sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Causos escolares - A suástica tatuada

Este é mais um episódio suscitado pelo ambiente prisional. Desta vez no CRM, Centro de Ressocialização Masculino de Rio Claro, interior do estado de SP, Brasil. No qual trabalhei durante 6 meses, no segundo semestre de 2008, lecionando tanto História quanto Geografia – além de supostamente Sociologia e Filosofia.

No corrente ambiente político de meu estado, sob os sucessivos governos do PSBD, partido Social Democrata, cujo símbolo é o ufanista tucano, foi perceptível o investimento maciço no SAP, Superintendência de Administração Penitenciária e na área de Segurança Pública em geral, simbolizada pela tropa de elite da PM, Polícia Militar Paulista: a ROTA, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar.

É engraçado lembrar de Paulo Salim Maluf, ex-governador, ex-prefeito da capital, ex-candidato à presidência da República, também famoso pelos “estupra, mas não mata” e “se o Pitta não for um grande prefeito, nunca mais votem em mim”:

- Eu vou colocar a RRRRota na rrrrua.

Com um ére rosnado, pesado, intermitente, como um ronco do motor de um carro a álcool falhando ao dar a partida, bem paulistano, da Moóca. A respeito de Paulo Salim Maluf, me contaram, e felizmente não me lembro, que durante sua campanha presidencial perdida para Tancredo Neves, toda vez que Paulo Maluf aparecia na TV eu, com 3 anos de idade, abria um grande sorriso e batia palminhas. Não sei se ele usa algum tipo de macete subliminar, mas eu gostava muito de Paulo Maluf aos 3 anos de idade. De minha primeira infância acá, eu algo evoluí. Muitos eleitores não, haja visto que mesmo nas últimas eleições do corrente ano ele foi reeleito, com todos os seus éres e inquéritos por corrupção (procurem por malufar num bom dicionário), a deputado federal, e com muito expressiva votação. O Malufismo ainda viceja, tristemente, nas conservadoras hostes paulistas...

A evocação da ROTA visava aterrorizar aos criminosos, pois a ROTA é “faca na caveira”, a versão paulista do BOPE, Batalhão de Operações Especiais fluminense, afamado pelos filmes “Tropa de Elite”.

Devo reconhecer que o investimento em segurança resultou na queda das estatísticas de homicídios, se é que tais estatísticas merecem algum crédito, mas são as únicas das quais disponho. Só mais um parêntese a respeito de “estatísticas”: enquanto eu trabalhava na FEBEM, lembro de abrir o Jornal Cidade e ver uma foto sorridente do diretor da ONG, Organização não Governamental, à qual fora terceirizado grande parte do tratos aos “menores internos”. Na entrevista, ele afirmava enfaticamente que o índice de reincidência entre os egressos de sua unidade era zero. Dei uma gargalhada convulsiva ao ler isso. Ri de como ele podia afirmar publicamente algo que todos que trabalhavam lá sabiam ser falso... Muitas vezes eu não vejo necessidade de assistir a programas de humor pois a realidade já é-me suficientemente risível.

Voltando ao CRM, bloggeira-windows que apercebo-me: é uma cadeia, dentro do possível, “decente”. Não conheci-lhe todas as dependências, nem as celas. Mas parecia-me organizada, limpa, relativamente bem-equipada. É uma das poucas cadeias brasileiras que oferece trabalho a seus apenados. Os em regime fechado trabalham em funções manuais da indústria. Os em regime semi-aberto trabalham na Ludival, que fabrica sofás e na Tigre, indústria de tubos e conexões, além de outras fábricas menores da cidade. Por mais que sejam explicitamente explorados como mão-de-obra barata, é louvável que os gerentes destas fábricas contribuam para a ressocialização dos presidiários.

Os do regime semi-aberto têm hora certa para chegar, se não retornarem, são considerados fugitivos. Lembro-me que certo poente eu estava indo dar aula pela rua de terra, embaixo de espessa chuva e divisei, na beira da via, um de meus alunos andando apressado, carregando pelo braço sua bicicleta. Se ele fosse nela, com certeza escorregaria, por isso a arrastava. Ao passar por ele e vê-lo molhado até os ossos de chuva até pensei em oferecer-lhe carona. Mas ao ver-lhe o uniforme prisional amarelo ensopado, desisti. Não pq ele fosse molhar o banco do meu carro, mas pq ele era, afinal, um presidiário. E eu sequer cogitava por qual crime fora preso. E com certeza não é prudente para uma mulher sozinha, numa rua de terra, numa quebrada, oferecer carona a uma pessoa que ela sabe, objetivamente, ser um criminoso. Coloquei minha própria segurança acima de qualquer pena que eu estivesse a sentir por sua triste situação.

Passei sem olhá-lo e ele prosseguiu apressado, pois sua hora para chegar se aproximava. Outro aluno seu colega de sala, mas do regime fechado é o mote desta postagem. Como professora, sou uma “de fora”, posto que quem dá aula no sistema penitenciário e na Fundação CASA são professores regulares da Secretaria Estadual de Educação, os mesmo que dão as aulas regulares na rede de ensino público. E é ótimo que assim seja, pois pessoas “de fora”, sem nenhuma relação empregatícia com o SAP têm convívio virtualmente diário com seus “clientes” e podem, de certa forma, “fiscalizar” o trato que é dispensado aos encarcerados. Por ser “de fora”, não tenho acesso às fichas e, portanto, desconheço por qual crime e por quantos anos cada um estará preso.

No CRM dei aulas a uma turma de 50 alunos do Ensino Médio. Muito variado era o perfil, étnico, etário, educacional, de meus alunos. Como eram muitos, de poucos guardei o nome, em especial não me lembro o nome deste, a quem me referirei apenas como o ornado por uma suástica.

Idoso. Mais de 60 anos, com certeza. Cabelos bem alvos algo crescidos, e abundantes. Trajava o uniforme ocre ou cáqui, da cor de burro quando foge, demonstrando ser do regime fechado. Nunca soltou uma só palavra nos seis meses em que lhe dei aula. Jamais pediu para ir ao banheiro, ou tomar água. Sequer à chamada respondia verbalmente, apenas acenava com a mão que estava ali. Sentava-se na primeira fileira, não conversava com ninguém, fazia sua lição direitinho e tinha todos os disputados vistos. Não seria motivo de pousar-lhe o olhar duas vezes não tivessem meus olhos, já à primeira, divisado o número abundante de tatuagens que ostentavas, mesmo 75% de seu corpo estando recoberto por seu uniforme. E sobretudo, uma tatuagem em especial.

Todos os prisioneiros usam alpargatas, dessas bem chinfrins que descolam as tiras. E este senhor tinha seus pés bastante tatuados, com essas tatuagens de cadeia, tortas, feitas com tinta de caneta esferográfica e aparelho de barbear. Uma delas quase piscava pelo anátema que desperta a todos que tenham vivido no século XX: uma suástica.

Podem argumentar que este é um antigo símbolo de proteção asiático, mas não: qualquer um que tatue atualmente, no Ocidente, uma suástica, sabe perfeitamente que está fazendo apologia ao Nazismo personificado no candidato a anti-Cristo mais recente: Adolf Hitler.

Não surpreendia tanto que alguém, numa cadeia, exiba uma suástica, mas a pela morena em que ela estava tatuada. Este apenado não chegava a ser “mulato”, mas percebia-se-lhe não só o pé na cozinha como a mancha mongólica. Era um brasileiro, de cabelo enrolado, nariz largo, olhos amendoados e pele morena.

Lembro-me dele com curiosidade, não só do pq estava preso, mas por quais caminhos alguém tatua, improvisadamente, com tinta de caneta Bic uma suástica na pele morena miscigenada e vira-latas que Hitler destinaria à “eutanásia”. Pois é, para que assistir programas de humor, ou até ler livros de filosofia se os próprios fatos corriqueiros do cotidiano são depositários de uma galhofa reflexiva tão irônica?

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