Graças a Deus ou à reincidência errática de minha ex-genitora nunca precisei de um teste de DNA para colocar um nome num campo em branco no meu RG, e imagino o quanto seja humilhante precisar recorrer a um teste de DNA, tanto para a mãe como para o filho, a fim de precisar quem é o seu genitor. Talvez seja por isso que o rabinato há mais de mil anos determinou: judeu é todo aquele filho de mãe judia, não importa quem seja o pai. Na verdade, porque nunca se tinha certeza de quem realmente era o pai. Além da também recente e inconclusiva tipagem sangüínea, não havia como saber com certeza se o filho “legítimo” era bastardo ou se o filho duvidoso o era de fato.
Os exames de paternidade de certa forma resolveram um antigo problema filial e patrimonial: a bastardia. Hoje, quando a noção de família, honra e “normalidade” se tornaram bem mais elásticas, ser filho “bastardo”, especialmente no Brasil, não é mais tão traumático. Houve tempo em que qualquer filho concebido fora de um casamento sacramentado pela ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) era um bastardo, mesmo que fruto do relacionamento de duas pessoas solteiras, com nome do pai e da mãe na certidão. Vivemos na época de Papa don´t preach. E isso é bom.
Ter um filho bastardo antes da década de 1960 era uma anátema que não raramente resultava no aborto, infanticídio ou na exposição de bebê (abandono na “roda dos expostos” dos orfanatos). Isso resultou, entre outras coisas, no sobrenome italiano Spositto e na mais torrencialmente pesarosa cena da novela Terra Nostra, quando a pérfida neo-sogra (Ângela Vieira) põe na roda o fruto bastardo do amor puro entre Giuliana (Ana Paula Arósio) e Matteo (Thiago Lacerda).
Ser um filho bastardo, sem nome do pai, ou até sem saber quem era o seu pai, costumava ser um estigma. Uma marca indelével que apenas a dedicação à Igreja podia alvejar. Analisemos o caso do padre Diogo Antônio Feijó, filho bastardo de uma tradicionalíssima família paulista, exposto literalmente na pocilga do bispo de São Paulo. Adotado, educado e ordenado, Feijó pôde, em princípios do séc. XIX, transcender à mácula de seu sangue possivelmente “infecto”, tornar-se uma importante liderança política brasileira e alçar-se ao grau até então inimaginável a alguém sem estirpe determinada: governante do Brasil. Ele foi Regente do Império do Brasil durante alguns anos da minoridade de Dom Pedro II. Trajetória comparável à conquista também inédita do corso Napoleão Bonaparte ao tornar-se Imperador da França. Dá-lhe “O Vermelho e o Negro” de Stendhal...
Fui testemunha do trauma e do pesar que a ausência do nome do pai de um “grande amigo” então JPN, filho de mãe negra, solteira e pobre com pai branco, solteiro, rico e escusem-me violar a memória de um falecido, pouco responsável. Do pai JPN carregava o prenome, não, porém, o sobrenome e o reconhecimento. Não que seu pai não soubesse ou duvidasse que ele fosse seu filho, Mas à década de 1960 ainda vicejava até no ambiente urbano paulistano uma certa mentalidade desvendada por Gilberto Freyre em “Casa-Grande & Senzala” ao diagnosticar a função do “negro na vida sexual e de família do brasileiro”. Já adulto e ele mesmo pai, JPN foi reconhecido por seu pai, já idoso, sem necessidade de teste de DNA, e tornou-se orgulhosamente JPNSC. Fez questão de ostentar a longa seqüência de todos os sobrenomes a que tinha direito, tal qual quatrocentão, embora fosse um mulato carcamano. Embora pouco prático ou estético, isso deve ter cumprido a função catártica de “lavar a alma” e a honra da família.
Casos famosos envolvendo questões de reconhecimento de paternidade, e que exemplificam comportamentos opostos, são os de Pelé e Mick Jagger. O triste caso de Pelé, Edson Arantes do Nascimento, o atleta do Século (XX), o liga a Sandra Regina Arantes do Nascimento, “A filha que o rei não quis”. Embora comprovado por testes laboratoriais que Sandra era de fato integrante de sua prole, Pelé recorreu até ao Supremo Tribunal Federal para não reconhecer a paternidade de sua filha, já adulta, fruto dos longínquos tempos do anonimato. É claro que Pelé perdeu a causa, Sandra pôde ostentar seu “Arantes do Nascimento” e passá-lo à sua própria descendência.
A lei brasileira é generosa neste sentido: todo filho, natural ou adotivo, tem direito à herança de seus pais, mesmo que à revelia. Ou seja, nenhum filho pode ser deserdado. Legítimo ou bastardo, concebido dentro ou fora de um casamento; cada filho, amado ou rejeitado, tem direito a igual quinhão do espólio. O único caso de exceção é no de o herdeiro causar a morte de seus genitores, tal qual no caso de Suzane Louise von Richtoffen, que assassinou aos próprios pais, Manfred e Marísia. E ainda num caso assim, é necessário que o(s) co-herdeiro(s), entre(m) com um processo para a exclusão da(o) parricida de seus direitos naturais no inventário.
Pelé rejeitou Sandra, e esta talvez seja a maior mácula em sua biografia. Postura diferente teve Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, então casado com Gerry Hall, quando se viu pego no “golpe da barriga”. Bem ciente dos avanços do DNA, a então desconhecida modelo brasileira Luciana Morad Gimenez teria tido um encontro casual com a lenda do rock, supostamente num canil, que resultou numa muito alardeada gravidez e no divórcio Jagger-Hall. Mesmo numa situação extremamente constrangedora, talvez aconselhado por um media trainer, tal qual Ronaldo Nazário, o Fenômeno, diante da gravidez de Milene Domingues, Jagger comportou-se com um legítimo cavalheiro: em nenhum momento criticou Gimenez, ou negou a paternidade. Obviamente exigiu o teste de DNA e à revelação, na corte americana, do resultado positivo, Jagger, pelo telefone, disse estar muito satisfeito com o resultado, e prontificou-se a comparecer com todas as suas obrigações de pai conforme acordado fosse pela corte na presença de seu advogado. Cifras em dólares àparte, Mick Jagger fez, e faz, muito mais por Lucas Morad Jagger, que destruiu seu único longo casamento, que pagar-lhe uma morbidamente obesa pensão alimentícia: faz-se presente. São lindas as fotos dos dois juntos. Jagger fez de um tropeço uma superação exemplar, dá uma lição de como um homem honrado deve comportar-se diante de um filho inesperado: como um pai.
Por mais indesejadas que tenham sido as circunstâncias que resultaram numa descendência inesperada, nenhuma pessoa com honra pode permitir-se furtar-se às responsabilidades, financeiras e emocionais, provenientes de um filho. Por mais que a mãe tenha sido uma oportunista, ela não importa. A pensão é para a criança. O registro é da criança, que não é uma oportunista e que é filha tanto quanto qualquer outro filho que alguém venha a ter. Ninguém tem o direito de negar a outra pessoa a certeza e o orgulho sobre sua origem. Toda criança tem o direito à presença e à referência de ambos os seus genitores.
Pena que cerca de 30% das crianças brasileiras sequer tenham o nome do pai em sua certidão de nascimento. E muitas das que têm um nome ali, seu “pai” é apenas um nome, de papel, completamente imaginário.
Vivemos tempos familiarmente tristes...
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