Confesso que "escapei bastante" de finalmente sentar para escrever este texto. Há alguns meses elaborei esta idéia e inúmeras foram as noites nas quais planejei, enfim, colocá-la por escrito. Mas sempre fugia disso. Nem hoje o faria, apesar desta ser uma das ocasiões em que o planejei. Porém, sendo este um dia chuvoso, falham minhas 2 possibilidades de conexão (paga) à internet, e o desvendei como um "ultimato" para tornar o projeto realidade.
Sei porquê tanto disto fugi. É porque essa idéia não é, nem a mim, nem a ninguém, confortável ou reconfortante, mas seu exato oposto. Espero que cheguemos até lá. Incomoda sobre isso pensar, e plasmar em texto.
"Escapismo" é o nome de uma técnica através da qual os ilusionistas realizam o espetáculo do se livrar de amarras aparentemente impossíveis. Harry Houdini era um grande mestre nisso: ser enterrado ou submergido numa camisa de força cheia de cadeados, alarmando toda uma platéia com a possibilidade de morrer na frente deles, para poucos segundos depois reaparecer, magicamente, livre de todas as trancas, num feito aparentemente sobrehumano.
"Escapismo" também é o nome de um "fenômeno psicológico" marcado pela fuga, ou negação, da realidade imediata, que resulta num "projeto idealizado" numa "antevisão" de uma utopia "muito melhor que a própria realidade".
O movimento estético-literário conhecido como "Romantismo" se baseava grandemente nisso: na fuga da realidade através da idealização de um passado heróico. Ou, no caso brasileiro, da invenção de um passado grandioso, feito sobre o molde europeu (temos aí o "cavaleiro-índio" Peri de "O Guarani" de José de Alencar como melhor exemplo).
Vivemos, ainda, em um mundo Romântico. Embora a "moda literária" da "alta cultura" tenha passado pelo Realismo, Simbolismo, Parnasianismo, Modernismo e Pós-Modernismo, a "baixa cultura", do "povão" me parece ter meio que "estacionado" no "belo" paradigma romântico.
Pois é muito confortável "escapar" da realidade que nos oprime. Que nos diz que somos pequenos, frágeis, desimportantes, vivendo um tempo passageiro insignificante, num lugar risível, sem nada de especial. Queremos ser grandiosos, protagonistas de uma heróica senda de descobrimento, queremos nos sentir herdeiros de antepassados gloriosos, portadores de uma herança superior a todas as demais. Enfim, gostamos de nos sentir especiais, únicos, expoentes de uma grande tradição.
E quando nada disso há, o inventamos. Simplesmente o inventamos.
Nisso, vale a leitura do "A invenção das tradições" "Eric Hobsbawm", que basicamente explicita como todos os "símbolos da nacionalidade", muitas vezes venerados como sagrados e atemporais, foram fabricados em determinado contexto histórico, para cumprir objetivos políticos específicos, enumeráveis.
Muitas pessoas recorrem, portanto, ao Nacionalismo, para escapar da triste realidade diante dos seus olhos, num mecanismo psico-sociológico de negação, de fuga da realidade. É mais ou menos assim: "minha realidade é ruim, porém meu passado, o passado dos meus ancestrais, do meu povo, da minha nação, é grandioso, vejam nosso folclore, nossos herois, nossa tradição..."
E isso também pode se dar por adoção, por "adesão" a uma cultura vista como "melhor", ou "mais tradicional" (e portanto "mais verdadeira", supostamente). É nesse ponto que toco na conversão religiosa.
O Brasil é, ainda hoje, um país francamente católico. Mas não "Católico Apostólico Romano", mas "católico à brasileira". Vivenciamos um "Catolicismo folclórico", popular, poroso, osmótico, cheio de influências externas, reminiscências, marcado pela presença das tradições indígenas e africanas. Somos católicos por tradição, mas meio que "estranhamos" o Catolicismo "puro sangue", não nos identificamos com o latim do rito romano. Por ter sido uma religião que nos foi em grande parte imposta, muitas pessoas não a sentem como "verdadeira" e procuram uma alternativa "melhor".
E esse "melhor" necessariamente parece passar por um "mais antiga" ou "mais pura".
Nisso, muitos enveredam pelo Protestantismo. Embora em "secos dados históricos" essas vertentes sejam muito mais jovens que o Catolicismo, todas elas alegam "reviver o Cristianismo primitivo" tal qual era praticado pelos primeiros cristãos, antes dos "desvios doutrinários" de viés pagão que teriam "manchado" a Igreja Católica. Portanto, embora mais jovens, as igrejas protestantes alegam representar um "resgate" de práticas primevas, "abandonadas" pelos desvios da Igreja de Roma.
Mas há muitos que não se satisfazem com uma tradição de "meros" 2 mil anos. Querem ir além, embora nem sempre "radicais" ou "fundamentalistas", conseguem perceber que todo o Cristianismo é uma derivação de algo mais antigo, e portanto, "idealmente" "mais verdadeiro": o Judaísmo.
E isso vai ao encontro de outra ponta histórica mal-amarrada: a ausência de uma "etnia brasileira". O "brasileiro" é, essencialmente, mestiço e bastardo. E isso nos traz grande desconforto. Como povo, somos o resultado de relações ilícitas, ou mesmo forçadas, entre brancos, negras e índias. Somos filhos do estupro, e não nos sentimos bem com isso. Somos filhos bastardos de mãe negra/índia pobre, não reconhecidos pelo pai branco, rico.
Para fugir ao enfrentamento dessa realidade que não nos agrada, INVENTAMOS (ou aderimos a) TRADIÇÕES GRANDILOQÜENTES que nos permitam, num claro mecanismo de fuga, ressignificar nossa identidade, avolumando-a, aprofundando-a, melhorando-a, tornando-a em todos os aspectos superior àquela diante dos nossos olhos, palpável, da qual queremos fugir, a qual nos é desagradável, posto que real.
Como se disséssemos:
"Eu achava que não tinha tradição, mas veja só, 'redescobri' ou 'adotei' uma tradição antiqüíssima, super verdadeira, a mais antiga do mundo!"
"Eu achava que não tinha identidade, mas veja só como é tradicional, antiga, a senda que estou percorrendo!"
Tão mais bonito que assumir-se "católico por imposição, mestiço a contragosto, bastardo sem herança" é o INVENTAR-SE judeu, budista, messiânico, hare krishna, muçulmano, por "resgate" ou "conversão". Psicologicamente para nós, muito mais fácil que encarar uma realidade "desonrosa" é escapar-se dela enveredando por sendas exóticas, idealizadas, distantes no tempo e no espaço, e por impalpáveis, idealizadas, teóricas, "qualitativamente superiores" a tudo o que nos é real, cheio de defeitos.
Foi, é, difícil para mim colocar essa elaboração de idéias por escrito por perceber-me também sua praticante. Também eu, em variadas fases da minha vida, procurei caminhos que me permitissem fugir de mim mesma, de encarar-me em profundidade: amores românticos, identificação com a tradição oriundi, paulista, como bat anussim, noachide.
Por muito tempo considerei seriamente a possibilidade de me converter ao Judaísmo. Fosse mais fácil, o teria realizado e talvez essa reflexão nunca se realizasse: se eu ocupasse minha mente no aprofundamento numa "cultura mais verdadeira" que a minha própria "gastaria" minha "libido reflexiva" no apreender reflexões de veneráveis outréns. E não no aprofundamento reflexivo em mim mesma.
Muito mais fácil que encarar a mim mesma constatando a fraqueza de minha "parca filosofia" é adotar o escopo interpretativo de gigantes filosóficos testados pelos séculos como Maimônides, Buda, o profeta Muhammad, Jesus de Nazaré.
Como se desistíssemos de investir na meditação própria "terceirizando" essa reflexão, confiando em uma "revelação" feita a doutos terceiros. Por isso é tão confortável, e reconfortante, "abancar-se" numa doutrina religiosa. E quanto mais "tradicional", justificada em sólidos fatos históricos ela for, melhor para nos convencermos de que "esta sim" é a "filosofia de vida real" pela qual devemos nos pautar.
Muito mais simples que executar a árdua, e muitas vezes infrutífera, tarefa do encarar-se em profundidade é o escapar de si mesmo, dirigindo nossos esforços reflexivos para o "aprender o caminho dos outros", adotando uma religião que nos ilude com realizações que o "descobrir às cabeçadas o próprio caminho" pode jamais nos prometer.
Elis Regina (via Milton Nascimento) - Cais http://youtu.be/aHoBvW16q78
Natiruts - Vamos Fugir http://www.youtube.com/watch?v=iQ2ddk4VOsc
Vespas Mandarinas - Não sei o que fazer comigo http://www.youtube.com/watch?v=9f5ERVxbcZc
O Teatro Mágico - Eu não sei na verdade quem eu sou http://www.youtube.com/watch?v=Hlj8EtVoRi8
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Uau! Prendia a respiração conforme chegavam os últimos parágrafos! Utilizar a religião como forma de escapismo é uma atitude muito recorrente. Entregar sua autonomia nas mãos de um corpo dirigente religioso é seu equivalente. É muito mais duro encarar a realidade minuto a minuto, como você disse, e manter constante seu poder de decisão sobre si mesmo sem relegá-lo a outrem. Engraçado que a maioria de nós, em certa medida, uma hora ou outra se deixa levar por esse escapismo. Pelo menos somos daqueles que tentam o "escapismo" mas dessas atitudes :)
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