Há mais de três anos, desde que passou o luto por minha avó, eu não atualizava este blog. Por diversos motivos, que ainda explicitarei. Mas sobretudo por estar a esperar por algo de realmente bom para escrever.
Há alguns meses atualizei meus perfis incluindo a descrição "noachide operária de 'tikkun olam' e um pseudo projeto de 'boddisattva'." "Tikkun Olam" se traduz por "retificação do mundo". E mais do que ganhar dinheiro , ter sucesso ou "felicidade" isso é o que sempre tive como objetivo principal a atingir em minha vida. E é a respeito de uma pequena contribuição neste sentido que escrevo agora.
Começando a dar aulas, vi que a escola alimentava com restos de merenda a uma cachorrinha, branca com manchas marrons. Como sempre tive e gosto de cachorros, peguei simpatia por ela, e aos poucos a fui observando. Dois meses depois de iniciadas as aulas, outra cachorrinha, pretinha, com gravidez a termo, meio que "invadiu" a escola, e pariu na sala de informática. Em alguns dias o Canil Municipal, pressionado, a buscou com seus filhotes.
Ouvi conversas aqui e ali que a outra, branquinha, precisava ir embora antes que aparecesse grávida. Um aluno disse que de final de semana ela ia pedir comida no bar, e às vezes apanhava dos bêbados do boteco. Isso cortou meu coração. E passei a observá-la mais de perto.
Ela sempre ficava ao lado da inspetora. Comecei a cogitar abrigá-la para ser castrada. Perguntei a esta inspetora, Bete, se a cachorrinha tinha nome. Disse que a chamava de "Maria Encrenca". Não era um bom nome. Tirei uma foto e publiquei num grupo do Facebook perguntando como poderia castrar uma cachorra de rua gratuitamente.
Me indicaram o centro de Zoonoses de RC, liguei e me deram seis meses de prazo. Me casdastrei, pensando se em seis meses a cachorrinha ainda estaria na escola.
Foi então que um grupo de protetoras de animais, que nunca me viram pessoalmente até agora, se dispuseram a pagar pela castração da cachorrinha, se eu me dispusesse a lhe dar abrigo, "lar temporário", no jargão dos protetores. Morando sozinha num apartamento de dois quartos, topei. Era uma sexta-feira.
Na segunda, alto outono, trouxe a cachorrinha pra minha casa e lhe escolhi um nome que acreditei não só lhe cabia como lhe traria bons augúrios: Cacau, pois era branca e marrom, como um bombom de chocolate branco, e igualmente doce. No mesmo dia, horas depois, Rio Claro teve uma enorme tempestade. Na mesma semana levei Cacau para castrar, mas descobrimos que já era castrada, então as protetoras da AICA de RC trocaram o pagamento da castração pela vacina V10, que tem duas doses.
Compartilhei, e comigo diversas pessoas, a foto da Cacau para adoção, e apareceu uma família interessada, levei Cacau até a casa deles de carro, pois queria me certificar das condições e com quais pessoas ficaria. Era um casal com duas crianças, uma delas bebê, numa casa de classe média baixa. Senti firmeza e lá deixei Cacau com o compromisso de ir buscá-la se qualquer coisa desse errado.
Fiquei feliz, segura que Cacau estava em seu lar definitivo e até compartilhei pros meus amigos a notícia de que Cacau tinha tido um final feliz. Porém, uma semana depois, me mandaram ir buscá-la alegando que ela não tinha se dado bem com a filha menor do casal. A busquei em menos de 24 horas, de volta ao meu apartamento.
Já sabia a essa altura que Cacau era inteligente e de boa índole. E que estava disposta a fazer todo o possível para se agarrar a esta chance que lhe estava dando, de ser uma "cachorrinha de família ", e não mais uma cachorra de rua, à mercê das maldades dos bêbados. A cada momento percebi que Cacau estava bem disposta, a dar o seu melhor, a aprender, evoluir, mesmo com o choque de do nada deixar de ser uma cachorra de rua e virar uma cachorra de apartamento.
Não roeu nada. Nada destruiu ou sujou a toa. Não se entendeu muito bem com Amy, e pôr isso não pensei em mantê-la. Mas sempre por culpa da Amy, que a pentelhava e enchia o saco. Cacau nunca foi de sua parte agressiva ou hostil com minha Amy. Mas amizade entre elas não ia rolar.
Depois de sua primeira devolução, decidi divulgá-la aos meus alunos, imprimi um cartaz e passei em uma sala. Falei dela em outras. Alguns alunos se interessaram. Lhes dei meu telefone. Dois dias depois veio um aluno, feliz e sorridente:
- Professora, falei com meus pais, e eles concordaram em ficar com a Cacau!
Combinamos certinho, ele me passou o endereço, e fui lá entregar Cacau num sábado de manhã. Dei os mesmos alertas que à família anterior, que a buscaria se houvesse qualquer probelma. Era uma casa um tanto menos favorecida materialmente que a anterior. Na segunda-feira seguinte seria a segunda dose da vacina v10 da Cacau e deixei combinado de ir buscá-la. Qualquer problema já a devolveriam.
Qual não foi minha surpresa, ao chegar e perguntar à mãe do aluno, e ela muito mais receptiva, dizer que a Cacau era ótima, muito dócil, estava dando tudo certo. Só me pediu se poderia comprar uma casinha, pois não tinha condições. Comprei a casinha, levei pra vacinar, comprei coleira com medalhinha de identificação com o telefone celular dela.
A fui decolver quando o aluno, Davi, estava chegando da escola. Ele literalmente deu alguns pulos de alegria quando me viu tirar do porta malas do meu Uno Mille a casinha da Cacau. Grande, de compensado de TetraPak. Mas o suficiente para ela se esquentar. Adicionei um colchonete que já usava no meu apartamento, que coube perfeitamente dentro da casinha.
Há um mês "Maria Encrenca" estava na rua, passando frio e fome, sendo agredida por bêbados. Hoje, Cacau está vacinada, vermifugada e medicada, em uma casinha quentinha e fofa, cuidada por uma família, e especialmente por um menino de onze anos chamado Davi. E o fato de que eu de alguma forma propiciei que todo esse bem acontecesse a Cacau me traz profunda alegria e a sensação de que vim ao mundo para fazer coisas deste tipo, e que mais coisas assim quero fazer. É este tipo de história que quero contar a respeito de minha vida e de minha presença neste mundo. Espero que Deus me ajude a ter muitas mais histórias como essa para contar.
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