domingo, 14 de novembro de 2010

Anedotas escolares – o fodido e a almoçada e jantada

Na minha prática profissional como professora, conheço a cada ano letivo centenas de alunos. Muitos se destacam por motivos curiosos, e são personagens de histórias anedóticas. Elegi duas histórias para inaugurarem esta que espero seja uma série de publicações divulgando essas reflexivas intermitências da vida que acidentam a trajetória mesmo dos mais jovens. Em comum estas duas têm o fato de não terem sido acompanhadas por mim, mas relatas por colegas de trabalho em meio a conversas sobre a desilusão conjunta com nossa profissão. Apenas para fins de facilitar a compreensão das pessoas verbais a reger cada verbo, as relatarei em primeira pessoa.


Estava a comandar uma reunião bimestral de pais quando percebi que, surpreendentemente, a mãe de um dos meninos-problema da sala comparecera, acompanhada do filho. Isso surpreende pq a participação nas Reuniões de Pais e Mestres é eletiva, e portanto normalmente comparecem apenas os pais engajados e preocupados com a educação de seus filhos. E normalmente os filhos de pais presentes não dão problemas na escola e seus pais nem precisariam comparecer à reunião. Raríssimo é o comparecimento do responsável por um adolescente com notas baixas e indisciplinado.


Todos nós professores sabemos que grande parte da razão por estes adolescentes serem problemáticos é o fato de que seus irresponsáveis não dão a devida atenção nem acompanham o desenvolvimento psicológico e escolar de seus filhos. Eles não são educados por não serem educados. Redundância maluca? Não, explico: eles não têm educação por não terem ninguém que os eduque. Com a displicência desses pais sofrem os filhos, os professores, os colegas de sala e, quem sabe no futuro, toda a sociedade que é vitimada pela delinqüência juvenil e violência adulta.


Mas voltemos à reunião. Ao dispensar os outros pais, solicitei que a mãe supracitada, contando menos de 30 anos, permanecesse mais um instante com seu filho, para um particular. Sentei-a ladeada pelo menino cabisbaixo e por mais de meia hora aconselhei-a a ser mais atenta, dar-lhe mais carinho, acompanhar suas notas, olhar todos os dias seu caderno; enfim, tentei de alguma forma despertar nela da mais positiva maneira possível o que deveria ser sua obrigação. Falei sobre o mau comportamento do menino, na presença dele, que progressivamente dobrava-se mais e mais contra si, sem me olhar nos olhos, em total silêncio. Ao concluir o, temo, “sermão” sobreveio o detalhe que torna esse causo uma anedota. A mãe virou-se para o filho e sentenciou em tom solene:


- Você viu que se você continuar assim você vai se foder, né?!


Chocada e atônita, dispensei-os com um “boa noite” e a mão estendida. Se o menino ouve da boca da mãe dele, de forma tão corriqueira, a expressão "vai se foder"; quem sou eu, uma mera professora que está com ele e mais 35 outros por apenas 2 horas e meia por semana para convencê-lo de que é impróprio mandar o coleguinha ir se foder? Ora, se a mãe dele manda ele ir se foder com toda a tranqüilidade, é mais do que compreensível que em seu universo de parâmetros tal expressão seja mais do que normal e aceitável...



O “causo curioso” a seguir, compreendam como se narrado por uma diretora de escola.


Estava numa reunião burocrática e chata com os professores, como aquelas a que é imperativo comparecer 3 vezes por semana em toda escola estadual. Uma professora pediu para ter um aparte comigo. De pé, do lado de fora da sala da reunião a professora relatou estar muito preocupada pois ouvira rumores de que a aluna L., de 13 anos, na sétima série, estava grávida. De complexão infantil, L. destacaria-se entre as já há muito tempo comuns gestantes adolescentes a freqüentar a escola. Dirigi-me à Secretaria e encarreguei às funcionárias de localizarem o responsável pela menina e que marcassem uma hora para conversar comigo sobre a garota.


Naquela mesma semana recebi a mãe da adolescente, uma moça humilde, de menos de 30 anos, provavelmente precocemente sofrida e com vida muito difícil, como transparecia em seu semblante mal-cuidado, seu cabelo desgrenhado, suas roupas baratas amarrotadas e suas alpargatas genéricas. Convidei-a a sentar-se e iniciei a conversa diretamente abordando a questão da gravidez:


- Bom, não sei se a senhora já está a par deste assunto, mas chegou ao meu conhecimento que a sua filha da sétima série está grávida. A senhora sabe como isso aconteceu, se ela tem namorado, quem seria o pai desta criança?


Como quem comenta a cotação dos legumes na feira, a “mãe” disse da forma mais “normal” e completamente despida de qualquer entonação que denotasse qualquer emoção:


- Ela não tem namorado não, mas eu até já sei como isso aconteceu. Há uns tempos atrás eu conheci no bar e abriguei lá em casa por uns dias um andarilho. Depois fiquei sabendo que ele tinha almoçado e jantado a L. Mas não dá nada não, nasce e a gente cria.


O que mais haveria a falar? Se para a mãe “não dá nada” o fato de sua filha de 13 anos ter sido violada por um morador de rua na própria casa e encontrar-se agora grávida; que poderia a burocrata encarregada de assinar e carimbar papéis fazer? O que poderia a escola fazer por L.? Enviá-la ao Conselho Tutelar para ser abrigada e tratada anonimamente, quiçá até pior que na casa de sua mãe? Para a realidade daquela mãe, de fato é corriqueiro meninas de 13 anos verem-se grávidas de crianças que jamais teriam sequer a sombra de um pai. Ou de um futuro diferente do de suas próprias mães.


Assim retro-alimenta-se a miséria da filha mais velha da última flor do Lácio, também conhecida como "o quinto dos infernos", de onde Deus seria nativo... Não são fáceis as respostas para os educadores confrontados com a miseravelmente triste realidade da “clientela” da escola pública brasileira.

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