quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O irmão de Hakani e o mimadinho sociopata.

O assunto desta postagem é algo muito delicado de se perceber e volátil para se analisar, mas pretendo intentá-lo, com toda a sua fragilidade. E é a partir de exemplos práticos que pretendo abordar a questão do pq algumas crianças demonstram desde cedo instintos sociopatas enquanto outras externam uma Humanidade tão profunda que faria corar a muitos octogenários. Analisarei o comportamento de duas crianças que nunca vi, das quais ouvi falar e pensei muito a respeito. Apenas para fins didáticos chamarei a um de Luís e ao outro de Rudá.

Logo no começo vai o post scriptum, ou a nota de rodapé: relevarei os possíveis determinantes genético-biológicos destas duas crianças, considerando que seu comportamento seja apenas socialmente determinado, sob o prisma já descartado da tabula rasa. Portano aproveito para já externam a consciência da vanidade de meu esforço, como o de cavar um buraco na água. Mas se fôssemos estritamente racionais não seríamos plenamente humanos. Chegaremos até aí.

A primeira frase que ouvi a respeito de Luís foi:

- Eu tenho medo desse menino, não deixo meus filhos brincarem com ele.

Isso foi dito numa sala de professores, durante uma conversa coletiva, a respeito do filho de uma diretora de escola. A seguir a professora que disse a frase acima relatou seu pq. Disse que num churrasco de confraternização viu Luís tentar seguidamente afogar outra criança, filha de uma professora entretida demais com o churrasco para preocupar-se com seu filho. Contou-nos que pulou na piscina e resgatou à vítima, que desesperadamente lutava por sua vida.

Após colocar a criança no deck, já segura, disse que virou-se para Luís e perguntou:

- O que vc estava fazendo?!

Com um brilho metálico e frio desenhando uma sombra de crueldade em seus olhos, Luís disse:

- Eu só estava ensinando ele a nadar...

A professora disse que ele arrematou essa frase com um sorriso que causou-lhe um arrepio na espinha, ao perceber que a criança de 8 anos não estava meramente de forma irrefletida brincando perigosamente com o coleguinha, mas que Luís não só estava tentando dolosamente assassiná-la como já tinha na ponta da língua seu álibi pré-fabricado. Percebeu que Luís era um sociopata, e que todos os que estivessem ao seu alcance corriam risco de vida.

Concluiu dizendo que Luís era o príncipe de sua casa, filho único, muito inteligente, fazia judô e tocava piano; estava sempre impecavelmente vestido, cheio dos brinquedos modernos, dos quais era cumulado por seus pais que muito trabalhavam, para remediar sua ausência cotidiana. Luís era cheio de coisas e vazio de valores.


Por Rudá chamarei ao irmão da famosa indiazinha suruwahá Hakani. Hakani nasceu numa reserva indígena. Com o passar do tempo, sua gemeinschaft percebeu que ela não crescia nem desenvolvia-se “normalmente” como as outras crianças. Socialmente percebido que ela era portadora de algum tipo de deficiência, a aldeia legislou que Hakani deveria ser morta, para não tornar-se um peso para sua comunidade.

Muitos criticam ou mesmo legitimam o infanticídio indígena. É compreensível que numa vida tão dura a comunidade queira, racionalmente, “livrar-se” rapidamente daqueles que não poderão “trabalhar”, mas apenas vampirizarão os parcos recursos comunitários, sem contribuir positivamente. Obviamente não compactuo, mas compreendo essa prática. Outro costume indígena é o de livrar-se dos segundos, terceiros, quartos, gêmeos. Ter múltiplos é coisa de animais. Humanos têm apenas 1 filho de cada vez, e a crença indígena é de que se alguém tiver um irmão gêmeo, nunca conseguirá formar devidamente sua personalidade e que, a existir um duplo de alguém, necessariamente um será o “gêmeo mau” e outro será o “gêmeo bom”. Para resolver esse problema, é mais fácil simplesmente assassinar aos gêmeos nascidos depois do primeiro, quantos forem.

Muitos lerão no parágrafo superior a comprovação do primitivismo das sociedades pretensamente “selvagens”. Mas não deveriam. Apenas para colocar isso em perspectiva, vai uma curiosidade antropológica: os índios brasileiros jamais batem em seus filhos. Disso sei pois tal foi relatado com surpresa pelos jesuítas que vieram à América Portuguesa catequizar aos silvícolas. Li certa vez que um jesuíta surpreendeu-se enormemente quando, ao levantar a mão para açoitar um erê indisciplinado, teve sua mão segurada no ar por um índio que sequer era parente da criança. O índio impediu que o jesuíta batesse nela e lhe explicou, provavelmente em guarani:

- Não pode bater em criança. A alma foge.

Índios não batem em guris pois essa violência pode assustar e afugentar a alma da criança, que pode escapar-lhe do corpo pelos maus-tratos. Portanto compreendam: a aldeia pode até decretar a aniquilação de uma criança. Mas jamais a agredirá, por nenhum motivo.

Quando a aldeia decretou o holocausto de Hakani seus pais deveriam ser a primeira mão a executá-la. Para furtarem-se a isto, ambos os seus genitores cometeram suicídio. Mas isto não foi suficiente para poupar a vida de Hakani, que agora órfã seria um peso comunitário ainda maior. Por conta disso seus irmãos foram encarregados da execução.

Um sepulcro foi cavado e Hakani foi enterrada viva. Rudá, seu irmão mais velho, agora o chefe da família aos 8 anos de idade, não suportou ouvir, sob a terra, o choro de sua irmã já sepultada. Num lance de inacreditável coragem e Humanidade, desenterrou Hakani, enfrentou toda a sua aldeia e disse, desconheço em qual língua:

- Ela é minha irmã e eu não deixarei que ela morra.

Rudá sabia que estava a assinar sua proscrição. Condenado ao ostracismo aos 8 anos foi banido de sua aldeia; e levando o bebê Hakani nos braços, foi obrigado a retirar-se de sua comunidade para viver sozinho, com uma lactente de saúde frágil na floresta amazônica, cheia de onças, sucuris, jibóias, cascavéis, sapos venenosos, milhares de mosquitos e muitos mais perigos que apenas posso imaginar.

Não se sabe como, Rudá conseguiu manter Hakani viva por 2 ou 3 anos. Completamente sozinho na floresta amazônica, sem nenhum auxílio, exposto às intempéries, à fome, à seca, às doenças, aos predadores. Quando Rudá percebeu que a saúde de sua irmã estava frágil demais para que ele pudesse cuidá-la, agora aos 10 ou 11 anos raciocinou que talvez os “brancos” pudessem fazer por ela o que estava além de seu alcance. Temendo a morte premente de sua amada irmã, Rudá procurou um grupo de missionários estrangeiros que estavam ali para catequizar aos silvícolas (desta vez na religião protestante, e não católica como os jesuítas, embora para os aborígines brasileiros não haja nenhuma diferença entre eles) e entregou-lhes Hakani, que ele temia estar à beira da morte.

Vi, pela televisão, a foto que esses missionários tiraram de Hakani ao recebê-la. Ela resumia-se a uma gigantesca barriga d’água. Emaciada, cadavérica, minúscula. Parecia grávida de seu parasita. E sua aparência era de quase morta, demonstrando que Rudá esperara até o último momento de desespero antes de separar-se dela. Após entregá-la, Rudá, saudável, foi reacolhido por sua comunidade, onde vive ainda hoje.

Hoje Hakani é uma cidadã americana. Foi adotada por uma família que mora no Hawaii e os médicos yankees descobriram que sua deficiência era o cretinismo, um distúrbio da tireóide contornável com medicação. E a menina que ainda bebê foi enterrada viva cresce e floresce, agradecida pela coragem de Rudá ao salvá-la, percebendo que o que todos os adultos circundantes ordenavam-lhe fazer não era Humano. Expondo sua própria vida ao perigo, enfrentando a todos que deviam dizer-lhe o que fazer, Rudá salvou a vida de sua irmã.

Como Rudá, índio que muitos rotulariam como “selvagem”, poderia ser portador de uma Humanidade muito mais exacerbada que a de Luís, o mimadinho menino de classe média, que nunca teria barriga d’água, malária, nem seria espreitado por uma onça? O que leva um indiozinho a ser gauche na vida e um Luisinho a tentar matar seu coleguinha de forma premeditada e com álibi programado?

Pq o “bárbaro” é civilizado e o “civilizado” é bárbaro?

Qual é a diferença que faz de Rudá um Humano e de Luís um mero homo sapiens sapiens?


Legião Urbana - Índios

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