Se eu acho a revista ruim? Não, não acho. O que sempre me incomoda é a postura de quem dá a “moral da história” de seus editores. Sempre dão um jeito de encerrar as matérias com alguma empoada (e lastimável) frase de efeito. Até aí, tudo bem, a Veja está no seu direito de defender a direita classe média brasileira. Pelo menos nela não encontro embaraçosos erros de português, como no jornal local.
À página 76 desta edição 2074 encontramos a pergunta “Educação ou doutrinação?” ao lado de uma curiosa imagem que só poderia sair da cabeça de um editor de Veja: uma caneta vira uma foice e um lápis vira um martelo. Morri de rir. Como professora de História e Geografia, é comigo mesmo que eles estão falando.
Fizeram uma pesquisa: “Qual é a principal missão da escola?”
78% dos professores responderam “formar cidadãos”, o que é criticado ao longo da matéria. Curiosamente, não está entre as alternativas as opções que seriam as mais votadas pelos editores de Veja: “Formar balconistas.”, ou “Formar vendedores” ou “Formar auxiliares de serviço geral”. Em suma, formar a mão de obra barata que a direita classe média brasileira precisa para extrair-lhe a mais-valia. Podendo, assim, mandar seus filhos bem nascidos para as melhores escolas, numa cena que me lembra algo do filme “O sorriso de Monalisa” quando Julia Roberts é criticada por sua diretora por apresentar Pollock às futuras donas de casa da classe alta e outra professora é demitida por distribuir contraceptivos.
Cuidado: Jackson Pollock e contraceptivos poderão vir para destruir o seu mundo, assim como para os editores de Veja vieram Paulo Freire e Che Guevara. (Ah, só Veja poderia tb escrever em outra capa “A farsa de Che”). Quantos neurônios são necessários para decodificar a agenda destes editores? Os meus não são tantos assim, mas bem-lapidados por “ideologias furadas e fadadas ao fracasso” como Veja as decreta, eles são capazes de alguns interessantes raciocínios.
Ao longo de toda a matéria fica clara a mensagem: pais, cuidado, pelo que os professores estão incutindo na cabeça de seus alunos, eles se tornarão um bando de terroristas ludistas. Cuidado, pais empresários! Seus filhos vão arruinar seu patrimônio amealhado com tanta dificuldade. As futuras gerações serão contaminadas por uma ideologia ultrapassada e espúria [sic] e isso é demasiadamente perigoso pois as crianças não serão preparadas para o mundo do séc. XXI. Seria a virtual universalização da educação a própria responsável pela eleição de Lula? Afinal, há uma massa de cerca de 50 milhões de alunos do ensino básico sendo doutrinados por uma minoria de 2 milhões de professores, que poderão virtualmente causar a perpetuação da esquerda no poder, numa retroalimentação moto-perpétua.
Ai, até eu estou com medo agora. Quem sabe então acontecerá o que me foi dito em 1994, quando eu contava 11 anos numa escola de freiras, a respeito do que aconteceria se Lula se elegesse: “Toda família bem de vida vai ter que adotar uma criança de rua”. Pensei logo: “Eu não quero dividir meu quarto com nenhuma criança de rua.” Hehehe, então eu tb não quis que o Lula ganhasse e achei bom que o FHC vencesse, afinal, o real acabara de chegar à cantina da escola e a lata de coca-cola tinha sempre o mesmo preço. Maravilhoso!” Agora, sem o Lula, eu poderia continuar comprando a minha latinha de coca-cola e meu salgado no intervalo pelo mesmo preço. De meus 11 anos pra cá, eu evoluí. A mentalidade de alguns editores de Veja, aparentemente, não. Não que eu pretenda voltar a votar no PT, é claro.
Veja considera que o maior problema da educação é o currículo ultrapassado. Concordo. Os livros didáticos são maçantes. Os exercícios, intermináveis e inúteis. Há excesso de decoreba e de coisas que não servirão para absolutamente nada. Sinceramente, a escola como hoje ela se apresenta é um gigantesco desperdício de tempo. O que se faz em 12 anos poderia ser feito com muito melhor proveito em 5 anos. Eu mesma só não fui “pulada de ano”, como solicitei diversas vezes a meus responsáveis, por questões burocráticas. Se eu tivesse pulado da quinta série pro segundo ou mesmo terceiro colegial, não teria perdido muita coisa. Tudo que não aprendi em 12 anos de escola, assimilei sem muita dificuldade no cursinho pré-vestibular.
Defendo a diminuição do número de anos escolares? Não. Defendo que se ensine coisas úteis, e não que se tente fazer com que os alunos decorem intermináveis fórmulas de hidrocarbonetos, ou fórmulas físicas. O que era o Delta mesmo? Era de física ou de matemática? Sei lá eu! Algumas matérias simplesmente foram deletadas do meu hardware.
E o que eu estou fazendo pra mudar isso? Apesar de trabalhar com o público carcerário, principalmente na FEBEM lido com adolescentes em idade escolar. Selecionados entre os piores elementos de suas respectivas escolas, muitos há vários anos afastados das salas de aula, a maioria maciça com histórico de mau-comportamento, vandalismo ou mesmo agressão a professores. Aboli o único livro didático em quantidade disponível, o Encceja e fiz por conta própria um resumo do que era interessante em vários livros didáticos que ganhei (livro didático é como água, sempre vão te dar uma pilha dos que “estão sobrando” por falta de uso). Adicionei a isso aulas muito interessantes, como uma explicação das diferenças entre as religiões, orientação sobre os poderes do Estado brasileiros, os cargos eletivos e o que fazer para ter um voto consciente (coloco ambas as coisas no mesmo nível de neutralidade), tb ensino sobre os diversos documentos e a finalidade de cada um, sobre o que é o imposto de renda, enfim, uma certa “educação para a burocracia”, que embora essencial, não consta do currículo oficial. Pretendo ler em breve a Constituição para ensinar a eles as bases fundamentais das leis que nos regem. Para que eles saibam, afinal, pq estão presos e com que autoridade o Estado dispõe sobre as liberdades do cidadão.
Eu tento formar cidadãos. Cidadãos que saibam dos seus direitos e deveres essenciais. Que saibam que pagam com seus impostos os salários do políticos. Que saibam que atendimento de qualidade no posto de saúde da “quebrada” não é favor, mas dever do prefeito. E que este não pode interferir em questões de segurança, de âmbito estadual, como vejo a desinformação invadir minha televisão durante o horário eleitoral. Alunos que saibam que reclamar para o vizinho que a rua não foi asfaltada não adianta, mas que uma carta ao jornal local pode ser muito eficiente. Muito mais coisas úteis não são ensinadas aos nossos alunos, e deveriam. Eu estou aos poucos tentando fazer a minha parte.
Se a editora Abril deseja fazer realmente uma boa ação no sentido de melhorar a educação no Brasil, solicito que envie gratuitamente e em quantidade suficiente a cada escola pública assinaturas não apenas de Veja, mas tb da Superinteressante, Nova Escola e assim por diante. Que pare de se colocar em cima de um pedestal para criticar e passe a agir um pouquinho. Sempre levo revistas Veja para meus alunos lerem. Essa semana, levei a da “farsa do Che”. Como ele é uma das imagens mais emblemáticas do séc. XX, facilmente identificável, alguns que o conheciam apenas pela foto de Korda e pelo nome me perguntaram: “Professora, quem foi Che?”. A resposta curta: “Che foi um revolucionário socialista”. Neutra? Talvez não para Veja. A resposta semi-curta: “Ernesto Guevara, o ‘Che’, era um médico argentino que numa viagem pela América Latina ficou chocado com a miséria e exploração das pessoas pobres, aderiu à ideologia do socialismo, fez a Revolução Cubana e ao tentar fazer o mesmo na Bolívia, acabou derrotado e executado.” Eu poderia dizer muito mais, mas mais que isso estaria além do que meus alunos compreenderiam. Não há muito espaço para doutrinação em minha sala de aula.
“Fernanda, vc tenta implantar idéias subversivas nos seus alunos?”
Certa vez uma amiga que fez faculdade comigo perguntou isso. Respondi-lhe com certa propriedade: “Nem que eu quisesse conseguiria. Primeiro eu tenho que fazer com que eles não tenham vergonha de sua cor, que não achem que bater em mulher é normal, que saibam pq eles são obrigados a cada dois anos a comparecer diante de uma urna.”