terça-feira, 30 de agosto de 2011

O flagrante que nunca foi

Em texto anterior relatei um flagrante que dei numa “chifrada” que levei. Como a história repete-se como farsa, há um episódio complementar a este no qual o que flagrei a me chifrar na outra ocasião achou ter surpreendido desta vez a mim em adultério. Mas ele estava enganado.

Nem tudo o que parece é. Frequentemente nossos olhos e as situações nos enganam.

Namorávamos já há mais de 2 anos a esta altura. Eu principiava minha vida adulta e acabara de montar meu primeiro apartamento, só meu. Era um apartamento de um quarto no edifício “Viadutos” do arquiteto icônico Artaxo Jurado. Este prédio é cognominado “Bolo de Noiva” por seu salão de festas, no 38º andar assemelhar-se a um chapéu, um bolo em camadas ou uma nave espacial pousada sobre o prédio. Situa-se à Praça General Craveiro Lopes, na Bela Vista (ou Bixiga), em frente à Câmara Municipal de Vereadores de SP capital, entre os viadutos 9 de Julho, Jacareí e Maria Paula, bem próximo à Federação Espírita Brasileira e da Praça da República.

Morei 2 anos neste prédio no apartamento 1513, ao décimo quinto andar. Da minha janela via as costas do Copan, toda a silhueta dos prédios do Centro de São Paulo e, um pouco mais longe, as antenas da Avenida Paulista. Nesta que foi minha primeira casinha fiz questão de receber meus amigos não só da faculdade como também dos tempos do colégio. Agora eu era adulta e podia dar minhas festinhas com os amigos sem preocupação com o horário. E, morando no centro podíamos sair à noite e tínhamos um lugar seguro para onde voltar nas madrugadas.

Meu namorado desde os 17 anos, J, sempre trabalhou muito, ziguezagueando pela cidade nos 3 períodos do dia. Para ele, que ate então morava quase em Osasco, ter um ponto de parada, descanso e pernoite no centro foi providencial. Embora ele não tenha se mudado “de mala e cuia” para meu apartamento, dormia lá pelo menos 5 noites da semana. Para fins práticos, morávamos juntos.

Apesar de ele ser muito mais velho do que eu, nunca estabelecemos uma relação de subordinação, mas de aliança, auxílio mútuo e cumplicidade intelectual. Nunca estabelecemos uma dinâmica de “casados”, mas de namorados, e nunca autorizei que ele me tolhesse em nenhum aspecto de minha juventude, amizades, saídas noturnas ou viagens. Como ele não contribuía financeiramente no sustento do apartamento, aquela sempre foi a minha casa, na qual ele era hóspede. E, portanto, não tinha liberdade para ditar regras. E, me conhecendo, jamais tentou cruzar o limite de minha auto-determinação.

Certa manhã eu havia convidado um amigo dos tempos do cursinho, R, de quem J tinha muito ciúme pois R já se declarara, coisa de 2 anos antes, apaixonado por mim. Na ocasião eu já namorava J e, portanto, o relacionamento com R não se realizou. Mas continuamos amigos, inclusive trabalhamos juntos por mais de 1 ano durante meus 18 anos, até eu entrar na faculdade, largar o emprego e me mudar do Tatuapé. Depois disso nossos caminhos se afastaram, mas o continuei tendo em alta estima, com é fato até hoje.

Nesta certa manhã eu havia combinado de ele dar uma passada na minha casa para conhecer meu apê de “universitária adulta” antes de pegar no batente na loja de grife em que trabalhava no Shopping Center Norte. Por algum motivo, esquecimento, desencontro, simples vontade de me furtar a um dissabor desnecessário, ou falta de vontade de “dar satisfações da minha vida”, não contei ao J sobre a visita que receberia.

R veio e fizemos um brunch. Contei-lhe sobre minhas aventuras na USP, os novos amigos, as baladas. Ele me contou sobre seu novo emprego, sua namoradinha japonesa, suas aventuras em sua adultez por construir. Foi uma manhã muito agradável. Caso tivéssemos feito algo além de conversar como bons amigos eu não teria nenhum problema em admiti-lo hoje, mais de 8 anos depois. Porém não foi o caso. Aproximando-se o meio dia, hora em que ele e eu teríamos que ir para nossos destinos, deixei-o na sala enquanto fui ao banheiro me arrumar. Umedeci meu cabelo e comecei a penteá-lo quando ouvi a chave girando na porta.

No intervalo temporal dos 3 passos que demorei para chegar à sala, encontrei J com uma expressão feroz de onça na tocaia medindo R de alto a baixo. Olhou para mim, com o cabelo molhado e o pente na mão com uma expressão pungente de certeza. Certeza de que acabara de me “pegar no pulo”, em flagrante a lhe dar um chifre. Momento perfeito para a frase-clichê dos adúlteros:

- Não é nada disso que você está pensando.

Não era nada daquilo que ele estava pensando, mas o clichê não foi usado. Sem que ninguém dissesse nada, J virou as costas e começou a ir embora. Eu não o deixaria ir tendo certeza de algo que era falso. Eu não perderia o então amor de minha vida por uma acusação não pronunciada da qual era inocente.

- J, que é isso? Estávamos também de saída. Ele só veio me fazer uma visita!

Do hall J me lançou um olhar de adaga cigana, nada disse e simplesmente apertou o botão para chamar o elevador. Olhei para R como a pedir ajuda, mas que poderia ele fazer? Dizer: “Olha, J, eu não comi sua namorada, viu?”

Peguei minha bolsa, minha chave e com um gesto intimei R a sair comigo. Por sorte o elevador acabara de chegar enquanto eu terminava de girar a chave na porta. J entrou mudo, e depois eu e R. 3 pessoas que totalizavam em altura 5 metros e meio e 273 quilos num espaço de 2 metros quadrados em meio a uma situação constrangededoríssima. Descemos os 15 andares no mais cortante silêncio. Quando a porta se abriu J saiu resoluto com seus passos de mais de metro e meio. Pela sua postura percebi que seu intento era ir para nunca mais voltar. Corri atrás dele, e R alguns passos atrás, meio sem saber o que fazer. Quase a alcançar J, dizia-lhe enquanto ele se furtava em velocidade:

- Vamos conversar!... Pô, você sabe que ele é meu amigo!... Não aconteceu nada demais!...

Ele ia fugindo enquanto eu corria e tentava alcançá-lo com minha voz e meus argumentos. Ele indo mais rápido, eu lutando para vencer a multidão da rua Xavier de Toledo, no sentido Teatro Municipal. Como J continuava a acelerar, olhei rapidamente para trás e vi R já muitos passos atrás. Sem nada dizer, olhei-o com a expressão que dizia tudo:

- Desculpe o fim acidentado desse encontro e eu não poder me despedir direito de vc, mas ele é meu namorado e não posso deixar que ele vá embora assim, achando que deu flagrante num adultério que não foi!

Acho que ele compreendeu, pois se perdeu na multidão, tomando seu rumo em direção ao metrô. Corri para alcançar J, peguei em seu braço com delicadeza e disse:

- J, me ofende que vc ache que eu fico “recebendo homens” em casa na sua ausência. Acredite em mim por tudo que já passamos juntos. Não aconteceu nada!

Ele não respondeu, se afastou de mim dando passos para trás, virou as costas e seguiu seu caminho, se perdendo na multidão que cruzava o viaduto do chá. Pelo dia inteiro senti-me morrer achando que nunca mais veria meu amado J. E mais doloroso foi o sentimento de que eu era vítima de uma injustiça. Que minha honradez estava sendo posta em dúvida por quem eu achava ser meu maior aliado na vida.

Ao final da noite, contorcendo-me em cólicas na dúvida se ele viria para dormir em casa, comigo, ou não. Meia hora depois do tempo costumeiro ele chegou. Corri e o abracei. Disse:

- Vamos conversar?

Ele me olhou como uma criança que acabou de apanhar olha para a mãe que larga o chinelo e o coloca no pé. Atalhou:

- Não quero falar sobre isso. Vamos colocar uma pedra sobre este assunto. Estou cansado. Vou dormir.

Para agradá-lo eu havia preparado uma comidinha gostosa. O servi. Ele comeu rapidamente. Eu tentei mais algumas vezes explicar o ocorrido da manhã, enquanto ele me cortava. Por fim, achei melhor deixar como estava, afinal, ele voltara para casa.

Até hoje não sei se ele acreditou em minha fidelidade e inocência neste episódio ou se ele guardou dentro de si a dúvida/certeza de ter sido traído, preferindo “passar ao largo do assunto”, relevar por conveniência ou amor por mim. Nem que tipo de impressão R guardou deste episódio.

Talvez a partir deste texto alguns closures sejam atingidos e dúvidas sanadas. Ou talvez isso seja pedir um pouco demais da vida: que tudo se acerte e os mal-resolvidos encontrem seu desfecho.

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