sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

De como levei meu primeiro chifre

Chifre”, hoje em dia, é símbolo de traição, adultério. Enquanto digito isso lembro-me de uma estátua confeccionada por Michelangelo Buonarotti, de Moisés chifrudo. E de como isso nada diz a respeito da fidelidade de Séfora de Midiã, mas muito a respeito da força e poder de Moshe Rabenu. Até o significado dos cornos são historicamente determinados!

No português brasileiro corrente, “chifrar” não é o ato de um animal ferir com seu chifre a outrém (Êxodo 21: 28-31), mas equivale-se ao “pular a cerca”,pastar na grama do vizinho”. É um dito popular que o chifre é uma coisa que não existe, mas que os outros colocam na sua cabeça. E também diz-se que aquilo que os olhos não vêem o coração não sente.

Agora algo escolada nas frugais intermitências da vida, consciente da falta de orientação e do machismo familiarmente incutido em meus alunos, digo em toda oportunidade que apresenta-se, já desde a quinta série que o chifre é como a morte, muito democrático. Que todo mundo, um dia, levará, e dará uma chifrada em alguém, adicionando ao ditado corrente das certezas da vida: a morte, os impostos e ser, ao menos uma vez, chifrado. Talvez isso algum dia impeça um crime passional, por isso não perco a oportunidade de banalizar tal fato, afirmando que não é algo “tão grave assim”. Não pretendo com isso estimular nenhum adultério, apenas tento quiçá prevenir alguns acionamentos futuros da lei Maria da Penha ao despir meus alunos de um centímetro de sua misoginia latinamente implementada.

Levei meu primeiro chifre (do qual soube) creio que à esta altura dos meses, dez anos atrás. Vivo hoje os últimos dias de meus 27 anos considerando-me já algo adulta. Escrevendo do meu presente, se eu fosse colocar minha vida em balanço, J foi o grande amor da minha vida, e meu mais longo relacionamento, de longe. Tive outros namoros e amores, de 8 meses, de 6 meses, de 1 ano e meio; mas nenhum deles marcou-me tanto como este, de 4 anos, entre meus 17 e 21 anos, que chegou a materializar-se numa coabitação de muitos meses. Por isso considero a J meu ex-marido, embora não me renda pensão alimentícia. :D Orgulho-me de nunca ter havido vil metal a nos separar, unir ou macular.

Sob a égide de J deixei a adolescência, entrei na faculdade, emancipei-me, tornei-me Mulher e muito mais Humana. Por isso eternamente reputar-lhe-ei ser meu mito fundador. Orgulho-me dele, meu gigante com voz de trovão. E orgulho-me que tenha permitido-me ser parte de sua vida, e sustê-lo enquanto claudicava entre o luto por seu pai, seu divórcio e a morte de sua mãe. Orgulho-me ainda mais de ter sido capaz de dar conta de todo o seu espírito erudito acromegálico, de todos os seus 120 quilos e seu 1 metro e 95. Fui mulher suficiente para sua estatura gigante não apenas física, mas também moral. Fui mulher deste entre heróico, macho-alfa e super Ser Humano de coração pungente e imenso. Se a alguém confiaria fazer o discurso em meu funeral, seria a J, sabendo que com toda a sua eloqüência improvisar-me-ia bela e poética elegia. Órfã de pai, mãe e avô que sou, se a alguém pediria que me conduzisse ao altar, seria a J, que belíssimo ficaria, grisalho, num terno, e que me entregaria com amor paterno a quem sabe aquele que está inscrito em meu Destino. Quem sabe um dia...

Com tristeza reconheço que de J levei e a J dei meu primeiro chifre, em represália. O chifre que lhe dei, confessei-lhe desafiadoramente, explicando que apenas o fizera em retaliação. O chifre que deu-me, flagrei-lhe, ao menos em um. Namorávamos há 1 ou 2 meses, e eu debatia-me numa desesperada e enlouquecida obsessão romântica idealizada por tudo que evocava vagamente a J.

No dia do flagrante adultério sofrido que surpreendi, J disse-me que estava cansado e não sairia à noite. Conformei-me e fui depois convidada por uma colega de sala, Aline, a ir encontrá-la no fliperama Lord’s na rua Coelho Lisboa, esquina com a Cantagalo, em frente ao Shopping Sílvio Romero, no Tatuapé velho de guerra, palco de minha adolescência. Como eu estava triste de não poder encontrar meu amado, aceitei seu convite. Meia hora antes do combinado, saí, a pé, de minha casa e trilhei os caminhos que conheço ainda hoje até de olhos fechados pelas Padre Estêvão Pernet, Itapura, Tijuco Preto, Serra de Bragança, Serra de Juréia, que levam até à praça Sílvio Romero, “centro” do Tatuapé.

Na esquina desta praça, entre a Serra de Bragança e Coelho Lisboa, havia um bar temático de futebol, ao qual J já me levara e tornaria, cruelmente, a levar depois deste episódio. Nesta creio que sexta-feira do flagra, dobrei com meu comum passo apressado esta esquina, e já na Coelho Lisboa olhei, despretensiosamente, para dentro do bar. Procurava divisar à mesa na qual sentara-me, apaixonada, ao lado de J. Não costumo “olhar para os lados” nem procurar rostos enquanto ando, apressada, pela rua. Mas neste dia fugi a meu comportamento habitual e tive uma das mais desagradáveis surpresas de minha vida.

Divisei a mesa na qual sentara-me há 2 ou 3 semanas. E nela vi sentado J. Pisquei. Ele continuava lá, e via-me reciprocamente caminhando na calçada. Sentada à sua frente estava G, uma conhecida comum, assoberbante mulata cadeiruda, digna de ser madrinha de bateria, do grupo de acesso, 15 anos mais velha e escolada que eu, e ainda por cima Policial Militar feminina, pesando em músculos 20 quilos mais que eu em atonicidade.

Um milhão de virtualidades pulsaram em minhas veias catalisadas pela adrenalina que já sentia inundar-me. Sem alterar num micrômetro o compasso de minha pressa, cogitei adentrar o bar e dar um barraco daqueles, jogar bebida no rosto dos dois e virar cadeiras. Pensei em entrar no bar, ir até eles e desejar-lhes cinicamente todas as felicidades do mundo. Pensei também que talvez eu estivesse tendo uma alucinação ou ilusão oriunda de meu fresco, imenso e desmedido amor. Não, se tal fosse, eu não teria o trajeto de meu olhar interceptado pelo rubor na face ao mesmo tempo pálida e mulata de J. Por fim decidi prosseguir orgulhosamente em meu passo resoluto. Cingi-me da dignidade que prematura e injustificadamente sempre procurei ostentar. E, sobretudo, raciocinei que armar um barraco, ou chutar-lhe o pau, não serviria de nada à reiteração ampliada que pretendia para esta minha paixão. E eu não pretendia, sequer vagamente, transigir da presença de J em minha vida, por mais que eu precisasse engolir secamente meu orgulho e minha dignidade para tal.

Dados 7 passos, sabendo-me eclipsada ao olhar de J, parei e pensei em dar alguns passos atrás para furtivamente certificar-me de que eu não alucinara, mas que de fato meu amado idealizado estava sentado à mesma mesa à qual me levara, agora com outra mulher. Mas não. Parei meio segundo e prossegui. A 80 metros encontrei Aline, em frente ao Lord’s. Sem cumprimentá-la, quase a desmaiar, agarrei seu braço e disse:

- Faz um favor imenso pra mim? Vai no bar da outra esquina e olha se o J está lá com a G, por favor!

Compreendendo meu estado emocional alterado, Ela sentou-me no Lord’s e foi rapidamente cumprir o que lhe pedira. Retornou 4 longos e excruciantes minutos depois e disse-me:

- É, ele não estava no bar, mas na calçada, vi ele olhando pros lados, como se procurasse alguém. Parecia que tinha acabado de pagar a conta e... ... a G estava do lado dele...

Eu não alucinara. Foi adstringente e amarrou-me a boca tal qual pedra hume o sabor do primeiro chifre que levei, aos 17 anos, do então e até agora grande amor de minha vida. Naquela noite, ao lado de Aline, permiti-me um porre homérico de tequila. Depois desta noite, nunca mais tomei tequila, o destilado de agave mexicano, por temer sentir o gosto adstringente de adultério que seu bouquet me suscita.

Engoli a seco a tequila e o chifre desta noite. E meu amor com J durou por mais 4 anos, sem os quais tenho certeza que hoje eu não teria meia estatura do que sou. Às vezes precisamos engolir muitos sapos para poder beijar o ilusório e amado príncipe.


Legião Urbana - Eu sei


Pato Fu - Eu sei


Eric Clapton & BB King- Riding With The King


Eric Clapton & B.B. King- Come Rain Or Come Shine


Alanis Morissette - Flinch


Postagem posterior complementar: O flagrante que nunca foi

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