sábado, 5 de abril de 2014

Como faz bem fazer o bem



Como faz bem fazer o bem. Como fazer o bem nos faz sentir bem.


Percebi isso hoje.


Sempre tive medo/receio de mendigos, pedintes e moradores de rua. O típico medo da classe mérdia de ser assaltado, explorado, feito de bobo.


Embora os "valores cristãos" nos recomendem praticar a caridade e ajudar ao próximo, essas "boas ações" costumam ser cerceadas por diversos motivos:


1 - Recomendam não dar dinheiro aos pedintes. Pois dar dinheiro não apenas os estimula a continuar na mendicância, como a sua doação pode ser usada para a compra de entorpecentes que prejudicarão ainda mais a saúde, física e mental, destas pessoas.


2 - Recomendam, ao invés de doar diretamente aos pedintes, fazer doações a instituições de caridade, que usarão esse dinheiro em assistência social. Porém, grande parte desta verba é revertida para o pagamento dos funcionários dessa assistência, como os operadores de telemarketing que nos ligam e motoboys que vêm buscar nossas doações. Além de que grande parte dessa população de rua se recusa a ser "institucionalizada" pelo Estado ou ONG's.


3 - Recomendam até não dar comida em pacotes fechados aos pedintes. Era meu costume comprar pacotes de bolacha e miojo extra para dar aos pedintes. Porém em diversas ocasiões fui informada que é comum pedintes coletarem esses mantimentos e os trocar por pedras de crack nas "biqueiras".


4 - Recomendam não "dar trela" para moradores de rua. Pois grande parte deles apresenta problemas psiquiátricos e a última coisa que alguém quer é um morador de rua que "encafifou" com você. E, se você lhe der atenção ou doações uma vez, pode ser que ele bata na sua porta a toda hora, no estilo "você dá a mão, quer logo o braço."


Então, embora em algumas ocasiões tenha dispensado moedas apenas para me livrar rapidamente de pedintes, minha práxis comum tem sido ignorá-los, por mais mortificada que isso me fizesse sentir. 


De certa forma esse é um sentimento de culpa. Pela percepção do quanto somos abençoados por uma segurança financeira que se sustenta sobre a exploração e exclusão (ou inclusão perversa) dessas pessoas na sociedade.


Em São Paulo capital é tão grande o número de mendigos que eles chegam a fazer parte da paisagem, e tropeçamos neles sem pedir desculpas, considerando "um fato natural da vida" a existência de meninos de rua cheirando cola ao meio-dia na praça da Sé. 


Em Rio Claro - SP não há "meninos de rua" e mendigos como em SP. Estamos relativamente bem servidos por entidades de Assistência social. Temos orfanato, "Casa das Crianças", "Casa da Aldeia" (com "mães sociais") e a Casa Transitória que abriga moradores de rua. Portanto é raro, em Rio Claro, ver um mendigo jogado na calçada. E é de se supor que ao encontrar algum, ele esteja na rua justamente por se recusar à institucionalização, a ser "fichado e rotulado".


Esses andarilhos não querem "se enquadrar" no esquema de vida burguesa. O que sempre leva aos membros da "classe média", como eu, a passar por essas pessoas com ar de superioridade e desprezo, ignorando-as. E, ao sermos abordados, frequentemente nos sentimos aviltados "como ele ousa me dirigir a palavra, esse bêbado, esse drogado? Ai, que medo!" E passamos por eles correndo, virando a cara.


No dia de hoje estacionei meu carro em frente a um supermercado e perto dele havia uma casa lotérica, onde aproveitei para ir pagar umas contas. Nesse trajeto, passei a meio metro de um morador de rua. Ao passar por ele, me dirigiu algumas palavras, à quais me recusei a ouvir, passei direto, balançando minha cabeça em negativa, enquanto reparava em sua excessiva magreza. 


Prossegui meu caminho até a lotérica, pensando sobre ele, percebendo que seu jeito idiossincrático denotava que ele provavelmente era possuidor de transtornos mentais. E que estes poderiam ser o motivo de ele prosseguir na rua, recusando as possibilidades de Assistência Social que nossa cidade oferece.


Um bêbado, um louco, um drogado, um desajustado...


Pensando sobre isso na fila cogitei que direito tinha eu de julgá-lo. Netinha do vovô militar que sou, em tudo o que tive estímulo, ele teve desilusão. Em tudo o que tive oportunidades, ele teve barreiras. Em tudo o que tive conforto, ele teve dureza. Em tudo o que tive aconchego, ele teve violência.


Pequeno e magro, jogado na calçada, minha negativa em ajudá-lo começou a me incomodar. Era meu conforto que me incomodava. Era minha arrogância de superioridade que me incomodava. Era a percepção de que na verdade, pequenas circunstâncias da vida dos separavam, que me incomodava. Mas, sobretudo, que eu teria que passar de novo por ele, na volta a caminho do mercado, que me incomodava.


Resolvi que "daria uma chance às circunstâncias": se no trajeto de volta ele falasse comigo de forma que eu não me sentisse ameaçada, o ajudaria. Não com dinheiro. Isso seria pedir demais.


Na volta, mais uma vez ele falou comigo, baixo e timidamente, já antecipando ser ignorado por mais uma patricinha arrogante. Mas, para sua e minha surpresa, parei e o olhei, como a um ser humano, como talvez nem ele mais me sentisse e poucos (inclusive eu) o considerassem. Me dissera sussurrando:


- Me dá uma ajuda...


Parei e lhe disse com a maior simplicidade que pude:


- Você está com fome, sede? Estou indo no mercado, me fala do que você está precisando.


Ele abriu um sorriso amplo, mas com poucos dentes, e disse "Uma Coca". Talvez tenha pensado que se tivesse pedido uma aguardente, eu recusaria, mas eu não teria recusado. Teria-lhe sim comprado um litro de pinga, se pedisse. Na sua condição, é mais do que compreensível que queira se entorpecer. Mas só me pediu um refrigerante e isso me fez ter vontade de também lhe comprar algo de comer.


Fui ao mercado e peguei uma Coca de 600 ml pensando que depois que poderia usar a garrafa para guardar água. Fui à padaria do mercado e peguei uma bandeja de bauru de forno, quentinho, com guardanapos e sachês de maionese e mostarda. Passei pelo caixa e fui levar até ele.


- Comprei uma Coca e uma coisinha pra você comer também.


Ele abriu um sorriso um pouco mais largo, com um dente a mais e disse:


-Deus lhe abençôe!


Tenho certeza que isso me trouxe mais bem-estar do que a ele. Que este ato, quantitavamente, mais aliviou a minha própria culpa por me sentir abençoada e pouco solidária do que a fome objetiva dele. Ele se sentiu um ser humano, mas eu me senti um pouco mais "superior e boazinha".


Ao fazer essa "boa ação" que me fez sentir tão bem, me lembrei de todas as vezes nas quais, em circunstâncias similares, passei reto, ignorei, não ajudei quem previsava, e rapidamente essa intercorrência cotidiana foi esquecida. Como poderia tudo ter sido tão mais simples. E humano...


Graças a Deus, há vários anos tenho emprego fixo, segurança financeira e comprar um refri e um salgado de vez em quando para um pedinte não me custa nada nem faz rombo algum no meu orçamento, cada vez menos apertado. O que me impedia era o medo, tudo aquilo que, com certa sabedoria da experiência, nos recomendam para nossa salva-guarda.


Não escrevo isso para esfregar na cara de quem quer que seja que "sou boazinha" ou alardear "minha caridade", mas justamente para dizer que não costumo praticar caridade diretamente aos que dela necessitam, me abordam pelas ruas e pedem. E que hoje o resolvi fazer, pela primeira vez. E que, com isso, percebi que a oportunidade que esse mendigo me deu para lhe "fazer o bem" trouxe um benefício maior a mim do que a ele. Acho que, a partir de agora, rompida essa barreira, poderei fazer coisas simples como essa mais vezes. Com menos medo da próxima vez.





Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...