sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Do medo, da FEBEM e do “cadeião”

Qual foi a situação mais periculosa de sua vida? Estar num carro com um motorista bêbado dirigindo perigosamente? Perder-se numa “quebrada”? Andar sozinho à noite no centro de São Paulo? Engolir seco diante de um policial mal-preparado?

Quando vc teve mais medo em sua vida? Indeciso diante da inscrição do vestibular? Perder o emprego e achar que não vai conseguir outro tão cedo? Ser assaltado e se ver sem dinheiro sequer para pegar um ônibus? Sendo “peitado” por uma pessoa que vc sabe que está disposta a te agredir fisicamente?

Nesta quarta-feira passei por uma situação incrivelmente periculosa e amedrontadora e surpreendentemente, o que senti não pode ser classificado como “medo”, mas como “receio”. Estava receosa de que algo poderia acontecer, e não com medo que alguma coisa estivesse prestes a acontecer.

Engraçado como o destino vai aos poucos nos encaminhando. Depois de formada, distribui alguns currículos, e como tenho licenciatura, me inscrevi para dar aulas no Estado. As aulas são escolhidas de acordo com um ranking de pontuação, por títulos e especializações, mas especialmente pelo tempo de trabalho na rede estadual. Minha pontuação? 0,000. Às vezes os números falam mais do que palavras.

Na escolha oficial das aulas “normais”, não sobrou nada pra mim... Resolvi ir a uma atribuição específica para a Fundação CASA (FEBEM) de Rio Claro, recém-inaugurada. Mais uma vez, não peguei aulas L . 2 semanas depois, já meio desanimada de não estar conseguindo nada, recebi uma ligação, me chamando para uma nova atribuição da FEBEM. Compareci eu e um outro professor, mais experiente, com maior pontuação. Ele era um cara musculoso, grandão, e logo que o vi tive certeza que escolheriam a ele. Como a FEBEM é “diferenciada”, fomos entrevistados. Surpreendentemente, me chamaram de volta e dispensaram o outro candidato. Me disseram que era pq eu já conhecia o material didático a ser utilizado, o método Encceja, com assinatura do Gabriel Chalita. Às vezes um só nome fala mais do que muitas palavras...

Eu conhecia mesmo, tenho uma cópia do material que veio às minhas mãos por acaso (?), quando no começo do segundo ano de faculdade houve uma grande distribuição gratuita de livros numa calourada. Levei pra casa a caixa pesada do material, que estava sobrando e ninguém mais queria. Isso me valeu meu atual emprego. J Depois soube que eu havia pegado as aulas da FEBEM depois de 3 desistências.

A primeira sala de aula que encarei assim que me formei foi uma turma de ensino médio com 12 “menores infratores” dentro da FEBEM. Assustador o suficiente pra vc? Vesti a personagem da “senhora Fernanda” (os alunos são obrigados a chamar a todas as funcionárias mulheres por “senhora”, não importa a idade) e fui adiante. Aos poucos aprendi as gírias, macetes e valores de quem vive na criminalidade, e passei a entender, e a deixar de temer para apenas recear seu mundo.

Quem trabalha numa detenção logo aprende que se vc não se impõe, não se “faz de macho”, não levanta a voz e coloca eles no seu lugar, eles “montam em cima de vc” e vc perde seu emprego. Vi umas 2 dezenas de funcionários serem demitidos pq “não tinham perfil” para trabalhar com esse “público”. E como “mente vazia é a oficina do demônio”, o mais divertido passatempo dos menores é testar e tentar “entrar na mente” dos funcionários, especialmente os que parecem mais frágeis, como uma menina magrinha (agora já não tanto) de 24 anos recém-formada. Que havia aprendido muito sobre Braudel, Caio Prado, Vygotsky e Rousseau, mas absolutamente nada sobre como dar uma aula.

No começo usei o Encceja, mas depois descobri que eu poderia ter total autonomia sobre o conteúdo a ser ensinado. Maravilha. Desenvolvi um conteúdo baseado em diversos livros didáticos e no que eu acho que realmente merece ser ensinado, descartando as discussões sobre remanescentes de quilombo pra quem nem sabe o que é a escravidão ou sobre a fundação de Roma pra quem não sabe o que a.C. e d.C. significam.

Agora voltamos ao “mote” deste texto. De alguma forma consegui me manter na FEBEM, agora já na quarta atribuição de aulas. Daí, surgiu um novo telefonema nesta terça-feira. Estavam me ligando do CRM, perguntando se eu estava disposta a dar aulas no período noturno. Claro! CRM? É alguma escola particular? Não, e conforme a funcionária muito simpática e aliviada por finalmente encontrar um professor foi me explicando, a sigla se referia ao “cadeião” de Rio Claro.

Topei. Chegar lá à noite sozinha numa estrada de terra no meio de uma “quebrada”? No primeiro dia, com medo de me perder, pedi pra minha avó ir me levar e depois me buscar. Entrei. Me deram a lista de chamada. 50 alunos. Engoli seco. A “sala de aula”? Um pátio, com um tapume de madeira no meio e duas lousas nas extremidades. Do lado do fundamental, com uma segunda professora, 70 presidiários. Do meu lado, no ensino médio, 50 presidiários. Tatuagens, cabeças brancas, uniformes em diferentes cores, dentes faltando. Duas mulheres num saguão com 120 presidiários? A distância do agente de segurança mais próximo? Dois portões gradeados de metal trancados e uns 150 metros. Assustador o suficiente pra vc? Para fins de comparação, na FEBEM cada professor fica em média com uns 12 alunos, e a uns 5 metros, sem portas trancadas, de pelos menos 3 agentes de segurança e dois agentes educacionais. São 4 salas de aula, totalizado em torno de 46 “internos”, com 4 professores. “Outro esquema”.

Blz, já aprendi a me “fazer de macho” e a falar alto esculachando “bandido” folgado (odeio isso e me sinto mal toda vez que o faço, mas é necessário). Logo no primeiro dia, a outra professora, novata no sistema carcerário, estava sendo desrespeitada pelos “alunos”. Como eu sabia que se ninguém fizesse nada aquilo adquiriria sempre maiores proporções, não tive dúvida, fui pro lado dela do tapume, pedi licença e fiz um discurso moralista pros alunos dela. 70 presidiários contra uma desconhecida “patricinha metida” curiosamente usando um jaleco de médico do hospital Albert Einstein (essa é outra história...)? Sem problemas, falei usando todos os chavões do “respeito”: “ela é uma senhora que está aqui fazendo um trabalho honesto”, “ela merece o mesmo respeito que as esposas e mães de vcs” e assim por diante. Quem tá preso adora dizer que não é bandido e tem altos valores morais, o que inclui respeitar quem é trabalhador, especialmente as mulheres, especialmente as senhoras com jeito de mãe, como a outra professora.

Para minha sorte, a maioria ficou quieta, alguns concordaram, e meus alunos até falaram “é isso mesmo!” e pude arrematar com um “Se não tiver respeito aqui dentro, ninguém vai poder dormir, pq não sabe se vai acordar.” Muito bom. Mas nada disso me prepararia pra o que ocorreu logo no segundo dia.

Nove e quinze da noite. Meio da aula. Todas as luzes de repente se apagam. Duas mulheres sozinhas num pátio com 120 presidiários, a 150 metros e duas portas trancadas de distância de um solitário agente de segurança? Breu completo, de repente se ouve alguns gritos, como os que ocorreriam em qualquer escola estadual com alunos arruaceiros. Cenário perfeito para uma rebelião com duas ótimas reféns para servir como moeda de troca. Assustador o suficiente pra vc? Nem tanto pra mim, que senti receio, mas não medo. No breu, rapidamente criei um plano: se eu me sentisse ameaçada, me esconderia atrás da lousa esperando que eles não cometessem nenhuma violência comigo e a outra professora. Senti um certo receio, mas não medo. O gerador começou a funcionar, dando um certo alívio. Todos continuavam sentados. Em alguns segundos, o gerador falhou, e um novo breu se apresentou, agora à meia-luz de alguns isqueiros.

O gerador voltou e o agente de segurança solitário veio e disse para encerrarmos as aulas e irmos embora, mandando os alunos para suas celas. Ufa! Saímos sem nenhum arranhão.

Depois descobri que a luz havia faltado em toda a cidade, e pela manhã de hoje pude fazer piada. Perguntava pra todo mundo: “Onde vc estava quando faltou luz?” Alguns, no banheiro, outros vendo a novela, alguns ao telefone. Pude dizer me gabando: “Eu e uma outra professora estávamos num pátio com 120 presidiários, a 150 metros e 2 portões trancados de distância de um solitário agente de segurança.

E eu não senti medo.

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