Era 1995. Eu contava 12 anos e passava pela parte mais difícil de minha vida. Não por ter 12 anos e estar em plena efervescência hormonal. Mas por viver num ambiente muito pouco propício a um saudável desenvolvimento psicológico, de qualquer pessoa.
Morava à rua Pedro Pires, 427, Vila Carrão. O pior endereço, de longe, no qual já tive a má sorte de residir. Não pela localização, não pela casa, mas pelas pessoas q comigo moravam. Eu residia com minha ex-mãe, Regina, e com seu amásio, R.
Certo domingo eu havia combinado com minha amiga Luciana, que estudara comigo na quinta série, e que não mais era minha colega, de irmos ao cinema do Shopping Aricanduva. Vivendo na megalópole "Sampa", bastante intimidadora para qquer tipo de deslocamento de uma pessoa inexperiente que poderia com muita facilidade "se perder para todo o sempre". Eu avisara no dia anterior a Regina deste combinado, e estava tudo certo para ela me levar ao shopping, eu encontrar minha amiga e com ela ver o filme enquanto Regina dava umas voltas e fazia umas compras por lá mesmo a tempo de eu sair da sessão e voltar com ela para casa. Tudo muito certinho.
Mas na manhã de domingo, não lembro ao certo o motivo, Regina resolveu que iria "me punir" por alguma coisa que eu havia ou não havia feito não mais me levando ao shopping. Chocada e em protesto, lhe disse algo como:
- Mas já estava tudo combinado! Já confirmei com a minha amiga que eu vou! Ela vai ficar muito brava se eu não aparecer!
Ao que Regina deu de ombros, e disse:
- Vá de ônibus!
Com frescos 12 anos, eu não tinha a menor idéia de como chegar de ônibus ao Shopping Aricanduva. E em 1995 ainda não havia internet como hoje, em que num simples click podemos tirar esta dúvida, nem nada que se parecesse com o GPS, ou Foursquare...
A discussão foi crescendo a um ponto em que percebi que Regina "amava mais" seu carro do que a mim, e que valorizava por demais seu próprio descanso, em detrimento de qualquer aspecto de minha vida. Eu tinha 12 anos, mas já era bem a mesma Fernanda que sou hoje. Num rápido lapso, pensando o que a poderia "abalar" e fazer capitular, subi as escadas como um raio, entrei em seu quarto e, bufando, tranquei a porta. Pensando em que tipo de retaliação lhe poderia fazer, vi em cima do gaveteiro contraposto ao espelho seu único vidro de perfume, enquanto Regina esmurrava a porta.
O peguei, fui até a varanda que dava para a garagem no andar de baixo e comecei a gritar, com todo o destempero do peito aberto de uma adolescente:
- Você ama essa p***a deste carro muito mais do que a mim! Quer saber, já que vc ama tanto a p***a deste carro, vou encher ele de perfume!
Regina, vociferava a esta altura já da garagem, do andar de baixo. Lembro-me até hoje do exato tom de azul bebê daquele frasco de "Tathy" do Boticário enquanto eu percebia: "se eu tacar o perfume fechado no carro, vai espatifar o para-brisa, ou amassar o capô, e isso vai dar uma merda enorme!" Então, inteligentemente, não taquei o vidro fechado sobre o carro, desenrosquei a tampa e, com prazer venenoso, despejei todo o seu conteúdo sobre o capô, enquanto Regina assistia boquiaberta.
- Agora seu carro tá bem perfumadinho!
Enquanto Regina subia e descia as escadas maniacamente, esmurrando a porta de vez por outra enquanto berrava descontroladamente coisas absurdas de qualquer mãe dizer a uma filha, peguei o telefone de seu quarto e liguei para Luciana:
- Minha mãe tá dando chilique aqui em casa e não vai mais me levar pro cinema, não vou poder ir.
Luciana, que também tinha seus problemas, me compreendeu, e disse:
- Vou pedir pra minha mãe passar na esquina da sua casa 13:30. Se vc puder sair, esteja lá e minha mãe te leva!
Lhe dei mil agradecimentos e falei que faria o possível. Num dos intervalos em que percebi que Regina estava no andar de baixo, rapidamente destranquei a porta, corri pro meu quarto e tranquei a minha porta. Peguei minha mochilinha com minha carteira, dinheirinho e documentos e fiquei "de tocaia". Ela veio esmurrar minha porta mais uma ou 2 vezes enquanto gritava impropriedades. Uma hora depois, ainda em tempo de ir ao cinema, ouvi o barulho do chuveiro no andar de baixo. Como seu amásio não estava em casa, percebi que Regina estava momentaneamente "fora de combate", peguei minha mochilinha, minha chave, e saí.
Esperei por mais de uma hora na esquina até que o carro da mãe de Luciana parou para me pegar. Consegui controlar o choro e quando ela me perguntou o que tinha acontecido, disse:
- Prefiro não falar sobre isso. Vamos mudar de assunto.
Sua mãe nos deixou no shopping, lhe deu um beijo, 20 reais, e disse:
- Me liga quando terminar a sessão que em meia hora eu te pego aqui mesmo.
Muito sorridentes e independentes, fomos ao cinema e vimos à (péssima) fita Debi & Loyd. A final do filme, enquanto íamos ao banheiro, disse a Luciana:
- Eu não queria voltar ainda pra casa, podemos ver mais um filme?
Ela me deu um meio sorriso de comiseração, daqueles que a gente nunca gosta de receber, e disse que tudo bem, ainda eram 4 horas, cedo, mas que tinha que ligar para sua mãe para avisar, se não ela ficaria preocupada.
Depois de ligar, me disse se eu não devia também ligar para minha mãe, pois ela poderia se alarmar com minha "demora extra", ao que eu disse que não era necessário. Voltamos ao cinema e assistimos à (razoável) fita "Ninguém Segura Este Bebê".
Saímos, muito alegres, ela ligou para sua mãe vir nos buscar, comemos alguma coisa, e quando fomos ao lugar combinado, percebi que já era noite. Enquanto sua mãe tomava o caminho da minha casa, me passaram na cabeça mil cenários do que poderíamos encontrar, afinal, eu saíra antes do almoço sem avisar, eu tinha 12 anos, e já era noite. Teria Regina chamado a polícia para me reportar como desaparecida? Teria Regina "convocado" familiares ou psicólogos para uma intervenção? Estaria ela me esperando sentada no sofá, com o pezinho balançando, para uma "conversa séria e definitiva"?
A mãe de Luciana me deixou na esquina e dei um suspiro de alívio ao perceber que não havia nenhuma viatura na porta de casa. O carro de Regina continuava na garagem, exalando um cheiro nauseante de Thaty. Girei minha chave na porta de entrada com um calafrio, de se daria de cara com ela na sala. Ufa! Não! Ninguém na sala.
Rapidamente corri pelas escadas, e enquanto passei pela frente de seu quarto com a porta fechada, ouvi que sua TV estava ligava. Corri e me tranquei no meu quarto, o sangue gelando nas veias: se daria tempo de trancar a porta antes que ela invadisse o recinto e me batesse. Tranquei e sentei no chão, contra a porta, com a certeza de que logo ela viria me dar um sermão de como ela tinha ficado preocupada e desesperada com o meu sumiço. Um, 2, 3 minutos, nada.
Fui para a cama, repassando os acontecimentos do dia. Meia hora, uma hora, 2 horas, nada!
Depois foi 1 dia, 2 dias, uma semana, nada! Ela simplesmente nunca mais tocou no assunto.
Eu tinha 12 anos mas já sabia que a pessoa responsável por ter "conversas sérias" comigo estava pouco se lixando em ter "conversas sérias" comigo e me dar orientações para a vida. E que a pessoa que mais deveria "se preocupar comigo" e cuidar de mim estava pouco se lixando para qualquer coisa minha.
Este foi o pior endereço em que morei e as pessoas que comigo lá moravam as que tive a maior infelicidade em conhecer. Esse foi o período mais triste de minha vida.
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