Como faz muito tempo, não me lembro exatamente do contexto que resultou na conversa. De toda forma, vi-me comentando com os alunos que antes de trabalhar ali eu nunca havia conhecido ninguém que tivesse sido preso. Eu disse isso de forma completamente informal, sem suspeitar a reação que tal sentença acarretaria neles.
Desacreditaram completamente. Olhos arregalaram-se, sobrancelhas arquearam-se, troncos retrocederam, mãos encontraram queixos.
- Como assim, “você nunca conheceu ninguém preso” ? Impossível!!! Nenhum irmão? Nenhum tio? Nenhum primo? Nenhum... cunhado? Nenhum... namorado? Nenhum... vizinho?...
Eles sucediam os adjetivos de relação enquanto eu meneava negativa e sucessivamente a cabeça. Após alguns instantes de silêncio um deles disse em tom de malandragem:
- Ah, com todo o respeito, a senhora tá passando um 171 prá nós, mas tudo bem, não quer contar, não conta.
“171” refere-se ao artigo do Código Penal brasileiro referente ao Estelionato, crime dos falsários e golpistas. Não me ofendi; mas, eu não estava a mentir. Nunca havia conhecido até então ninguém que tivesse estado preso. A única vez que eu mesma entrara em uma delegacia fora como vítima, para fazer o B. O. (Boletim de Ocorrência) de um furto que sofrera. Já havia entrado num presídio sim, no Carandiru desativado, no curto espaço de tempo em que esteve aberto à visitação pública antes de ser implodido.
Mas para os internos da FEBEM é inconcebível uma família que não tem problemas com a Justiça pois para todos eles os problemas com as leis são familiares e, como denota sua condição de menores infratores, herdados pelos mais jovens.
Todos eles têm algum pai, irmão, tio, primo, cunhado, vizinho, preso ou ex-presidiário. Muitos deles enquanto crianças acompanharam suas mães em visitas aos presídios e agora são eles próprios os visitados por elas no sagrado dia de domingo.
Para muitos deles o tráfico é apenas um ramo extremamente lucrativo do comércio. Ou até um negócio familiar, passado de geração em geração. Para muitos o roubo é apenas uma forma fácil de ganhar a vida. Um deles chegou certa vez a jogar-me desafiadoramente à face:
- O que a senhora ganha num mês eu roubo num dia.
Está certo. Para quem nunca teve ninguém que lhes ensinasse o valor da honestidade. Que lhes demonstrasse o preço em suor que todo trabalhador honesto paga por dormir tranqüilo à noite sabendo que a polícia não o arrancará de sua cama com algemas. Para alguém que nunca viu ninguém “crescer na vida” à custa de estudo e esforço.
Para eles todo aquele que ganha um suado dinheiro trabalhando é um Zé Mané, pois é tão mais fácil simplesmente coçar o mês inteiro e bater uma ou duas carteiras... Ou talvez ao invés de ralar por uma féria de uns R$40,00 no trabalho braçal, fazer algumas entregas de entorpecente ganhando muito mais.
É, talvez a Zé Mané seja eu. Mas prefiro suar meu dinheirinho mixo e dormir tranqüilamente à noite sabendo que se a polícia me abordar será com um “Com licença, senhora” e não com um “Perdeu, malandro!”
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