quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Causos escolares – a acometida por “chiliques”

Esta claramente não é uma “anedota” e por isso este termo não foi aplicado ao título. Nem é um “causo”, mas um drama indelével. Esta história não é pertinente apenas ao ambiente escolar, mas aos mais profundos questionamentos humanos da própria essência que nos separa, ou não, da animalidade.


O incesto é um tabu em todas as sociedades humanas, mesmo que nem sempre com o mesmo significado e amplidão. Descendências consangüíneas sabidamente levam à “degenerescência” e à eclosão de várias síndromes e anormalidades.


Recentemente, dois casos concernentes a este fato chocaram amplamente a opinião pública. Joseph Fritzl, o monstro de Amstetten (Áustria) manteve em cárcere privado por 24 anos e engravidou por 6 vezes sua filha Elizabeth Fritzl, num bunker anti-apocalíptico em sua própria casa.


Na miséria paraense, foi recentemente descoberto que o ribeirinho Agostinho Bispo Pereira mantera aberto concubinato com sua filha Sandra, engravidando-a por 7 vezes. As crianças, algumas deficientes, e a própria Sandra, foram encontradas em condições abaixo da miséria absoluta, em total isolamento e abandono. Ademais foi revelado que outra irmã mais velha que Sandra, também chamada Sandra, fora engravidada por este mesmo pai, e fugira de casa para escapar à recorrente violência sexual de que era e continuaria a ser vítima. Com a fuga da Sandra mais velha, o pai amasiou-se com a Sandra mais nova e menos corajosa, que aceitou ser seviciada por ver-se completamente despida de qualquer outra opção.


Essas notícias chocam, mas parecem distantes, filhas do narcisismo de um louco ou da perversão nojenta de um miserável analfabeto. Mas infelizmente o tabu do incesto não é algo tão longínquo, ou um desvio tão raro da norma. Sigmund Freud chocou a vitoriana elite vienense ao declarar que grande parte do motivo da histeria das moças da alta sociedade austríaca era devida ao fato de elas terem comumente sido abusadas sexualmente por seus próprios pais.


Analogamente, nos Tristes Trópicos lusitanos vigora a lenda amazônica do boto, que seduziria e engravidaria às jovens desavisadas. Sabe-se hoje amplamente que esta lenda mascara a prática equatorial de que “quem plantou a bananeira tem direito a colher o primeiro fruto”. Ou seja, que cabe ao pai iniciar sexualmente suas filhas pubescentes. Os frutos destes abusos são legitimados à comunidade como “filhos do boto”. E àqueles que estejam a desconfiar que escrevo isso para expurgar algum trauma próprio, impera ficar claro: nunca fui vítima de incesto.


Voltando às circunstâncias escolares que suscitaram este texto, relatarei os fatos acerca de M, a protagonista desta deplorável história real e tangível que cruzou minha prática professoral. M foi minha aluna na sexta série. Aos 16 anos, destacava-se por sua vivacidade e comentários espontâneos entre as salas da EJA, normalmente tumbáticas por seu silêncio e apatia. Em algumas reuniões de HTPC (hora trabalho pedagógica coletiva) fiquei sabendo que M era acometida quase que semanalmente por episódios convulsivos durante o horário escolar.


Um professor “alegre” comentou quase que anedoticamente que ao ver M cair ao chão e começar a debater-se, saiu correndo da sala de aula, saltitante e ágil tal qual uma gazela à vista do fogo na savana, gritando por socorro da direção completamente feminina, que compareceu para socorrê-los, enquanto ele permanecia amedrontado do lado de fora da sala, como se a apoplexia fosse transmissível.


Numa reunião posterior nossa coordenadora pedagógica disse em tom despreocupado, corriqueiro e quase risonho:


- É que vcs não sabem, mas já me contaram. A M é filha de um pai-avô. Parece que a mãe dela é amigada com o próprio pai, e tiveram vários filhos com problemas. Reparem na própria M como seus membros são desproporcionais e sua aparência um pouco “deformada”. Os socorristas dos Bombeiros, que já estão acostumados a atender à M, me disseram outro dia que o que ela tem não são verdadeiras “convulsões”, mas uma outra coisa neurológica, e por isso, mesmo que ela tome anti-convulsivos, eles não fazem efeito e ela continua a ter “chiliques”.


Chiliques”... Essa palavra, assim, tão trivial, no plural, sonoramente vulgar, denotando um “estado de nervos” opcional, internamente provocado, um faniquito, como o que uma criança mimada faz diante da frustração de ter seu imperioso desejo negado.


Chilique” é o que eu tenho diante de um burocrata que recusa-se a aceitar um atestado médico verdadeiro. “Chilique” e o que eu tenho com uma inocente operadora de telemarketing terceirizada ao ligar para cancelar uma fatura de cartão de crédito não-solicitado e nunca usado. “Chilique” é o que eu tenho diante do entregador de pizza que bate à minha porta com uma de pepperoni.


Chilique” com certeza não era o que acometia à M.


Permaneci chocada e muda por quase uma hora diante da revelação indiscreta da triste origem familiar de M. E não só com este fato, mas com o termo “chilique” dito assim, num compasso tão banal, desenhando uma sonoridade cruamente metálica, recendendo a ostras repulsivamente afrodisíacas, para referir-se a um ser humano inocentemente vitimado pelo maior dos pecados originais.


Como aprendi recentemente sob duras penas a controlar minha musculosa língua, permaneci calada. Medi física e moralmente a autora desta frase tão chocante. Mulher quarentona, com filhos pouco mais jovens que eu própria, vaidosa, bem-resolvida, animada. Já havíamos saído para confraternizar e embebedado-nos juntas. Considero-a até hoje uma amiga e uma boa companhia para um happy hour. Sua experiência pedagógica é quatro vezes mais extensa que a minha. Apequenando-me em minha inexperiência principiei tristemente a suspeitar que o motivo do tom corriqueiro daquela informação seria devido a ela já ter muitas vezes deparado-se com situações semelhantes de alunos frutos de incesto, o que para mim até então era, como aprendera teoricamente, um tabu universal respeitado por todas as sociedades pretensamente humanas.


Depois desta reunião nunca mais conseguir olha à M diretamente nos olhos, e nunca mais a divisei com o mesmo olhar. Sentia-me pungentemente constrangida por sua simples existência, a esfacelar uma das poucas certezas civilizacionais que me fora inculcada. Temia a cada aula quando seria eu a sorteada para testemunhar seu tormento inextirpável. Esta ocasião, fatalmente, apresentou-se; para enriquecer meu triste acervo de dramas humanos.


Certo dia, durante o intervalo de aulas, saí da sala dos professores para, entre os alunos da Educação de Jovens e Adultos, fumar um cigarro. Sentada na mureta, observava-os devorar o freqüente macarrão com salsicha de papelão, quase sem molho de tomate. Apaguei a bituca na caixa de areia e principiei meu trajeto de volta o recinto separado dos mestres, em cujo meio do caminho estava uma rampa, imperativamente colocada pelos ditames modernos da “acessibilidade”.


Em pé no topo da rampa, encostada a uma viga de metal, estava M, com o olhar insuspeitamente absorto. Vendo-me a meio metro dela, saudei-a com um despretensioso “oi, tudo bem?” Não me respondeu. Peguei nas minhas ambas suas mãos. Não reagiu. Sosla-lhe-ia.


Sosla-lhe-ia. Conforme asseguro-me de cada hífen neste termo, pergunto-me: (Que tipo de pessoa usa a palavra “Sosla-lhe-ia”, assim, corriqueiramente, com todos os tracinhos proibidos, num acento oitocentista?) Não sei que tipo de pessoa recai no uso de tal sintetização exata, sharp, germânica, digna de Ruy Barbosa. Mas, apercebida de que poucos leitores cogitem qual seria o vago significado de tal termo, o expando num arroubo descritivo algo machadiano para a melhor compreensão do movimento referido: (lentamente girei meus globos oculares viciados, divizando-a timidamente pelo canto dos meus olhos na esguelha janela oblíqüa não recoberta pelos óculos pendentes de meu rosto cabisbaixo, vendo vagamente seu vulto numa nuvem indistinta).


Gelei. Chegara-me a hora. Naquele milissegundo perguntei-me como agiria. Como uma gazela que foge ao incêndio ou como um símio superior supostamente sapiens ao quadrado, dotado de polegar opositor, "hombridade" e empatia? Naquele silêncio indizível, urgia optar: dirigir-me-ia com gritos e pernas aos meus superiores ou concentrar-me-ia, até o âmago de cada hífen, em M? Seria eu mulher suficiente para não furtar-me ao meu dever? Não de professora, mas de um ser humano, qualquer que seja, diante do seu próximo.


Orgulho-me de ter tido coragem. Retesei entre as minhas suas mãos disformes. Chamei-a suavemente: “M..., você está me ouvindo?” Imediatamente, principiou a desfalecer para trás, como se força faltasse-lhe às pernas. Segurei-a firmemente e lentamente a pousei no chão, enquanto ela principiava a debater-se.


Contorcendo furiosamente o pescoço, sacudia a cabeça de um lado a outro. Protegi-a. Gritei para que os alunos circundantes nos acudissem. Vieram rapidamente ajudar-nos e agarraram com força várias partes de seu corpo para que ela não se machucasse. Toda essa cena que demora largos minutos para ser lida descreveu-se numa parábola de 4 intermináveis segundos.


Vendo-me auxiliada, larguei suas mãos e coloquei sua cabeça entre minhas pernas. Só então gritei à toda por auxílio da direção. Acionados o 193 e o 192 passamos mais de 40 minutos no aguardo de socorro enquanto M sacudia-se intempestivamente, quase sem pausas, exposta à curiosidade pública no pátio da escola durante o “recreio”. Dezenas principiaram a acotovelar-se em nossa volta, roubando nosso ar, comentando abertamente a “atração” da noite.


Quando, finalmente, a ambulância chegou, a primeira pergunta do bombeiro costumeiro foi:


- Ela caiu e bateu a cabeça no chão?


- Não.


Acorri em esclarecer. Como poderia eu adjetivar estas três letras nasaladas? Talvez “triunfalmente”. Não tivesse eu naquele exato instante tido minha trajetória interceptada pelo olhar perdido de M, e tido a "feminilidade" ou "girl power" de tangê-la até o fim de minhas forças, ela teria rolado contorcendo-se rampa abaixo sem amparo, e talvez fatalmente.


Muito pouco eu posso fazer por M, e por vários outros alunos. Mas sinto-me feliz pois quando essa situação inadjetivável apresentou-se, agi com Humanidade e coragem. Talvez salvando uma vida que, para começo de conversa, nunca deveria ter existido.


Esta foi a terceira convulsão que testemunhei. A primeira foi de meu filho canis lupus angelicus Lucca; a segunda, de meu amado avô Vicente. Mas sobre esta ainda não me sinto prepararada para escrever, espero que compreendam o porquê.

Um comentário:

  1. Fernanda,
    realmente muito forte seu texto!
    Trata de muitos assuntos difíceis de serem trabalhados como o incesto e a nossa atitude com o próximo num momento de extrema necessidade!
    Coloco-me em sua pele pois minha mãe convulsionou quando sofreu um derrame anos atrás. Pena que não teve ninguém para segurar sua cabeça pois eu não estava em casa e minhas irmãs eram pequenas!
    Parabéns por sua atitude!!

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...