou 5 mil dólares neste terno, 200 dólares nessa camisa, 150 dólares nessa gravata e 700 dólares neste par de sapatos de couro italiano, sabe de uma coisa?: eu venho aqui com pijamas de 30 dólares do K-Mart só pra deixar claro pra vc, mauricinho, que eu sou tão genial que estou acima de críticas. Vc tem que se arrumar para MIM. EU, não preciso me arrumar para vc.

Essa moda-pijama derivada de John Lennon, Michael Jackson e, principalmente, Mark Zuckerberg é a epítome de um processo de começou com a abolição dos espartilhos, das anquinhas, das cartolas, combinações, coletes, paletós, gravatas e até, atualmente, dos soutiens.

Traduzido para os pés: passamos dos sapatos de couro e salto alto para os tênis, e dos tênis para as sandálias, e das sandálias para os chinelos, e dos chinelos para as pantufas. E creio que isto é bom.

Creio que é ótimo que progressivamente o conforto e o despojamento sobrepujem-se à aparência, à pose, às cuidadosas e caríssimas toillettes.

Creio que a moda-pijama veio para ficar com os filhos dos yuppies e que cada vez mais as pessoas passarão mais horas no conforto de seu lar e de seus robes de chambre. Cada vez mais veremos menos sapatos e mais tênis. Menos gravatas e mais pólos. Menos renda, menos cetim. Mais cotton e mais fleece. Talvez a aparência esteja, progressivamente, cedendo lugar à essência; ou o invólucro esteja sendo relegado pelo conteúdo. Estamos ficando mais informais e próximos.

Qualquer um (não, talvez os semi-escravos asiáticos), pode comprar os trajes usados por Mark Zuckerberg em sua reunião de negócios supracitada. Já, apenas 10 pessoas poderiam igualar-se em trajes aos emissários dos reis de Portugal e Espanha ao assinar o Tratado de Tordesilhas. Creio que isso diz algo de bom sobre a evolução da civilização judaico-cristã Ocidental. E ainda mais positivas são as presenças dos Sefarad Eduardo Saverin e do Ashkenaz Mark Zuckerberg.

domingo, 9 de janeiro de 2011

De deus. Ou de Chico Buarque

Não que eu pretenda dar upload em todos os meus pensamentos, como o título do meu blog possa sugerir ao visitante desavisado. E tampouco esta postagem refere-se a qualquer assunto teológico, como visitantes já avisados poderiam supor.

Contumazmente elejo assuntos sobre os quais pretendo, algum dia, futuramente, redigir algum tipo de postagem. Como é típico à disposição psicológica brasílica, estes intentos são sempre reiteradamente, redundantemente, para mais que protelados, deixados para um depois que quase nunca desnuda-se numa esquina futura.

Mas às vezes sinto-me como intimada pelas pequenas coincidências que nos obrigam, de forma plenamente humana, a tentar procurar algum tipo de propósito, mesmo que arbitrário entre quaisquer dois ou dez eventos variados, pinçados a esmo da nossa particularíssima, mas cremos telúrica, biografia.

Toda pessoa meio que mais ou menos desperta para a vida deveria ser uma grande interessada por linguagens, para além da sua própria, pois pensamentos, rimas, métricas e até certo tempero apenas podem ser conferidos por um termo exato, ainda que estrangeiro, ou apenas por ser estrangeiro. E as palavras são a matéria-prima de nosso próprio pensamento, de nossa forma de expressão pessoal. E às vezes as diferentes línguas têm palavras específicas, que não possuem correspondentes em outros idiomas.

Em português o caso público mais clássico e banal é o da lusitana “saudade”. Não que estrangeiros não a sintam, mas talvez sua saudade não seja tão profunda a ponto de merecer um substantivo específico, como lá em Trás-os-Montes. A comparação mais handful é com o inglês. Quantas vezes não vemos nos filmes cenas ao som de “I missed you” traduzidas pelas legendas “Eu estou com saudades de vc” ou “Senti sua falta”. Certo, num reencontro este sentimento é inequívoco.

Mas em português o termo saudade ou a falta de alguém distante não têm nada de correlato a outros usos para “miss” como: “I almost missed my flight”, ou “My cell phone is missing”, ou mesmo: “I won the contest of miss Alabama.” Que o vocabulário e a própria expressão em língua inglesa são inequivocamente mais pobres e fáceis de dominar que o português é óbvio urrante. Não que os anglófonos não sintam saudade, mas talvez esse seja um elemento menos definidor de sua índole, se comparada aos melancólicos lusitanos, que criaram assim uma palavra repetida, enrolada e quase eterna, tão bela para ser cantada e tão sonora na voz de Amália Rodrigues.

Escrevo isso pq, como hoje é domingo, acordei, e ao contrário de lançar-me a um longo acorda-não-acorda, pulei da cama pois precisava dar uma saída. A manhã de domingo arranca-me assim que acordo da cama pois para mim domingo é sinônimo de uma coisa deliciosa: o jornal de domingo, em especial o “Caderno Mais” da Folha de SP, recentemente reformulado com o nome “Ilustríssima”. Tão tradicional é este suplemento dominical que até seu principal concorrente, o Estado de SP “ Estadão”, desistiu do combate direto de intelligentsia no domingo e, conformado, lançou seu “Sabático” aos sábados. Pulei da cama pois no domingo passado, no qual haveria a cobertura da posse de Dilma Roussef, quando cheguei na banca, não só não havia mais exemplares da Folha, como já acontecera, como até o Estado já se esgotara.

Foi através do então caderno Mais que descobri, aos 17 anos que, para além das coisas imediatas de meu universo sensível, haviam multiversos de conhecimento a ser descobertos ou mesmo desvendados. Descobri que as minhas respostas certas não eram tão óbvias assim, que o mundo era muito maior, multidimensional, para além da paisagem quase plana que até mesmo eu, que pensava tanto de mim era capaz então de ver e arquitetar.

O Caderno de hoje traz o texto “Na ponta da língua. O idioma dá forma ao pensamento?” de Guy Detscher, que analisa a influência da língua materna na própria conformação psíquica das estruturas do pensamento individual. Analisa línguas em que há masculinos e femininos para objetos inanimados e como isso influencia a própria concepção que estas pessoas têm desses conceitos, a depender do “sexo” arbitrário que lhes atribuem, citando "The awfful german language" de Mark Twain. Apresenta análises e comparações de “idiomas geográficos” incutidores de uma concepção toda diferente da localização espacial de todas as coisas, memórias e expressões. Assinala que assim duas pessoas falantes de línguas distintas se lembrarão de forma completamente diferente da mesma realidade, pois seus falantes submetem todos os seus parâmetros ora a algo absoluto, cardeal, ora a um parâmetro auto-centrado, particular.

E ainda aprendi, além deste novo conceito, uma nova palavra em alemão, e sei como soa bonito usar, numa roda da intelligentsia, um ou outro termo bem sonoro em alemão: Schadenfreude (alegrar-se com o infortúnio alheio). Não que os brasileiros ou portugueses não sintam inveja, muitas vezes perversa, mas talvez esse não seja um elemento definidor de sua índole a ponto de merecer um verbo especial.

Atualmente, é estranho perceber como as pessoas continuam sempre as mesmas. Enquanto que até agora penso estar cada vez mais aceleradamente, tal qual o Universo, para mais e além de digitar mais rápido, de forma progressivamente mais bela, com opulento vocabulário, melhores e mais lapidados conceitos; outras, antes iguais a mim conformaram-se com seu estar passado e, vistas de minha perspectiva, “pararam no tempo”.

Nunca, talvez, leram aos cadernos intelectuais dos grande jornais paulistas. Talvez abram o jornal apenas para ler ao resumo das novelas e o horóscopo. Talvez dêem uma passadinha pelo caderno de empregos, verifiquem, só pra constar, a cotação do dólar. E, num dia realmente inspirado sua sabedoria burguesa resvale na leitura integral do caderno de entretenimento e num passar de olhos nas notícias das guerras pelo mundo, como tantas vezes eu mesma fazia. Até os 17 anos de idade, quando um certo bichinho me infectou, e este vírus contaminou-me através da leitura do Caderno Mais da Folha de São Paulo, as aulas do professor James do cursinho e a audição quase compulsiva das músicas de Chico Buarque, que é o mote final deste texto em redemoinho, ou talvez em pororoca.

Nesta mesma edição de Ilustríssima, na seção Arquivo Aberto – Memórias que viram histórias há o texto, algo até sentimentalista, mas delicioso “Saramago almoçou em minha casa. Carapicuíba, 1997” de Cristiano Mascaro. Tudo ia meio mais ou menos quando uma frase arrancou-me da mesmice inércia do hoje.

O autor lista os que convidara para o almoço, citando banqueiros, intelectuais, quatrocentões e arremata: “E, para despertar uma certa preocupação no Franco, meu genro, e alegria em minhas filhas Isabel e Teresa (e acredito que em Satiko também) [convidei] Chico Buarque.”

Como explicar a preocupação de Franco para quem desconhece quem é Chico Buarque? A coceira que imediatamente sentiu na testa? Como explicar a explosão de ansiedade nas três anfitriãs? Como piscaram longamente seus olhos na doce expectativa de poder estar a um metro de distância de Chico Buarque? Quem teria coragem de cozinhar para tentar alegrar ao paladar de Chico?

Numa expressão curta para demonstrar a mesura que sua presença suscita: Chico Buarque é deus.

Que fique claro que sou monoteísta estrita, e não pretendo com isso diminuir ao atribuir auxiliares ao meu Criador. Apenas pretendo fazer alguma justiça à arte de Chico Buarque.

Para ilustrar: é dito popular conhecido que absolutamente todo e qualquer homem é um potencial corno na presença de Chico Buarque. E toda mulher inteligente deveria colocar em seu acordo pré-nupcial: qualquer tipo de relacionamento, emocional, sexual ou intelectual com Chico Buarque não é adultério, mas a realização de um sonho inatingível acalentado por milhões de mulheres. Mesmo atualmente, com Chico já bem passado dos 60 anos. E todo homem corneado com Chico Buarque deveria, resolutamente, conformar-se que simplesmente nenhum mortal é páreo para competir com Francisco Buarque de Hollanda. E deve, compreensivamente, dar razão à sua esposa, reconhecendo que, se ele mesmo fosse mulher, não poderia deixar passar qquer oportunidade de poder eternamente gabar-se diante das amigas da inesquecível noite de amor que teve ao lado de Chico. Este é o tipo de feito que eu relataria até a meus bisnetos! Não digo que eu venderia minha alma ao diabo por uma noite de amor com Chico Buarque, mas acho que eu daria um rim para passar uma noite inteira com Chico, cantando-me, baixinho, no cangote. Ui!... Isso, com certeza, vale um rim!

Dizem que há um ranking do Índice de Felicidade Mundial análogo ao IDH, “Índice de Desenvolvimento Humano". E que no ranking da satisfação o campeão imbatível é o Butão, minúsculo e perdido no topo do Himalaia. No Brasil, tenho certeza, o campeão imbatível é o Rio de Janeiro pois as cariocas têm o deleite de eventualmente, ver Chico Buarque passar pelo calçadão, ainda mais diáfano que Helô Pinheiro, mesmo aos 20 anos. Só a felicidade de Marieta Severo, famosa e discreta atriz, que foi esposa de Chico por muitas décadas, já dispara exponencialmente a felicidade de todas as cariocas na média geral.

Se eu morasse no Rio, eventualmente, esperaria, como os paparazzi, Chico Buarque passar desavisadamente pela rua, só para poder suspirar a 4 metros dele, mas creio que não teria coragem de pedir-lhe um autógrafo, com medo de que sua pessoa física pudesse manetear sua persona criativa, que tanto amo. Fique tranqüilo, Chico, jamais me tornaria aquilo que os malucos americanos têm um ótimo termo para ilustrar: stalker. Um desses vitimou outro gênio musical, já citado: John Lennon. Mas como o Brasil tem bem menos malucos por km2 que os EUA, seus gênios e presidentes podem andar quase tranqüilos.

Assim como as pessoas se utilizam de seu acervo pré-fabricado, seu campo semântico familiar, sua língua, para expressar seus pensamentos, creio que da mesma forma utilizam-se de um certo acervo de expectativas, imagens mentais, arquétipos, clichês, sentimentalismos, que adquirem em parte através das músicas com as quais permitem-se chorar, e ouvem até decorar a letra ou até decifrar arranjos e partituras. Talvez eu não precise “maldizer o nosso lar, sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço te adorando pelo avesso” pois eu já chorei não só ao ouvir Chico cantá-lo mas também pela interpretação avassaladora de Elis Regina desta “Atrás da Porta”.

Em outras palavras, creio que a experiência de ouvir as músicas ricas e geniais de Chico Buarque alargou meu campo proximal de emoções e projeções psíquicas. Ampliou minha própria capacidade de ter sentimentos e fazer associações e transferências emotivas. Para quem tem 17 anos é muito mais proveitoso ouvir a discografia de Chico Buarque do que ler a “Os Lusíadas”. Não que Camões não seja relevante. Mas há pouco, sinceramente, que Camões realmente diga aos corações verdes dos adolescentes do séc XXI.

A maioria das pessoas contenta-se com um João Bosco & Vinícius, ou Maria Cecília & Rodolfo, ou Ivete Sangalo e similares. Eu pensava que Oasis, Pearl Jam, Renato Russo e a Legião Urbana eram o mais longe que eu poderia ir, mas vi-me inesperadamente diante de deus. Caí de joelhos e, como toda brasileira que já ouviu falar dele, me apaixonei. Não que eu tenha parado em Chico, depois fiquei mais boquiaberta ainda, embora não apaixonada, por João Gilberto, e a queda vertiginosa prossegue até hoje nas experiências emotivas e intelectuais que as músicas podem suscitar.

Assistir aos DVD’s de Chico Buarque e perder-se em seu olhos, como duas águas-marinhas é uma experiência hipnotizante. Perceber as diferentes nuances de sua voz em gravações com às vezes 30 anos de distância é o louvor de perceber como os anos, os cigarros e os excessos fizeram-lhe bem à expressão. Além de musicista, letrista, cantor, compositor, dramaturgo, Chico também tem se tornado romancista e é com orgulho que digo que já li 3 livros escritos por deus. A Torah? Não!!! Estorvo, Budapeste e Benjamin.

Até o recente “twiquito” (faniquito virtual via Twitter) pedindo que ele devolvesse o prêmio Jabuti recebido por seu mais recente Leite Derramado, tenho certeza foi despertado para satisfazer ao epíteto rodriguiano (do Anjo Pornográfico Nelson Rodrigues) de que “toda unanimidade é burra”. Então, não para dizer que Chico seja unanimidade pois há todo tipo de maluco no mundo, mas para reverificar o ditado ousaram sugerir que Chico não merece tal prêmio!

Para tentar ilustrar este texto tentei-me lançar à ingrata tarefa de elencar minhas músicas favoritas de Chico Buarque – estão a seguir sem nenhuma ordem. Tal tarefa é interminável. Em outra postagem elenquei, rápida e facilmente minhas favoritas de Amy Winehouse, Ella Fitzgerald e Billie Holiday. Mas com Chico não é tão simples assim. Sua obra é longa, abrange pelo menos 4 décadas, e é, toda, ótima.

Chico é deus. Chico é um gênio. Chico vai do samba ao blues, à valsa ao fado e ao samba, pára na bossa nova, dá uma pirueta no tango, no rock, no xote e termina num emocionante bolero. Outros artistas compõem letras de músicas. Chico Buarque é um ourives que rendilha, reconstrói e enobrece à última flor do Lácio, ou mesmo a enovela lindamente com suas primas, como em “Joana Francesa”.

Chico fez das próprias tripas a primeira lira que animou todos os sons. E canta toda sua profundidade abissal que apenas um eu-lírico feminino é capaz de compor, cantando com uma voz curtida numa longa boemia não só no Rio como em Paris, com um sobrenome duplo tão sonoro e pomposo, e tudo isso ainda engastado com dois hipnotizantes olhos azuis como uma turmalina-paraíba. Conhecer, saborear e enveredar-se pela obra de Chico Buarque é... orgásmico!


Lista das melhores músicas de Chico Buarque:


Amor Barato

Joana Francesa

Carioca

Chão de estrelas

Sem compromisso

Cotidiano

Morena de Angola

Notícia de jornal

Mulheres de Atenas

Samba de Orly

Sob medida

Teresinha

Pedaço de mim

Samba e amor

Homenagem ao malandro

A Rita

Construção

Minha história

Partido Alto

Xote de navegação

Assentamento

Cantando no Toro

Lígia

Luiza

Fado Tropical

Pois é

A ostra e o vento

Amanhã, ninguém sabe

As vitrines

Samba do Grande amor

João e Maria

Paratodos

Cálice

Vai passar

Bastidores

Futuros Amantes

Sobre todas as coisas

Valsa Brasileira

Cecília

Acalanto

Aquela mulher

Bancarrota blues

Cálice

Folhetim

Gota d’água

Romance

Samba e amor

Todo o sentimento

Tanto mar

Ciranda-da-bailarina

Apesar de você

Geni e o Zeppelin

Querido Amigo

Te amo

Bárbara

Olê Olá

A banda

A Rita

Trocando em miúdos

João e Maria

As minhas meninas

Beatriz

Sinal Fechado

Rosa dos Ventos

Carolina

Casamento dos pequenos burgueses

A ilha

Sonhos sonhos são

Feijoada Completa

Valsinha

Você vai me seguir

Atrás da porta

Deus lhe pague

De todas as maneiras

Tango do covil

Basta um dia

Umas e outras

Almanaque

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Diários de Motocicleta

Para quem ainda não assistiu, vale a pena. Para quem nunca ouviu falar deste filme de Walter Salles, ele é a adaptação do livro "De moto pela América do Sul" (Notas de Viaje) de Ernesto "Che" Guevara.

Nos mostra a trajetória de Che pelas pessoas da América, a descoberta das injustiças, das diferenças e semelhanças. Mas não é um filme sobre a descoberta do outro, mas sobre a descoberta de si. Che descobre quando contraposto a estas pessoas o que ele estava no mundo para fazer: transformar esta realidade árida, cultivar e fazer crescer o impossível.

Há uma fala muito interessante no episódio dos mineiros chilenos:
Seus olhos tinham uma expressão sombria e trágica. Cotaram do companheiro desaparecido em circunstâncias misteriosas e que aparentemente havia terminado no fundo do mar. Foi uma das noites mais frias da minha vida. Mas conhecê-los me fez sentir mais próximo da raça humana, tão estranha para mim.

Como exemplo, Che nos incita, nos provoca. Nos diz: vc tem grandes sonhos, quer ser imortal? Vá atrás e consiga. Por muito tempo isso parece possível, quantos sonhos alimentados apenas de ar... Mas a gente vai fugindo dos próprios sonhos ao deixá-los para depois. Tudo o que parecia tão possivelmente próximo deixa de ser importante quando caímos no marasmo da jornada de oito horas, que não nos dixa muito mais tempo do que para um happy hour com hora certa de acabar, com pessoas com as quais vc te pouca intimidade e pouco assunto...

É um filme um pouco monótono, sem grand finale, sem mocinha. E nada disso se sente, magnetizados que ficamos por aquela personagem, embrião se um grande herói. Deu capa da Veja, esta semana "Che, a farsa do herói". De Veja, era de se esperar. Ser atacado pela revista Veja quarenta anos depois de sua morte é apenas mas um dos fatos que engrandecem este homem, este simples latino-americano que lutou para transformar seu mundo.
Que tivéssemos todos a mesma coragem.
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