domingo, 3 de junho de 2012
Causos escolares: aborto e covardia
- Sabe, professora, eu tenho uma filha q não tem o nome do pai da certidão. Eu nem vou atrás disso nem de pensão, hj sou casada e meu marido é um verdadeiro pai pra minha filha.
- Mas vc deve ir atrás disso. O dinheiro da pensão não é para vc, é para a menina. Mesmo q vc não precise ou não queira tocar no dinheiro, entre na Justiça e exija a pensão a q sua filha tem direito. Se vc quiser, pode deixar esse dinheiro no banco e ela pode sacar quando ficar maior de idade, assim ela vai ter um dinheiro pra fazer faculdade, ou até comprar um carro.
- Mas é q me disseram q se o pai pagar pensão vai ter direito de levar ela nos finais de semana.
- Sim, é um direito. Quando a pensão alimentícia é acertada, o juiz também determina os dias de visitação. Se o pai estiver pagando pensão, tem direito a passar alguns finais de semana com a menina.
- Professora, é justamente isso q eu não quero. A senhora não sabe o quanto esse homem me fez sofrer. Quando eu engravidei, ele falou q não queria o bebê, q eu já tinha 2 filhos, do meu ex-marido q tb nunca pagou pensão, q ele estava desempregado, q eu era faxineira e ganhava salário mínimo. Um dia ele chegou com uma cartela de remédio na mão, me mandou tomar e disse q isso ia "resolver o problema". Nem sei dizer como eu me senti.
Eu olhava pros meus filhos e sentia uma dor, nem sei onde, pensando se eu tivesse abortado eles, matado eles e eles não estivessem naquela hora sorrindo pra mim. Não sou religiosa nem nada, nunca tinha pensado em fazer um aborto, mas vendo meus filhos, mesmo naquela situação, não tive coragem. Sabe, se um homem tivesse me pegado à força talvez eu tivesse coragem, mas tinha feito aquele bebê apaixonada. O bebê não tinha culpa se agora eu descobria q o pai dela não era um homem de verdade.
Não tive coragem, professora. O meu namorado largou de mim quando eu disse q não ia abortar. Nunca mais olhou na minha cara nem quis saber da criança. Eu chorei a gravidez inteira, sem saber o q seria de mim, sozinha e com 3 filhos pequenos pra criar, sem marido pra me ajudar. Quando fui contar pros meus patrões, tive medo de ser demitida, mas eles me deram força, ainda mais quando contei o q o pai da criança tinha sugerido. Mesmo levando a gravidez adiante, não estava feliz, não fazia planos, não conseguia pensar num nome, o bebê era mais motivo de preocupação do q de alegria, e assim foi os 9 meses.
Mas sabe, professora, quando a gente tá no fundo do poço a gente vê como Deus não nos abandona e nos dá força quando a gente mais precisa. Entrei em trabalho de parto justamente na festa de Reveillon. Q apuros! Comecei a sentir as contrações e meu pensamento foi "Agora para melhorar tudo não vou conseguir q ninguém me socorra, ninguém vai trocar a festa de Reveillon por uma noite no hospital, talvez nem tenha médico pra fazer o parto!"
Mas um vizinho me ajudou na hora, me levou pra Santa Casa e minha filha nasceu assim q o ano virou, perfeita e saudável. Minha filha foi o primeiro bebê a nascer em Rio Claro em 20**. Todas as enfermeiras e médicos ficaram emocionados, veio todo mundo me dar os parabéns. Até um jornalista tirou foto da gente e perguntou o nome da bebê. Eu ainda não tinha decidido, mas naquela hora o nome dela veio direto na minha cabeça e não tive nenhuma dúvida: "O nome dela é Vitória".
Minha filha foi a minha vitória na vida, e percebi q ela tinha nascido naquele momento pra me trazer de volta a esperança. Senti um pouco de vergonha de ter passado a gravidez tão triste, preocupada e sem esperanças, pois segurando minha filhinha no colo vi q ela era um presente de Deus e q me traria muitas alegrias no futuro. E como ela saiu no jornal, virou o xodó da vizinhança e ganhei um monte de roupinhas e fraldas q eu não teria condições de comprar.
O pai dela nem quis saber. Ele mora perto de mim até hoje, e quando a gente se cruza na rua ele vira a cara, muda de calçada, dá um jeito de fingir q não nos conhece. Alguns anos depois me casei de novo, e meu atual marido é um verdadeiro pai para a Vitória.
Se eu for pedir pensão pra minha filha, ela vai me perguntar pq me separei do pai dela, pq ele nunca quis saber dela. E eu não quero contar pra ela. Eu não quero q ela saiba q o pai quis q ela fosse abortada. Acho melhor ela não saber, pois se ela souber q o pai dela existe e quis q ela não existisse ela pode ficar revoltada, e com razão.
Às vezes quando ela está brincando, percebo q ela fantasia com o pai imaginário, q seria um grande herói. Quando ela me perguntou quem é o seu pai disse q ele mora em outra cidade, e a gente não tem mais contato. Não sei o q vou dizer quando ela crescer, ou se alguém apontar o pai dela na rua, pois eles são muito parecidos. Não quero q ela saiba q um dia não foi desejada, pois ela, junto com meus outros filhos, é a maior alegria q eu tenho, e meu motivo de viver. Nem sei como eu me sentiria hoje se tivesse sido covarde e matado minha filhinha. Não quero q ela jamais venha a saber disso.
- Acho q vc está mais q certa. Parabéns pela sua coragem. - disse eu, percebendo q naquela aula ela havia ensinado a mim mais do q eu poderia ensinar a ela. Não sobre História, mas sobre Vida, Coragem, Ética e Amor.
terça-feira, 22 de maio de 2012
Diferencas entre os bnei Noach e os bnei anussim
A história dos hebreus foi cheia de percalços, incluindo 2 expulsões de sua terra e a submissão a diferentes poderes imperiais. A primeira expulsão, ordenadas pelos Assírios, levou à dispersão das tribos e "sumiço" de 10 delas, restando as de Judá e Benjamin, e poucos remanescentes da tribo de Levi.
A Diáspora ordenada pelos romanos resultou numa dispersão prolongada dos judeus; q foram assim divididos, a grosso modo, em 2 grupos "étnicos": os askhenazim (alemães) da Europa central e os sefaradim (espanhóis) da Península Ibérica e norte da África.
Diferentemente da maioria da religiões, o Judaísmo não é proselitista: não procura converter à sua fé adeptos de outras religiões. Embora qualquer um possa se converter ao Judaísmo (embora esse processo seja difícil), ninguém nunca verá judeus fazerem propaganda de sua religião aos não-judeus tendo em vista convertê-los ao Judaísmo.
Muitos gentios (não-judeus) nisso vêem q o Judaísmo não contempla nem tem nenhuma preocupação com quem não é judeu, como se os gentios estivessem excluídos de sua concepção religiosa do mundo, o q é um erro.
A Teologia judaica professa q Deus fez 2 alianças, sucessivas e diferentes com os homens. Uma ampla, com todos os homens. Outra específica, exclusiva, com os descendentes de Jacó/Israel. A aliança com todos os humanos foi firmada com Noé. A aliança com a nação de Israel, apenas com os q estiveram presentes na revelação do Sinai e seus descendentes, é a aliança de Moisés.
Talvez falte aos gentios o conhecimento de q, de acordo com o Judaísmo, não são só os judeus q "vão para o Céu" (o termo correto seria "terão parte no mundo vindouro"), e q isso significa q Deus "pega mais leva" ou "cobra menos" dos gentios do q dos judeus. Dos gentios, os bnei Noach (noachides, noahides ou "filhos de Noé") Deus exige o seguimento de apenas 7 leis, enquanto q aos judeus é exigido o seguimento de 613 leis.
O movimento bnei Noach não se destina a converter ninguém ao Judaísmo. Busca divulgar as 7 leis da aliança noética para a elevação ou retificação de toda a Humanidade. Busca divulgar q os "tementes a Deus" e os "justos entre as nações" também têm seu espaço na concepção de mundo judaica.
Este texto não ficaria completo sem citar quais são estas leis.
1) Creia em D'us. Não sirva a ídolos.
2) Não blasfemar.
3) Não roubar.
4) Não matar.
5) Não cometer adultério
6) Cumpra as leis do país
7) Não coma um membro de um animal vivo e não seja cruel com animais.
Para saber mais: http://www.chabad.org.br/interativo/FAQ/sete.html
O movimento bnei anussim (filhos dos forçados) é muito diferente do bnei Noach. Enquanto todo ser humano sobre a terra é um filho de Noé, os bnei anussim são um grupo étnico-cultural específico, e muito diversificado. Existem bnei anussim de todas as cores: brancos, negros, asiáticos e até indígenas.
Também chamados de criptojudeus, a depender do lugar os bnei anussim também são chamados de marranos, neofiti, xuetes, cristãos-novos, ladinos, conversos, daggatuns, dönmeh, falash mura, lemba, judeus de Paradesi, Cochin, Malabar ou Kaifeng, entre outras denominações. Embora haja variações particulares, podemos afirmar q, embora os grupos referidos por estas denominações não pratiquem o Judaísmo como ele é configurado nos dias de hoje, fazem parte do grupo étnico hebreu.
São judeus, mas não são judeus. Fazem parte da etnia q descende dos hebreus, porém não praticam o Judaísmo rabínico, haláchico. E não deixaram de praticar o Judaísmo por sua livre escolha, mas pq desde a Diáspora e a disseminação do Cristianismo, ser judeu era perigoso. Especialmente na Europa, praticar abertamente o Judaísmo equivalia a uma sentença de morte nas mãos do Tribunal do Santo Ofício, a famosa Inquisição católica. Para salvar a própria vida, muitas comunidades judaicas se converteram à religião q lhes era imposta.
Contudo, em suas tradições culturais estes grupos de forçados (anusim) carregam diversos "marcadores" cuja origem é a prática do Judaísmo. Tradições como acender velas na sexta-feira, recusa em ingerir carne de porco, métodos de abate de animais, jeitos específicos de limpar a casa e lidar com os mortos, casamentos endogâmicos, diversas tradições familiares seguidas por séculos sem q muitas vezes seus descendentes saibam q estes costumes na verdade revelam uma herança calada.
O Brasil é um lugar especialmente rico em tradições criptojudaicas. Inconscientemente, muitos brasileiros eternizam em seus costumes populares reminiscências q revelam nossa origem insuspeita. Elementos folclóricos q muitas vezes consideramos oriundos dos portugueses na verdade revelam a origem cristã-nova de nossos antepassados.
Expressões e tradições tais como "chorar a morte da bezerra", "fazer mesura", dizer "que massada", "a carapuça serviu", "pedir bênção, ou 'bença' dos pais" antes de sair de casa, dizer "Deus te crie" quando alguém espirra, dizer q "apontar as estrelas dá verruga", antes de beber derramar um pouco da bebida "para o santo", todos estes costumes "brasileiros" são de origem cripto-judaica.
Além destas tradições orais, outro tipo de "marcador" pode ser usado para auferir se uma pessoa descende de judeus: o sobrenome. Sobrenomes referentes à religião cristã, referentes à flora, referentes a profissões e lugares. Muitos apelidos familiares q achamos ser de origem portuguesa revelam essa herança insuspeita. Citarei apenas alguns sefaraditas. Se vc tem qualquer um dos sobrenomes citados a seguir, é quase certo q vc é um bnei anussim:
Amorim; Azevedo; Álvares; Avelar; Almeida; Barros; Campos; Carneiro; Carvalho; Cruz; Dias; Duarte; Ferreira; Franco; Gonçalves; Lemos; Lopes; Machado; Martins; Mattos; Meira; Mello; Mendes; Miranda; Mota; Nunes; Oliveira; Paiva; Pardo; Pilão; Pina; Pinto; Pessoa; Ribeiro; Rodrigues; Rosa; Salvador; Souza; Torres; Vaz; Viana; Vargas; Andrade; Brandão; Brito; Bueno; Cardoso; Carvalho; Castro; Costa; Coutinho; Dourado; Fonseca; Furtado; Gomes; Gouveia; Marques; Prado; Mesquita; Mendes; Pereira; Pinheiro; Silva; Soares; Teixeira; Teles, Ramos, Oliveira; Pereira; Ferreira; Pimentel; Abraão.
Esta lista deve surpreender a muitos, pois a maioria desses sobrenomes (retirei os menos conhecidos) é muito comum entre os brasileiros, a maioria dos quais os carrega sem saber sua origem. Todos são citados em autos-de-fé inquisitórios como pertencentes a judeus ou são ainda hj ostentados como sobrenomes tipicamente judeus, fora do Brasil.
Para os q acham q estou exagerando, existem estimativas de q, durante o Brasil Colonial, cerca de 1 terço dos habitantes da colônia de origem portuguesa eram além disso, cristãos-novos. Q emigraram de Portugal para sua colônia americana por perseguição religiosa. Em Portugal eram discriminados e perseguidos por serem cristãos-novos e viram na emigração para a colônia uma forma de escapar à perseguição do Tribunal da Santa Inquisição. Na mesma medida em q os puritanos ingleses emigravam para as colônias britânicas na América para fugir à perseguição religiosa no Velho Mundo, cristãos-novos portugueses se mudavam para o Brasil; para fugir à perseguição religiosa.
Durante a colonização da América portuguesa, seus residentes tiverem um breve suspiro de "liberdade de culto" durante a ocupação holandesa do Nordeste, e neste período de liberdade estes criptojudeus puderam "sair do armário" e reviver suas tradições, chegando a erigir a primeira sinagoga em solo americano, a lendária Kahal Zur Israel, na "rua dos judeus", em Recife, Pernambuco. Finda a ocupação holandesa, os q não emigraram para fundar Nova Amsterdã (New York city, a "big apple", Nova York) retornaram à sua condição de judeus ocultos.
O movimento bnei Anussim procura divulgar entre os descendentes destes judeus forçados a se converter sua origem judaica, objetivando reintegrá-los à comunidade judaica, bem como reconduzi-los à prática do Judaísmo como religião.
Detalhe nem tão pequeno assim é q ser descendente de judeus, mesmo q comprovadamente pela tradição familiar, pelo sobrenome ou mesmo por um teste genético não torna ninguém imediatamente um judeu, na religião. Todos os filhos dos forçados são muito bem-vindos em se reintegrar à comunidade dos seus antepassados. Porém uma etapa essencial faz-se necessária: a conversão. Ou melhor, a "conversão de dúvida".
Mas muitos estranharão pq alguém q comprove ser descendente de judeus ainda assim precise passar por uma rígida, criteriosa e economicamente proibitiva conversão (impossível em território brasileiro atualmente) para poder ser plenamente aceito em sua comunidade ancestral. Isso acontece pois no processo de assimilação às comunidades geográficas nas quais residiam, perderam-se os registros genealógicos e a maioria dos anussim "se misturou" às comunidades locais, trazendo elementos étnico-culturais variados, comumente considerados idólatras. Não há como comprovar sua descendência matrilinear direta. Portanto, mesmo nas comunidades criptojudaicas fechadas, não há como ter 100% de certeza de q sua descendência judaica pela linha materna é ininterrupta. Por isso os filhos dos judeus forçados precisam se converter pela Halachá para retornar à comunidade judaica.
Espero com este texto ter contribuído para esclarecer q os bnei Noach são todos os seres humanos sobre a terra, e q desta forma todos os gentios são contemplados pela religião judaica e não precisam "virar judeus" para terem seu lugar no mundo vindouro. Apenas precisam observar as 7 leis transcritas acima.
Adversamente, os bnei anussim são um grupo étnico composto por todos os descendentes de judeus q, por diversos motivos, foram obrigados a "deixar de ser judeus", ao menos na "casca externa". Existem bnei anussim loiros, ruivos, negros, indianos, chineses, latinos: de todas as cores do espectro humano. Porém, abaixo das diferenças aparentes em seu fenótipo, todos integram a etnia judaica. E por serem descendentes das tribos de Israel, estão sendo, progressivamente, trazidos à lembrança de suas raízes. E, caso os descendentes destes forçados sintam q no fundo de sua alma bate um coração judeu, encontram nos seus primos distantes um convite: retornar às suas tradições, reviver a herança dos seus antepassados, fazer o caminho de volta: retornar à nação judaica e à prática do seu Judaísmo ancestral.
Portanto, embora o Judaísmo não procure, de nenhuma forma, converter gentios em judeus, no caso dos bnei anussim é diferente. Converter um filho dos forçados em judeu não é converter um gentio em judeu: é reconverter um hebreu, um israelita, em judeu: reintegrar à comunidade judaica pessoas q pertencem a essa ancestralidade mas foram obrigados a abdicar de sua religião para salvar sua vida, na época q "Judaísmo" era crime. O movimento bnei anussim busca resgatar judeus, q muitas vezes nem sabem q são judeus, trazê-los ao conhecimento de sua herança e reintegrá-los à sua comunidade étnico-religiosa.
sábado, 5 de fevereiro de 2011
De meu biso e minha Nonna – imigrante e oriundi
É inegável a contribuição não só genética como cultural que os latino-americanos devem reputar a seus antepassados indígenas. No Brasil, especialmente, algo da indolência latente típica aos brasileiros remonta aos nossos avós autóctones. Certa vez um aluno me perguntou, claro que não nesses termos, mas nesse sentido: “Quando vemos aos demais povos latino-americanos, são expressas suas feições indígenas. Mas, e no Brasil, o que aconteceu com os índios brasileiros?”
Para além do genocídio, intencional pela guerra ou acidental pelas doenças, os índios brasileiros, mais que dizimados foram absorvidos. Portanto, respondi-lhe: “Os índios brasileiros somos nós. Embora não tenhamos olhos tão puxados, todos nós aqui nessa sala de aula seguramente temos sangue indígena.” O aluno, sabendo-se multi-mestiço, até deu um sorriso com minha resposta e talvez tenha depois reconhecido em seus olhos amendoados algo se seu sangue tupi.
Freqüentemente muitos não entendem pq a identidade nacional brasileira é mais difícil de ser compreendida, e muito crêem que no Brasil o patriotismo não existe no mesmo grau que na França, na Espanha, ou na Inglaterra. De fato. A identidade francesa, inglesa e espanhola remete-se não só a “nações” mais antigas, como tb mais uniformes, forjadas no sangue de uma Revolução Burguesa. Que poderia ser expressa pelo termo “etnia”. Um certo reconhecimento de que descendemos de um grupo que lutou e derramou seu sangue para garantir-nos nossas liberdades “democráticas”. O que não ocorreu no Brasil; que nunca passou por nenhuma Revolução verdadeira, popular. Isso, infelizmente, ainda sói fazer.
É muito mais fácil reconhecer um francês, espanhol ou inglês pelo seu fenótipo do que um brasileiro. Brasileiros podem ter qquer aparência exterior, de qquer etnia, pois o Brasil recebeu imigrantes dos 4 cantos do mundo. Por isso nosso passaporte é muito falsificado. Em “The Bourne Identity” grita o passaporte brasileiro de João do Carmo, assinado por Gilberto do Piento, só para ilustrar.
Creio que a única “etnia” reconhecível como exclusivamente brasileira refere-se ao que alguns chamariam pejorativamente como “nordestinos”. Os nordestinos são os únicos brasileiros que, pelo seu fenótipo, são imediatamente reconhecíveis como brasileiros. Pelo diâmetro ampliado do crânio, pela “cabeça chata”, pelo tronco reto, pela estatura baixa, pela pele morena, cabelo enrolado e feições mestiças de branco, índio e negro. Tenho eu também sangue nordestino via meu avô materno. Também meu amado avô era um reconhecível “nordestino” étnico, ainda que branco. Não havia boné que lhe coubesse.
Tenho eu portanto esse sangue etnicamente exclusivamente brasileiro, e dele tenho orgulho, pois quem mo legou foi um homem honrado. Porém minha identidade americana vai muito mais além. Sou também fruto da imigração. Pela via paterna sei que tenho sangue espanhol. Pela via materna sei que tenho sangue português e italiano.
Fizessem meu perfil genético, ao analisar meu DNA mitocondrial, diagnosticar-me-iam como oriundi. A mãe da mãe da mãe de minha ex-mãe era a signora Maria Bianchetti, italiana, que emigrou para o Brasil. Desta linhagem herdei meus seios fartos, minhas emoções passionais, meu gosto pelo drama e meu gesticular incontrolável, pois italianos, para além de com a boca, falam com as mãos. Minha trisavó oriundi Maria Bianchetti casou-se com o também italiano Geronimo Pilon originando minha nonna já brasileira Giselda Pilon, que casou-se com o português Agostinho José Alves, espírita kardecista, filho de Maria Cândida Gonçalves de Vila Pouca de Aguiar em Trás-os-Montes (Portugal), e originou minha avó já muito citada Shirleÿ Pilon Alves quando solteira, vulga “Tula”, que casou-se com meu avô mui citado, o nordestino Vicente Novais da Silva, originando Regina, que me pariu.
Posso pois traçar minha linhagem até a quinta geração, remontando-a à Itália, a Portugal e ao Ceará. Sei que tenho direito à cidadania européia por minha avó Tula, ainda viva, ser filha do já falecido português Agostinho José Alves. De minha linhagem portuguesa também tenho a única informação sobre os possíveis genes defeituosos que carrego pois o pai de meu bisavô Agostinho, Dom Augusto José Alves, era surdo. Para além dele, nunca tive notícia de nenhum parente ou antepassado portador de nenhuma deficiência. O que é até atípico.
Reconhecer ser descendente de imigrantes estrangeiros traz subjacente uma confissão de pobreza ancestral. Pessoas migram por motivos de opressão: religiosa, política, étnica ou econômica. Por este motivo final emigraram meus antepassados, e para o Brasil vieram iludidos talvez pelo sonho de “fazer a América” e aqui enriquecer.
Minha Nonna Giselda foi uma mulher cuja história é admirável e merece registro. Se eu não o fizer ninguém mais o fará e sua memória cairá no esquecimento. Portanto, para honrar à vovó, eternizo aqui, mais do que em tinta preta sobre papel, em pixels e bytes, que a traça não rói e o ladrão não rouba.
Minha Nonna foi registrada apenas aos 5 anos de idade, disseram-me pq precisava do papel para ingressar na escola, que freqüentou apenas 2 anos, para se alfabetizar. Portanto, ao morrer seu registro em papel marcava 5 anos a menos que seus 99 anos e 10 meses. Quase completou um século. Não, não viu o cometa Halley 2 vezes, pois na década de 1980 ele foi indivizável. E quando criança, tb não o viu. Contou que sua mãe, ao avistar o cometa mandou-a esconder-se no armário, por estar certa de que o cometa vinha para anunciar o Fim dos Tempos e o Juízo Final.
Consta igualmente que minha bisavó, paulistana como eu, quando criança fugiu com a família de uma fazenda de café em Serra Negra pois os capatazes dos cafeicultores queriam dispensar aos italianos o mesmo trato dado aos negros escravos. Chocados com tal selvageria, os Pilon fugiram de madrugada, com a roupa do corpo, para Rio Claro, onde o tecelão Geronimo conseguiu trabalho na fábrica da família dos também oriundi Matarazzo.
Foi tb trabalhando para os Matarazzo que minha bisavó ficou “meio surda” ainda criança, já de volta a São Paulo, capital. Fiquei sabendo disso com muita surpresa. Certa vez, assistindo com minha Nonna à televisão, ela pediu-me para subir o volume do áudio. Subi e comentei que era normal, dada sua avançada idade, ela ter problemas de audição. Ela sorriu. Eu não entendi. Ela explicou que sua surdez não era devida à idade. Contou-me então que percebera-se “meio surda” já aos 12 anos, pois trabalhava já há muito tempo entre as máquinas de tecelagem dos Matarazzo, muito antes de alguém pensar em “Leis Trabalhistas”.
Minha nonna era uma mulher de muita coragem, como eu. Ela casou-se com um rapaz 7 anos mais jovem. O que hoje é comum e então era anátema. Soube que quando ela era moça, na então “idade de casar” (creio que entre os 15 e 21 anos), foi noiva de um rapaz que, descobriu, a traía. Ora, comum era às mulheres dos 1930 engolirem caladas seu orgulho e agarrar-se à primeira oportunidade de se casar. Não a quem carregava os mesmos genes que me animam. Minha bisa mocinha rompeu orgulhosamente seu noivado. Solteira, viu os anos se passarem.
Aos 31 anos, já segura de que seu destino era “ficar para titia” conheceu um rapaz mais jovem. Meu biso Agostinho tinha então 24 anos e alguns “problemas com a Justiça”. Não era bandido, mas manifestava os genes da insubordinação, tal qual eu. Estava envolvido em questões sindicais, Anarquismo e greves operárias. Por ser estrangeiro, sabia que o governo já estava a adiantar os papéis para sua extradição como persona non grata, de volta para Portugal.
Imagino que tenham-se apaixonado. E que tenha sido algo escandaloso, em 1937, uma “solteirona” oriundi casar-se com um tipo português meio suspeito, envolvido com “arruaças” e, acima de tudo, mais jovem! Não tivesse minha nonna coragem de enfrentar as fofocas da vizinhança, não estaria eu aqui para o narrar. ;) Casaram-se em janeiro de 1937. Meu biso foi com sua certidão de casamento dar entrada nos papéis de sua naturalização e permanência no Brasil.
A burocracia disse-lhe que casar-se com uma brasileira não era suficiente para certificá-lo de sua estadia. Enquanto não tivesse ele, tal qual futuramente Ronald Biggs, um filho nascido no Brasil, não poderia estar seguro de não ser extraditado.
Creio que a situação de meu bisavô fosse frágil pois ele não pôde esperar que sua esposa engravidasse. Creio que nisto confesso um crime, mas já prescrito, e cometido por dois já falecidos. Meu biso então fez um falso registro em cartório. No dia 13 de fevereiro de 1937 registrou, menos de um mês após casado, o nascimento de uma filha deste matrimônio: Shirleÿ Pilon Alves, pois eram os tempos áureos da menina-prodígio Shirley Temple. Este registro foi de um bebê fantasma, inexistente. Mas da posse de sua certidão de casamento e do nascimento de uma filha-fantasma, o português Agostinho obteve sua permanência no Brasil.
Meses depois perceberam que minha Nonna estava grávida. Nascesse menino, fariam um novo registro. Nascesse menina, ficaria com o registro já feito, em fevereiro. Nasceu menina, e minha avó. É por conta disso que, embora 99,999% das pessoas que são registradas em data errada o são em data posterior, minha avó é um caso único de alguém que em seu registro é 9 meses mais velha do que de fato é, pois foi registrada em cartório quando ainda não existia.
Não tive tempo de explicá-lo aos para-médicos que, ao meu chamado, a socorreram em 2009. Na ambulância, pediram que eu lhes entregasse um documento dela.
Com ele em mãos, perguntaram-lhe:
- Qual é o nome da senhora?
Confusa, mas ainda lúcida, disse:
- Shirley Alves da Silva.
- E quando é o seu aniversário?
- Primeiro de novembro.
O bombeiro leu no registro 13 de fevereiro e concluiu que ela não estava tão lúcida assim.
Acudi em esclarecer, sem tempo para explicar:
- Seu bombeiro, ela falou a data certa, a data do documento é que é a errada.
Minha avó nasceu santista, filha de estivador líder sindical e de uma dona de casa. Como durante a II Guerra Mundial rarearam os navios cargueiros no porto de Santos, a família realocou-se na Vila Formosa, São Paulo, Capital, onde sua filha mais velha, minha avó, casou-se já aos 18 anos com seu vizinho de muro, meu avô Vicente, nordestino. Em São Paulo capital meu biso Agostinho assumiu a profissão de motorneiro, que eu própria desconhecia e que Tula explicou-me referir-se aos "motoristas e cobradores do bonde elétrico".
Não tivesse ocorrido a II Guerra Mundial talvez nunca Tula e Vicente teriam se conhecido e o amálgama que resultou em mim nunca teria-se realizado. Nunca saberemos do que não se passou, pois a II Guerra veio e Shirleÿ, já com 15 anos, noivou com seu vizinho Vicente. Muita falta de imaginação noivar aos 15 anos com seu vizinho de porta. Já o disse à Tula. Longe de criticá-la, pois meu avô sempre foi um homem que honrou a sua esposa e à sua família. Alguém que merece verdadeiramente por sua estatura moral ser reputado como patriarca de uma beit’av, tal qual Abraão.
Seu sogro, meu biso português Agostinho, faleceu quando eu era nova demais para plasmar lembranças. Convivi com sua viúva, minha Nonna já octogenária durante a infância e dela guardo ternas memórias. Mulher digna, teimosa, ranzinza, discreta, mas sempre carinhosa com sua descendência. Mais calava do que dizia. Criava por estimação um pássaro preto (não me refiro à cor, mas esta é a designação de uma espécie) e uma tartaruga, presente de sua neta Viviani Alves da Cruz, mãe de Ivana Gabriela, Amanda e Sofia. Além de minha avó Tula, minha Nonna Giselda teve outros dois filhos, Waldomiro Pilon Alves “Leco”, casado com Clara Reiter, (pais de Viviani, Vânia e Alexandre) e Agostinho José Alves Filho “Chanchan”, casado com Áurea Massuella (pais de André, Andréia e Adriana).
Pois é, tal qual os mafiosos napolitanos da Cosa Nostra, meus antepassados e colaterais oriundi nascidos antes dos 1950 têm, ainda hoje, epítetos/alcunhas/apelidos familiares indissociáveis. Urge também registrar que o nome de minha prima carioca Gisele Rani Martins da Silva é uma homenagem à bisa que ela pouco conheceu, Giselda; da parte de meu tio Renê, que como eu anima genes nordestinos, ibéricos e romanos; e creio que procure honrar aos que o antecederam.
Tiveram ambos, meu biso Agostinho e minha Nonna Giselda vidas memoráveis, que merecem registro. Português e Oriundi, contribuíram, com seu trabalho, filhos, netos e bisnetos para a construção da Mérica, mérica, mérica... Não creio que seu sonho tenha sido frustrado. Sinto-me orgulhosa de ser brasileira miscigenada, nordestina, lusitana, oriundi. E espero honrar a meus antepassados e toda a Speranza que depositaram no futuro. Que sou eu.
E, para além de mim, também são fruto deste sonho todos os meus tios e primos em segundo, terceiro e infindáveis graus. Só o fato de existirmos já testemunha algo do sucesso de nossos antepassados e de como a terra brasílica lhes foi propícia.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Causos escolares – a acometida por “chiliques”
Esta claramente não é uma “anedota” e por isso este termo não foi aplicado ao título. Nem é um “causo”, mas um drama indelével. Esta história não é pertinente apenas ao ambiente escolar, mas aos mais profundos questionamentos humanos da própria essência que nos separa, ou não, da animalidade.
O incesto é um tabu em todas as sociedades humanas, mesmo que nem sempre com o mesmo significado e amplidão. Descendências consangüíneas sabidamente levam à “degenerescência” e à eclosão de várias síndromes e anormalidades.
Recentemente, dois casos concernentes a este fato chocaram amplamente a opinião pública. Joseph Fritzl, o monstro de Amstetten (Áustria) manteve em cárcere privado por 24 anos e engravidou por 6 vezes sua filha Elizabeth Fritzl, num bunker anti-apocalíptico em sua própria casa.
Na miséria paraense, foi recentemente descoberto que o ribeirinho Agostinho Bispo Pereira mantera aberto concubinato com sua filha Sandra, engravidando-a por 7 vezes. As crianças, algumas deficientes, e a própria Sandra, foram encontradas em condições abaixo da miséria absoluta, em total isolamento e abandono. Ademais foi revelado que outra irmã mais velha que Sandra, também chamada Sandra, fora engravidada por este mesmo pai, e fugira de casa para escapar à recorrente violência sexual de que era e continuaria a ser vítima. Com a fuga da Sandra mais velha, o pai amasiou-se com a Sandra mais nova e menos corajosa, que aceitou ser seviciada por ver-se completamente despida de qualquer outra opção.
Essas notícias chocam, mas parecem distantes, filhas do narcisismo de um louco ou da perversão nojenta de um miserável analfabeto. Mas infelizmente o tabu do incesto não é algo tão longínquo, ou um desvio tão raro da norma. Sigmund Freud chocou a vitoriana elite vienense ao declarar que grande parte do motivo da histeria das moças da alta sociedade austríaca era devida ao fato de elas terem comumente sido abusadas sexualmente por seus próprios pais.
Analogamente, nos Tristes Trópicos lusitanos vigora a lenda amazônica do boto, que seduziria e engravidaria às jovens desavisadas. Sabe-se hoje amplamente que esta lenda mascara a prática equatorial de que “quem plantou a bananeira tem direito a colher o primeiro fruto”. Ou seja, que cabe ao pai iniciar sexualmente suas filhas pubescentes. Os frutos destes abusos são legitimados à comunidade como “filhos do boto”. E àqueles que estejam a desconfiar que escrevo isso para expurgar algum trauma próprio, impera ficar claro: nunca fui vítima de incesto.
Voltando às circunstâncias escolares que suscitaram este texto, relatarei os fatos acerca de M, a protagonista desta deplorável história real e tangível que cruzou minha prática professoral. M foi minha aluna na sexta série. Aos 16 anos, destacava-se por sua vivacidade e comentários espontâneos entre as salas da EJA, normalmente tumbáticas por seu silêncio e apatia. Em algumas reuniões de HTPC (hora trabalho pedagógica coletiva) fiquei sabendo que M era acometida quase que semanalmente por episódios convulsivos durante o horário escolar.
Um professor “alegre” comentou quase que anedoticamente que ao ver M cair ao chão e começar a debater-se, saiu correndo da sala de aula, saltitante e ágil tal qual uma gazela à vista do fogo na savana, gritando por socorro da direção completamente feminina, que compareceu para socorrê-los, enquanto ele permanecia amedrontado do lado de fora da sala, como se a apoplexia fosse transmissível.
Numa reunião posterior nossa coordenadora pedagógica disse em tom despreocupado, corriqueiro e quase risonho:
- É que vcs não sabem, mas já me contaram. A M é filha de um pai-avô. Parece que a mãe dela é amigada com o próprio pai, e tiveram vários filhos com problemas. Reparem na própria M como seus membros são desproporcionais e sua aparência um pouco “deformada”. Os socorristas dos Bombeiros, que já estão acostumados a atender à M, me disseram outro dia que o que ela tem não são verdadeiras “convulsões”, mas uma outra coisa neurológica, e por isso, mesmo que ela tome anti-convulsivos, eles não fazem efeito e ela continua a ter “chiliques”.
“Chiliques”... Essa palavra, assim, tão trivial, no plural, sonoramente vulgar, denotando um “estado de nervos” opcional, internamente provocado, um faniquito, como o que uma criança mimada faz diante da frustração de ter seu imperioso desejo negado.
“Chilique” é o que eu tenho diante de um burocrata que recusa-se a aceitar um atestado médico verdadeiro. “Chilique” e o que eu tenho com uma inocente operadora de telemarketing terceirizada ao ligar para cancelar uma fatura de cartão de crédito não-solicitado e nunca usado. “Chilique” é o que eu tenho diante do entregador de pizza que bate à minha porta com uma de pepperoni.
“Chilique” com certeza não era o que acometia à M.
Permaneci chocada e muda por quase uma hora diante da revelação indiscreta da triste origem familiar de M. E não só com este fato, mas com o termo “chilique” dito assim, num compasso tão banal, desenhando uma sonoridade cruamente metálica, recendendo a ostras repulsivamente afrodisíacas, para referir-se a um ser humano inocentemente vitimado pelo maior dos pecados originais.
Como aprendi recentemente sob duras penas a controlar minha musculosa língua, permaneci calada. Medi física e moralmente a autora desta frase tão chocante. Mulher quarentona, com filhos pouco mais jovens que eu própria, vaidosa, bem-resolvida, animada. Já havíamos saído para confraternizar e embebedado-nos juntas. Considero-a até hoje uma amiga e uma boa companhia para um happy hour. Sua experiência pedagógica é quatro vezes mais extensa que a minha. Apequenando-me em minha inexperiência principiei tristemente a suspeitar que o motivo do tom corriqueiro daquela informação seria devido a ela já ter muitas vezes deparado-se com situações semelhantes de alunos frutos de incesto, o que para mim até então era, como aprendera teoricamente, um tabu universal respeitado por todas as sociedades pretensamente humanas.
Depois desta reunião nunca mais conseguir olha à M diretamente nos olhos, e nunca mais a divisei com o mesmo olhar. Sentia-me pungentemente constrangida por sua simples existência, a esfacelar uma das poucas certezas civilizacionais que me fora inculcada. Temia a cada aula quando seria eu a sorteada para testemunhar seu tormento inextirpável. Esta ocasião, fatalmente, apresentou-se; para enriquecer meu triste acervo de dramas humanos.
Certo dia, durante o intervalo de aulas, saí da sala dos professores para, entre os alunos da Educação de Jovens e Adultos, fumar um cigarro. Sentada na mureta, observava-os devorar o freqüente macarrão com salsicha de papelão, quase sem molho de tomate. Apaguei a bituca na caixa de areia e principiei meu trajeto de volta o recinto separado dos mestres, em cujo meio do caminho estava uma rampa, imperativamente colocada pelos ditames modernos da “acessibilidade”.
Em pé no topo da rampa, encostada a uma viga de metal, estava M, com o olhar insuspeitamente absorto. Vendo-me a meio metro dela, saudei-a com um despretensioso “oi, tudo bem?” Não me respondeu. Peguei nas minhas ambas suas mãos. Não reagiu. Sosla-lhe-ia.
Sosla-lhe-ia. Conforme asseguro-me de cada hífen neste termo, pergunto-me: (Que tipo de pessoa usa a palavra “Sosla-lhe-ia”, assim, corriqueiramente, com todos os tracinhos proibidos, num acento oitocentista?) Não sei que tipo de pessoa recai no uso de tal sintetização exata, sharp, germânica, digna de Ruy Barbosa. Mas, apercebida de que poucos leitores cogitem qual seria o vago significado de tal termo, o expando num arroubo descritivo algo machadiano para a melhor compreensão do movimento referido: (lentamente girei meus globos oculares viciados, divizando-a timidamente pelo canto dos meus olhos na esguelha janela oblíqüa não recoberta pelos óculos pendentes de meu rosto cabisbaixo, vendo vagamente seu vulto numa nuvem indistinta).
Gelei. Chegara-me a hora. Naquele milissegundo perguntei-me como agiria. Como uma gazela que foge ao incêndio ou como um símio superior supostamente sapiens ao quadrado, dotado de polegar opositor, "hombridade" e empatia? Naquele silêncio indizível, urgia optar: dirigir-me-ia com gritos e pernas aos meus superiores ou concentrar-me-ia, até o âmago de cada hífen, em M? Seria eu mulher suficiente para não furtar-me ao meu dever? Não de professora, mas de um ser humano, qualquer que seja, diante do seu próximo.
Orgulho-me de ter tido coragem. Retesei entre as minhas suas mãos disformes. Chamei-a suavemente: “M..., você está me ouvindo?” Imediatamente, principiou a desfalecer para trás, como se força faltasse-lhe às pernas. Segurei-a firmemente e lentamente a pousei no chão, enquanto ela principiava a debater-se.
Contorcendo furiosamente o pescoço, sacudia a cabeça de um lado a outro. Protegi-a. Gritei para que os alunos circundantes nos acudissem. Vieram rapidamente ajudar-nos e agarraram com força várias partes de seu corpo para que ela não se machucasse. Toda essa cena que demora largos minutos para ser lida descreveu-se numa parábola de 4 intermináveis segundos.
Vendo-me auxiliada, larguei suas mãos e coloquei sua cabeça entre minhas pernas. Só então gritei à toda por auxílio da direção. Acionados o 193 e o 192 passamos mais de 40 minutos no aguardo de socorro enquanto M sacudia-se intempestivamente, quase sem pausas, exposta à curiosidade pública no pátio da escola durante o “recreio”. Dezenas principiaram a acotovelar-se em nossa volta, roubando nosso ar, comentando abertamente a “atração” da noite.
Quando, finalmente, a ambulância chegou, a primeira pergunta do bombeiro costumeiro foi:
- Ela caiu e bateu a cabeça no chão?
- Não.
Acorri em esclarecer. Como poderia eu adjetivar estas três letras nasaladas? Talvez “triunfalmente”. Não tivesse eu naquele exato instante tido minha trajetória interceptada pelo olhar perdido de M, e tido a "feminilidade" ou "girl power" de tangê-la até o fim de minhas forças, ela teria rolado contorcendo-se rampa abaixo sem amparo, e talvez fatalmente.
Muito pouco eu posso fazer por M, e por vários outros alunos. Mas sinto-me feliz pois quando essa situação inadjetivável apresentou-se, agi com Humanidade e coragem. Talvez salvando uma vida que, para começo de conversa, nunca deveria ter existido.
Esta foi a terceira convulsão que testemunhei. A primeira foi de meu filho canis lupus angelicus Lucca; a segunda, de meu amado avô Vicente. Mas sobre esta ainda não me sinto prepararada para escrever, espero que compreendam o porquê.
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
Da bastardia e dos testes de paternidade
Graças a Deus ou à reincidência errática de minha ex-genitora nunca precisei de um teste de DNA para colocar um nome num campo em branco no meu RG, e imagino o quanto seja humilhante precisar recorrer a um teste de DNA, tanto para a mãe como para o filho, a fim de precisar quem é o seu genitor. Talvez seja por isso que o rabinato há mais de mil anos determinou: judeu é todo aquele filho de mãe judia, não importa quem seja o pai. Na verdade, porque nunca se tinha certeza de quem realmente era o pai. Além da também recente e inconclusiva tipagem sangüínea, não havia como saber com certeza se o filho “legítimo” era bastardo ou se o filho duvidoso o era de fato.
Os exames de paternidade de certa forma resolveram um antigo problema filial e patrimonial: a bastardia. Hoje, quando a noção de família, honra e “normalidade” se tornaram bem mais elásticas, ser filho “bastardo”, especialmente no Brasil, não é mais tão traumático. Houve tempo em que qualquer filho concebido fora de um casamento sacramentado pela ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) era um bastardo, mesmo que fruto do relacionamento de duas pessoas solteiras, com nome do pai e da mãe na certidão. Vivemos na época de Papa don´t preach. E isso é bom.
Ter um filho bastardo antes da década de 1960 era uma anátema que não raramente resultava no aborto, infanticídio ou na exposição de bebê (abandono na “roda dos expostos” dos orfanatos). Isso resultou, entre outras coisas, no sobrenome italiano Spositto e na mais torrencialmente pesarosa cena da novela Terra Nostra, quando a pérfida neo-sogra (Ângela Vieira) põe na roda o fruto bastardo do amor puro entre Giuliana (Ana Paula Arósio) e Matteo (Thiago Lacerda).
Ser um filho bastardo, sem nome do pai, ou até sem saber quem era o seu pai, costumava ser um estigma. Uma marca indelével que apenas a dedicação à Igreja podia alvejar. Analisemos o caso do padre Diogo Antônio Feijó, filho bastardo de uma tradicionalíssima família paulista, exposto literalmente na pocilga do bispo de São Paulo. Adotado, educado e ordenado, Feijó pôde, em princípios do séc. XIX, transcender à mácula de seu sangue possivelmente “infecto”, tornar-se uma importante liderança política brasileira e alçar-se ao grau até então inimaginável a alguém sem estirpe determinada: governante do Brasil. Ele foi Regente do Império do Brasil durante alguns anos da minoridade de Dom Pedro II. Trajetória comparável à conquista também inédita do corso Napoleão Bonaparte ao tornar-se Imperador da França. Dá-lhe “O Vermelho e o Negro” de Stendhal...
Fui testemunha do trauma e do pesar que a ausência do nome do pai de um “grande amigo” então JPN, filho de mãe negra, solteira e pobre com pai branco, solteiro, rico e escusem-me violar a memória de um falecido, pouco responsável. Do pai JPN carregava o prenome, não, porém, o sobrenome e o reconhecimento. Não que seu pai não soubesse ou duvidasse que ele fosse seu filho, Mas à década de 1960 ainda vicejava até no ambiente urbano paulistano uma certa mentalidade desvendada por Gilberto Freyre em “Casa-Grande & Senzala” ao diagnosticar a função do “negro na vida sexual e de família do brasileiro”. Já adulto e ele mesmo pai, JPN foi reconhecido por seu pai, já idoso, sem necessidade de teste de DNA, e tornou-se orgulhosamente JPNSC. Fez questão de ostentar a longa seqüência de todos os sobrenomes a que tinha direito, tal qual quatrocentão, embora fosse um mulato carcamano. Embora pouco prático ou estético, isso deve ter cumprido a função catártica de “lavar a alma” e a honra da família.
Casos famosos envolvendo questões de reconhecimento de paternidade, e que exemplificam comportamentos opostos, são os de Pelé e Mick Jagger. O triste caso de Pelé, Edson Arantes do Nascimento, o atleta do Século (XX), o liga a Sandra Regina Arantes do Nascimento, “A filha que o rei não quis”. Embora comprovado por testes laboratoriais que Sandra era de fato integrante de sua prole, Pelé recorreu até ao Supremo Tribunal Federal para não reconhecer a paternidade de sua filha, já adulta, fruto dos longínquos tempos do anonimato. É claro que Pelé perdeu a causa, Sandra pôde ostentar seu “Arantes do Nascimento” e passá-lo à sua própria descendência.
A lei brasileira é generosa neste sentido: todo filho, natural ou adotivo, tem direito à herança de seus pais, mesmo que à revelia. Ou seja, nenhum filho pode ser deserdado. Legítimo ou bastardo, concebido dentro ou fora de um casamento; cada filho, amado ou rejeitado, tem direito a igual quinhão do espólio. O único caso de exceção é no de o herdeiro causar a morte de seus genitores, tal qual no caso de Suzane Louise von Richtoffen, que assassinou aos próprios pais, Manfred e Marísia. E ainda num caso assim, é necessário que o(s) co-herdeiro(s), entre(m) com um processo para a exclusão da(o) parricida de seus direitos naturais no inventário.
Pelé rejeitou Sandra, e esta talvez seja a maior mácula em sua biografia. Postura diferente teve Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, então casado com Gerry Hall, quando se viu pego no “golpe da barriga”. Bem ciente dos avanços do DNA, a então desconhecida modelo brasileira Luciana Morad Gimenez teria tido um encontro casual com a lenda do rock, supostamente num canil, que resultou numa muito alardeada gravidez e no divórcio Jagger-Hall. Mesmo numa situação extremamente constrangedora, talvez aconselhado por um media trainer, tal qual Ronaldo Nazário, o Fenômeno, diante da gravidez de Milene Domingues, Jagger comportou-se com um legítimo cavalheiro: em nenhum momento criticou Gimenez, ou negou a paternidade. Obviamente exigiu o teste de DNA e à revelação, na corte americana, do resultado positivo, Jagger, pelo telefone, disse estar muito satisfeito com o resultado, e prontificou-se a comparecer com todas as suas obrigações de pai conforme acordado fosse pela corte na presença de seu advogado. Cifras em dólares àparte, Mick Jagger fez, e faz, muito mais por Lucas Morad Jagger, que destruiu seu único longo casamento, que pagar-lhe uma morbidamente obesa pensão alimentícia: faz-se presente. São lindas as fotos dos dois juntos. Jagger fez de um tropeço uma superação exemplar, dá uma lição de como um homem honrado deve comportar-se diante de um filho inesperado: como um pai.
Por mais indesejadas que tenham sido as circunstâncias que resultaram numa descendência inesperada, nenhuma pessoa com honra pode permitir-se furtar-se às responsabilidades, financeiras e emocionais, provenientes de um filho. Por mais que a mãe tenha sido uma oportunista, ela não importa. A pensão é para a criança. O registro é da criança, que não é uma oportunista e que é filha tanto quanto qualquer outro filho que alguém venha a ter. Ninguém tem o direito de negar a outra pessoa a certeza e o orgulho sobre sua origem. Toda criança tem o direito à presença e à referência de ambos os seus genitores.
Pena que cerca de 30% das crianças brasileiras sequer tenham o nome do pai em sua certidão de nascimento. E muitas das que têm um nome ali, seu “pai” é apenas um nome, de papel, completamente imaginário.
Vivemos tempos familiarmente tristes...