domingo, 5 de dezembro de 2010

De como dei a extrema-unção ao meu avô

Creio que nunca tão dolorosamente parirei outro texto. Esta memória, a que preferi tanto tempo me furtar, flutua longamente em meu subconsciente tal qual o coacervado primevo da sopa nutritiva nas nunca publicadas “memórias de um átomo” de João da Ega.

Ao reassistir aos “Maias” recentemente, finalmente desvendei o motivo de minha fascinação por esta história trágica familiar: a pungente presença do sábio Afonso da Maia, dignamente interpretado por Walmor Chagas. O personagem do patriarca do Ramalhete ombreia-se ficcionalmente com Rei Lear. O notável que, agora idoso, vê-se diante do dilema de não ter ninguém à altura que o suceda, pois os tempos são outros. Talvez mais diversos ou adversos no século XIX que no XXI.

A pungente memória que pretendo aqui expurgar refere-se aos últimos momentos de lucidez de meu adorado avô Vicente. Mais que um pai, o capitão e depois major da Polícia Rodoviária Estadual Vicente Novais da Silva, foi todo o meu mundo. O demiurgo de meus parâmetros de honradez, responsabilidade, hombridade, retidão. Muitos outros textos merece e receberá meu Morzinho, como o chamava, nunca por “avô”. Ele não era meu “avô”, ele era meu Moreco, assim mesmo, denotando um relacionamento muito íntimo, mas que seja enfaticamente esclarecido, em nenhum aspecto margeando qualquer mancha de sexualidade. Eu e meu Papica, que nesta vida foi meu avô, temos uma ligação amorosa espiritual, que transcende ligações sangüíneas ou carnais.

Mais certeza disso tenho pelo fato de que por uma dessas felizes “coincidências” da vida, eu e ele, nesta encarnação, nascemos no mesmo dia. Quando eu nasci, ele passou seu aniversário daquele ano na maternidade e recebeu, ao final do dia, entre seus braços, empacotadinha e com cara de joelho, a esta que agora escreve este texto de tristes lembranças. Em 1982, eu fui seu presente de aniversário.


Poucos são os justos entre as nações que recebem a dádiva de uma descendência nascida exatamente no dia de seu aniversário. E apenas posso imaginar a emoção imprescritível de alguém que recebe simbolicamente alguém de seu sangue a título de presente de aniversário. Lembro de um caso célebre: John Lennon recebeu seu precioso Sean e dedicou-se integralmente a ele tal qual meu... foge-me qualquer adjetivo que faça-lhe Justiça..., avô dedicou-se não só a mim, mas às 3 netas filhas de sua tresloucada filha. E além de mim, minha irmã mais velha Cristhiane também nasceu um dia antes de nosso aniversário. Meu avô foi duplamente presenteado com dois "coincidentes" presentes de aniversário. Ele o merecia. Merece.

Talvez por nosso natalício comum, sempre desfrutamos de uma afinidade intuitiva, que transcendia palavras, e mais do que isso, a possibilidade de uma efetiva amizade entre uma criança e um aposentado. Meu avô sempre foi, mais do que meu porto seguro, que a ressaca pode levar, meu alicerce em arco romano, que resiste ao teste dos milênios.

O derradeiro momento em que isso aflorou foi quando percebi que, nesta vida, eu seria a agraciada com seu último momento de lucidez. Há muitos anos meu avô lutava contra um câncer na próstata. Metástico, no início de 2007 já sabíamos que era incurável. Submeteu-se meu avô a longas e dolorosas sessões de hemodiálise. Ao final de janeiro, o médico foi sincero conosco e disse que dado o avançado estado de seu câncer, a hemodiálise era um paliativo que apenas prolongaria o sofrimento físico dele e nossa tortura psicológica. Nos apresentava a ortotanásia, a forma adeqüada, kasher, de se morrer.

Consternado, apresentou a possibilidade de suspendermos a hemodiálise e levá-lo para casa, para que ele pudesse passar seus últimos momentos de lucidez na intimidade familiar. Foi decidido pelos “adultos” (aos 24 anos eu não estava incluída entre eles) que suspenderíamos os paliativos. Sabíamos que, sem a hemodiálise, lentamente a uréia não expelida envenenaria seu corpo e ele desfaleceria, lentamente, num coma progressivo.

Esquematizamo-nos para dar plantões à sua cabeceira. Na noite de um certo domingo, era meu o turno. Estávamos assistindo à TV, ele na cama adaptada, eu no catre ao lado. Saturado de morfina, era de se esperar que ele nada fizesse além de ver TV, comer e dormir. Não naquela derradeira noite.

Principiou a agitar-se e a emitir ruídos aflitos. Pulei, agarrei suas mãos e fitei os amados olhos em seu rosto profeticamente inchado e sem cor. Piscava convulsivamente e murmurava coisas indistintas, demonstrando desconforto.

Segurando firmemente suas mãos, pondo meu rosto a poucos centímetros do seu, disse-lhe:

- O senhor está com dor ou com medo?

Queria saber se sua dor era do corpo ou da alma.

Balbuciou, mas o compreendi: “Com medo”.

Senti a primeira lágrima cair-me do lábio superior. Percebi que encontrava-me diante de um daqueles momentos-chave da vida, irrepetíveis, inadiáveis, implanejáveis. Antes que rolasse pelo meu rosto a segunda lágrima, que já se prenunciava, espocou-me na mente a lembrança de uma frase daquelas que nunca se espera escutar:

- Foi aqui que eu morri.

Ouvira isso da boca de uma amiga de faculdade, ao apontar a piscina de sua casa. Explicou a seguir: “Quando eu tinha 3 anos, caí na piscina. Quando me acharam, eu já estava roxa, sem sinais vitais. Meu pai, que é gastroenterologista, me ressuscitou após vários minutos. Tenho certeza de que se meu pai não fosse médico eu não estaria viva.”

Eu não sou médica, e sabia que aos males físicos de meu avô eu nada poderia fazer. Mas às aflições de sua alma eu poderia dar algum bálsamo, embalsamando-as. Naquele momento, enquanto desenhava-se, pendente, a segunda lágrima no canto de meu olho direito, compreendi o motivo de toda a minha Teologia. Formei-me em História, e sempre me interessei por Religião, meus estudos superiores e todo o meu hebraico foram paitrocinados por este que agora encontrava-se moribundo diante de mim.

E eu quase ouvia o Narrador Onisciente decretando a respeito desta cena: “Foi ali que ele morreu”. Eu não O ouvia tal qual não divisava a chuva de neutrinos nem tangia a matéria escura a nos trespassar. Mas mesmo não sendo palpável, nada disso é menos real. Algumas coisas são intuídas, ou mesmo teoricamente postuladas, e não precisam de nenhuma comprovação mensurável para serem dignas de crédito. Agradeço a Deus esta certeza, que faz vibrar minh'alma.

Enquanto a lágrima principiou a rolar sobre a minha face, repassei todo o meu Latim, que só agora eu compreendia porquê aprendera: para saber exatamente o que dizer naquele momento crucial. E mais do que isso, enquanto escolhia as palavras exatas, lembrei-me que tinha diante de mim um ex-seminarista, que reconheceria imediatamente o que eu estava a fazer ao dizer aquela sentença que hesitantemente articulava. Não cabia dirigir-me, naquela circunstância, a meu avô por senhor, e sim, intimamente, por “você”.

Um leigo teria dito: "eu te amo", começado a rezar um Pai Nosso, afagado-lhe ou apenas chorado. Mas minha Teologia nos servia para dizer algo muito melhor, eficiente e próprio para este momento para o qual nunca jamais alguém estará suficientemente preparado: despedir-se de um espírito-irmão. O que vc diria, leitor, nesta circunstância?

Quando decidi-me pela exata formulação da frase, questionei-me se tal sentença cabia, pois para mim meu avô sempre fora um santo, de comportamento irretocável, digno dos mais altos elogios e honrarias. Diante de mim, meu avô jamais fizera absolutamente nada que eu pudesse criticar. De minha perspectiva ele era tamin, imaculado, dele apenas posso dar testemunhos exemplares. Mas lembrei-me de que a vida de meu avô excedia ao breve recorte final que eu testemunhara, e que ao longo de sua juventude e imaturidade ele poderia, tal qual eu, ter feito coisas pouco recomendáveis. Lembrei-me ainda, embora isso pareça impossível neste curto lapso temporal que ora narro, que já haviam-me dito que antes de eu nascer meu avô fumava e tinha “amigos do bar”. E que eu gostava de nutrir o acalanto inverídico de que, tocado por minha simples existência, ele cessara de conceder-se estes deslizes. Por fim, decidi-me de que a frase, em sua integralidade, apesar de minha perspectiva hagiográfica, cabia.


Enquanto escorria derradeiramente a segunda lágrima pelo canto de meu lábio superior, eu disse segurando ainda mais fortemente suas mãos, com a voz profundamente embargada, mas ainda assim dilacerantemente resoluta:

- Você se arrepende de todos os seus pecados?

Ele imediatamente reconheceu que nesta frase eu, nesta vida sua neta, estava a dispensar-lhe a extrema-unção, o derradeiro sacramento, e tentando, dentro das minhas capacidades, expurgá-lo de erros e pecados, possibilitando-lhe, quiçá, seu green card para alguma “área VIP” celestial, que ele com certeza merecia.

Esse é o tipo de frase que não pode ser dita duas vezes, e que nunca deve ser pronunciada antes da hora, sua função é proporcionar um alívio instantâneo, e não uma agonia prolongada de devoto, mas naquele átimo percebi que meu avô testemunhava seus últimos momentos de compreensão, e que este era o instante fatídico para o qual toda a minha e toda a sua Teologia nos haviam encaminhado.

Meu avô olhou para o alto e murmurou algo que não pude compreender, mas que me aliviou enormemente (pela cadência creio que o disse num latim que excedia ao meu parco estudo). Em poucos segundos começou a ter uma convulsão, e gritei por ajuda dos demais familiares. Lembro-me do semblante desesperado de meu tio Renê ao acorrer, escorregando, devido à urgência, no quarto, e de como as veias saltavam em seus braços enquanto acudíamos com toda a nossa firmeza ao nosso pai. A seguir meu avô foi levado, de ambulância, para o hospital, de onde nunca retornaria. Recitei-lhe e ainda recito-lhe o Kaddish, a Vicente ben Euclides, da parte de Fernanda bat Noach.

Foi assim, com o coração mais-do-que partido, embora eu não seja sacerdote, que dei, creio que corretamente, a extrema-unção e despedi-me de meu tudo nesta vida. Sinto ainda hoje, todos os dias, sua ausência. Mais do que meu pai, meu avô nesta minha vida foi toda a minha pátria.


O Teatro Mágico - O Anjo Mais Velho

The Beatles – Help

Jota Quest - Mais Uma Vez

Um comentário:

  1. Fernanda, li seu texto e achei muito comovente, com palavras fortes e emocionantes, gostei muito de conhecer um pouco mais de seus sentimentos e saiba que seu Vicente foi muito querido por mim, pois via nele um pai que gostaria que o meu fosse, por isso e por muito mais ele é uma lembrança muito forte.
    Adorei!
    Beijos

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