sábado, 6 de abril de 2013

De Guedes

Spoil alert: não leia caso não queira se decepcionar com minhas pequenezes adolescentes.

Era 1998. Eu tinha 15 anos e acabara de entrar no Ensino Médio. Estudava na EE Prof. José Marques da Cruz, na Vila Formosa, zona Leste de São Paulo, capital.

Na oitava série, eu completara o Ensino Fundamental ao lado de meus até hoje muito amigos Maristela, Romeu, Gisele e Thaís. Na passagem para o Colegial, Thaís e Gisele se matricularam em outras escolas, mas Romeu e Maristela se matricularam no "Jomacruz" junto comigo, e caímos na mesma sala. Rapidamente nosso "trio parada dura" virou um "quarteto fantástico" com a adição de Francisco Eduardo, o "Chico" ou, para mim, "Chicote".

Em nossa sala de aula havia pelo menos outros 30 alunos, e um deles demonstrava profundo interesse em se tornar o "quinto elemento" do nosso quarteto: TGO, adiante denominado "Guedes", seu apelido, pelo qual já o chamávamos à época.

Os 2 membros masculinos de nosso grupitcho são homossexuais, e embora à época fossem um tanto "jovens demais" para fazer uma corajosa "saída do armário", já era perceptível, e nenhum dos dois disfarçava, que "aquela Coca era Fanta". Também o Guedes era homossexual, mas bem mais afetado que os dois: era, desculpem-me a expressão, uma "bichona", bem efeminada.

Mas, surpreendentemente, seu alvo de interesse em nosso grupo não era nem Chico nem Romeu, mas eu. Não fosse o Guedes gay, eu pensaria que ele estaria com alguma paixonite por mim. E até me perguntaram isso certa vez, ao que respondi:

- O Guedes não quer namorar comigo, ele quer SER EU.

Ele me imitava, adulava, babava meu ovo, ria de tudo o que eu falava, e também o levava tudo muito a sério, puxava meu saco, até um ponto que chegava a ser irritante. Essa sua subserviência me incomodava. Era chato falar as coisas sabendo que ele não as analisaria, simplesmente as aplaudiria, nunca discordaria de mim, nem me enfrentaria, em nada. Não era isso, definitivamente, o que eu procurava em um amigo. Eu procurava pessoas "firmeza", interessantes, com personalidade. E Guedes era um "Maria vai com a Fernanda", que nada me acrescentava.

Eu tinha 15 anos e a maturidade psicológica de uma ervilha, e não me orgulho hoje do que relatarei a seguir.

Percebi que eu poderia "me aproveitar" do "rabinho sempre abanando" deste candidato a amigo. Então lhe disse: "tá bom, se vc quer ser meu amigo, então de hoje em diante vc vai carregar minha mochila e meu material." E ele aquiesceu com um sorriso, como se tivesse sido promovido a minha "dama de companhia". E por várias semanas eu tive um courier, sempre a postos para carregar minhas coisas.

Até que o Guedes fez ou falou alguma coisa que eu não gostei, não lembro exatamente qual foi o motivo, e eu decidi que não queria mais amizade com ele. Mas ele continuou a insistir que queria ser "readmitido" no grupo. Conforme ele não cansava de apelar a Maty, Romeu e Chico, resolvi fazer o seguinte: estipular condições que ele não aceitaria pro prosseguimento de nossa amizade. À época já fumávamos, todos, e eu impus como condição: para falar comigo, ele teria que me entregar toda segunda feira um maço de cigarros, o que garantiria que eu falasse com ele durante a semana.

Eu achava que ele ia rir e falar "de jeito nenhum", finalizando a questão. Mas para minha grande surpresa ele topou, e por algumas semanas eu não precisei mais me preocupar em comprar cigarros, pois o Guedes mos dava, em troca do simples prazer de poder falar comigo.

Eu o destratava, era irascível com ele, na esperança que ele se posicionasse: "estou farto, chega!" Mas não, ele alegremente me entregava um maço de cigarros toda semana e ainda solicitamente se oferecia para carregar meu material, o que só aumentava minha exasperação.

Então resolvi endurecer ainda mais "as condições" para eu "me dignar a dirigir-lhe a palavra": um maço de cigarro não bastava, daquele dia em diante, eu queria semanalmente um maço de cigarro mais 10 reais. E em 1998 R$10,00 era muito mais do que "déis real" hoje...

Eu esperava que ele dissesse "No Way", mas mais uma vez, para meu assombro, ele aquiesceu. E eu simplesmente não acreditei quando na segunda feira seguinte, ele me entregou logo ao me ver à 6:55 da matina, o maço de Marlboro Lights mais uma nota novinha de "dez conto". Também disso desacreditaram Chico, Romeu e Maristela.

Nenhum deles comigo, por "minha amizade estar à venda", pois minha amizade nunca esteve à venda, mas com a absoluta falta de dignidade do Guedes em aceitar as condições absurdas que eu estipulava. Pois amizade, por definição, deve ser incondicional.

Provavelmente o Guedes achou que aqueles dez reais lhe garantiriam meus sorrisos e simpatia, o que não ocorreu: prossegui a desdenhá-lo. Ao final da terceira semana ele finalmente disse que estava farto, e não daria prosseguimento ao nosso "escambo" de afinidades. Fiz um "Ufa!" interno, pois se ele jamais tomasse uma posição, eu só prosseguiria em minha escalada de condições cada vez mais absurdas, e talvez na próxima semana eu passasse a lhe cobrar 20 reais mais o sagrado maço de cigarros.

Ele parou de me adular e de insistentemente tentar entrar em nosso grupo, e jamais vi qualquer outro motivo para readmiti-lo. Eu não via nele nenhuma "substância", "desafio", "personalidade" ou "doçura" que me fizesse querer me aproximar. Eu não via nele nada de "interessante", ou diferente. Eu não via nada que ele pudesse "me acrescentar". Eu nunca quis um "puxa-saco" nem um séquito, uma entourage, de aduladores. E era justamente esse papel que Guedes queria ter, o que muito me irritava. Não me importava que ele fosse gay, queria que ele fosse "homem", uma pessoa com dignidade e auto-respeito.

Sempre fui cheia de "marra" e personalidade, e de certa forma eu sentia que o Guedes me vampirizava, imitava meus trejeitos e gírias, elogiava tudo meu, emulava minha postura, como que planejando ser uma "versão drag" de mim... Ele me achava "o máximo" e, para mim, isso era um pecado mortal, pois nisso eu percebia que ele não me elogiava "de verdade", pois não importava o que eu fizesse, para ele era tudo maravilhoso.

Depois de me formar no terceiro colegial, nunca mais vi o Guedes, mas soube por amigos que o encontraram vez ou outra "na noite" e pelos dark rooms da vida, que após eu já estar bem adentrada no curso de História na USP, também o Guedes estava a fazer o curso de História, mas na UNG (Universidade de Guarulhos). Nunca pude tirar a dúvida se era simples coincidência, mas sinceramente creio que não. Acho que ele se matriculou em História apenas depois de saber, e apenas porque soube, que eu estava a fazer esta graduação.

Não sei se ele se formou, nem se hoje é professor como eu. Hoje me sinto um pouco culpada pela forma como o tratei. Vendo de hoje, percebo como foi completamente absurdo estabelecer condições para ser sua amiga. E como foi surreal que ele tenha "topado" isso. Sinto que talvez ele fosse um garoto muito perdido, e visse em nosso grupo o único que o aceitaria sem levar em conta sua sexualidade.

E nunca foi sua condição sexual que me incomodou: mas sim sua subserviência. Provavelmente ela fosse fruto de uma baixa auto-estima, e se eu tivesse naquela época minha cabeça de hoje, teria procedido de forma muito diferente a respeito dele.

Às vezes me pergunto como estará o Guedes hoje, inclusive me questionando se ele está vivo. Quando estávamos no colegial, ele era obeso. E depois, quando já ambos na graduação, soube pelos que o encontraram na "cena gay" que ele estava assustadoramente anoréxico, e provavelmente envolvido com químicos pesados.

Gostaria de saber que rumo ele levou, se se tornou uma pessoa mais confiante e assertiva, qualidades minhas que eu creio que ele ambicionasse. Se concluiu a faculdade, no que ele trabalha, se continua a frequentar os "inferninhos", ou se transformou-se radicalmente, para um rumo inimaginado. Se ele encontrou pelas veredas da vida "outra Fernanda" na qual se espelhar, e se outras vezes se submeteu às coisas que o fiz passar, se de outras pessoas ouviu calado as "desancadas" que com tanto venenoso prazer eu lhe dispensava.

E qual tipo de desdobramento esses fatos tiveram em sua vida, no que tudo isso resultou, para o bem ou para o mal.

Chico Buarque - Sinal Fechado https://www.youtube.com/watch?v=949SuBskT2U

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