domingo, 27 de maio de 2012

Porque nao uso decote

Ser mulher é uma forma bastante peculiar de ser humano. E muitas expectativas sociais cercam todo membro do gênero feminino, sem q sejamos avisadas a respeito. Enquanto crescemos, ser menina é uma forma menor de "ser princesa". E algumas acham q ser chamada por princesa resultará em serem tratadas como princesas ad aeternum, o q é ledo engano.

As mulheres só começaram a ter certa liberdade após a Revolução Sexual da década de 1960. Creio q sou a primeira geração de mulheres livres, em minha família. Por "mulher livre" compreendo: alguém q foi criada para ser independente, não "para casar e ter filhos", q foi criada pra ter "vida própria" sem depender de marido, q fez faculdade, q manda no próprio nariz, se sustenta sozinha, não é escravizada por gravidezes sucessivas, jamais apanhou de um homem.

Enquanto criança eu achava q isso me colocaria no mesmo "patamar social" dos homens meus contemporâneos. Mas só depois descobri q não. Independentemente de sua instrução ou estado civil as mulheres são julgadas sobretudo por sua aparência. E, ainda hj, divididas em 2 categorias: as "mulheres honestas", q merecem respeito, e as "vadias", q podem ser flagrantemente desrespeitadas.

O adjetivo "vadio" se aplicado a um homem designa alguém desocupado, q não trabalha. O adjetivo "vagabundo" se aplicado a um homem designa alguém q não trabalha nem está a procura disso. O adjetivo "puto" se aplicado a um homem designa q ele está nervoso, irritado com algo. Se um homem "faz biscate" isso designa q ele é um autônomo sem ocupação fixa. Se um homem é "rodado", isso designa q ele já viajou muito. Se um homem é um "cortesão" isso designa q ele faz parte da corte de um rei. Se um homem "faz favores" isso designa q ele ajuda aos outros, de bom grado. Se um homem "faz programa" isso designa q ele é programador de informática, ou analista de sistemas. Se um homem é um "faz tudo", isso designa q ele ocupa o cargo de "auxiliar de serviços gerais".

Adversamente, se aplicados a uma mulher, os adjetivos vadia, vagabunda, cortesã, puta, biscate, rodada, "de programa", q "faz favores" ou "faz tudo" imediatamente remetem à sua moral, ao seu comportamento sexual, e insinuam q a mulher em questão é uma prostituta. O nome disso é "machismo" ou "misoginia": ódio ou aversão às mulheres.

Quando eu era criança reparei num detalhe interessante: meninos podem, e devem, sentar com as pernas o mais abertas possível. Quanto mais abertas, maior é a declaração de q eles teriam um órgão sexual "avantajado", portanto, quanto mais um homem ou menino abre as pernas ao se sentar, tanto mais ele se torna "másculo", e se cruzar as pernas pensarão q ele é gay, ou tem um pênis acanhado. Para o menino, exibir ou insinuar q ele possui um órgão sexual é motivo de orgulho.

Meninas devem sentar com as pernas o mais fechadas possível, e se cruzadas, tanto melhor. Quantas vezes ouvi: "Menina, fecha essas pernas!" e não entendia o pq. Até perceber q a postura feminina seria demonstrativo de sua "disponibilidade sexual": mulheres de pernas abertas indicariam q estão acessíveis, são "putas", e mulheres de pernas fechadas dizem q são recatadas e "não 'dão' para qquer um". Para a menina, exibir ou insinuar q ela possui um órgão sexual é motivo de vergonha.

Quando nasce um bebê do sexo masculino, rapidamente o pai se regozija e anuncia a todos os amigos q "ele tem o saco preto, ou roxo" e todos ficam felizes e lhes dão os parabéns. Quando nasce um bebê do sexo feminino jamais um pai irá declarar q ela tem o "clitóris rosa" e se um amigo fizer qquer referência às partes íntimas da neném, isso será uma gigantesca ofensa. Todos preferem "esquecer" q a menina tb nasce com órgãos sexuais, ou considerar q tê-los é motivo de constrangimento, e não de orgulho.

Desde q aos 12 anos começaram a crescer dois tumores adiposos no meu tórax comecei, literalmente, a sentir o "peso" de ser mulher. Por mais atrativos q eles sejam aos homens, para as mulheres q os carregam, especialmente se sofrerem de gigantomastia, como é o meu caso, os seios são profundamente incômodos. Limitam os movimentos dos membros superiores, pesam na coluna, balançam, doem, incham, dificultam encontrar posição para dormir, atrapalham a prática de esportes.

Mas o pior de tudo: chamam muita, muita atenção, tal qual o rabo de um pavão. Isso eu percebi rapidamente. Q quando eu usava roupas justas e ia cumprimentar alguém do sexo oposto, o cara olhava pra meu rosto, olhava pros seus seios, olhava pro meu rosto, olhava pros meus seios, até decidir q preferia conversar com os meus seios a conversar comigo. Quantas vezes, muito constrangida, tive "conversas sociais" desagradabilíssimas com homens q não olhavam para o meu rosto enquanto eu falava, mas para meus peitos. E q eu era tanto melhor tratada pelos homens quanto mais de seus seios eu expusesse, e se eles não fossem expostos ou insinuados eu era muito mais facilmente ignorada e descartada como alguém "interessante".

Percebi q os homens me julgavam pelo tamanho dos meus seios, a profundidade da minha clivagem, o fato de estar maquiada e de salto alto ou não. E q caso me considerassem, pela minha aparência, uma "parceira sexual viável" eu era bem tratada. Em caso negativo, eu era ignorada. Se eu não lhes era interessante sexualmente, eles não tinham nenhum outro interesse em mim.

Do meu ponto de vista, nunca fui pudica em relação a roupas, sempre procurei me vestir de maneira "normal", mas já fui alvo de diversos comentários jocosos a respeito do meu trajar. Em diferentes ambientes já me perguntaram pq "não me arrumo", pq me visto "como se fosse crente", pq não uso maquiagem nem faço escova no dia-a-dia, e um aluno até chegou a dizer q me visto "como uma mendiga", em contraste com as outras professoras mais "arrumadinhas"... E várias pessoas já vieram, com a melhor das intenções, me aconselhar q eu deveria ser mais vaidosa dizendo: "ah, se vc soltar o cabelo, trocar os óculos por lente de contato e passar um rímel, vai ficar muito bonita". Como se toda mulher tivesse "obrigação" de ser, ou ao menos tentar ficar, bonita.

Eu não "me arrumo" no meu dia-a-dia, especialmente no trabalho pq não quero passar a "mensagem errada" de q eu seria uma parceira sexual viável aos meus colegas de trabalho e alunos. Faço questão de usar avental ao dar aulas por já ter percebido q quando não o uso o tamanho dos meus seios e o formato dos meus glúteos sempre viram o "assunto do momento". Sem o guarda-pó os alunos me vêem como "mulher". Com o guarda-pó os alunos me vêem como "professora" e eu neutralizo 95% das insinuações sexuais a meu respeito em sala de aula.

Eu não me visto "como se fosse crente", apenas de forma "normal" sem ressaltar meus atributos físicos. Até uso maquiagem e faço escova, em ocasiões extra especiais, não em meu cotidiano. Não me visto como mendiga, apenas compro roupas em lojas de departamentos, e não em butiques. Não solto o cabelo pois ele incomoda e esquenta o cangote. Não uso lentes de contato pois gosto da mensagem de prezo pelo intelectualidade q os óculos auferem aos q os ostentam.

No fundo, tudo isso é meu "disfarce de mulher honesta", não pq eu não seja isso, mas pq sei q vestir-me de outra forma seria uma declaração sobre meu comportamento sexual e minha "disponibilidade" a todos os homens em redor. Eu gostaria de poder me vestir de outra forma, porém não quero me submeter ao desrespeito q seria resultado disso, pois mesmo me vestindo de forma conservadora, frequentemente sou vítima de desrespeito pelo simples fato de ser mulher.

Sou uma mulher relativamente jovem e relativamente magra num ambiente de trabalho cheio de mulheres relativamente "mais velhas" e "mais gordas" do q eu. Esse simples fato resulta em ver-me alvo de insinuações e convites de cunho sexual por meus colegas de trabalho, muitos deles casados, sem q eu dê nenhuma "abertura" para isso. Mesmo me esforçando ao máximo para desconstruir qquer imagem sexualizada, ainda assim, pelo simples fato de ser mulher, jovem, magra e solteira, os homens acham q têm o direito ou a liberdade de me abordar com convites escusos. Independentemente do seu estado civil. Ser mulher, e ter seios, é quase um passe livre para q ou outros me faltem ao respeito.

Não uso decote justamente pq os homens q se atraem por mim pelos meus atributos físicos não me interessam. Quero um homem q esteja comigo por mim, não pelo formato do meu corpo. Quero alguém q me respeite, q não me veja como um objeto ou um pedaço de carne. Procuro alguém q veja a Fernanda escondida atrás dos óculos, q me ache bonita com a cara lavada, gorda ou magra, com celulite, sem Wonderbra, com o cabelo ao natural.

Minha sensualidade não é para qualquer um, por isso não a exibo para todos. Não estou a procura de "parceiros sexuais", estou a procura de um "parceiro para a vida", q não deixe de ter atração por mim baseado na circunferência da minha cintura, no ângulo descrito por meus seios ou nas rugas em meu rosto.

Gostaria de poder andar livremente pela rua sem camisa, como fazem os homens. Quando um homem tira a camisa é pq está com calor. Se uma mulher tira a blusa, ou é imediatamente estuprada ou presa por "atentado violento ao pudor". A simples exposição do corpo feminino é um "atentado à moral e aos bons costumes", ou um oferecimento de favores sexuais, mesmo q involuntários, a qquer homem q a veja assim.

É justamente nessa ferida q a slutwalk, "marcha das putas" ou "marcha das vadias" toca. Objetiva quebrar o preconceito de q a mulher deve ser julgada pela quantidade de pele q expõe, pelo comprimento da sua saia, pela profundidade do seu decote. Levanta a bandeira de q a mulher pode, e deve, se vestir como bem entende, e q seu trajar jamais deve ser considerado um "convite" ao desrespeito e à violência. Nestas passeatas as manifestantes "se vestem como prostitutas" para escancarar q não existe isso de "se vestir como uma prostituta": q toda mulher é dona do seu corpo e tem o direito de exibi-lo, se quiser, sem ser mal-julgada por isso. Com muita alegria, se um dia tiver a oportunidade, me vestirei "como puta" para participar da marcha das vadias, para quem sabe um dia poder usar um decote sem ser imediatamente considerada uma "mulher fácil".

Respondendo ao mote do texto numa frase: não uso decote pq não posso. Pois se usar, os homens ao redor nisso lêem uma declaração de disponibilidade, e me julgam moralmente "dissoluta" por conta da falta de 4 centímetros de tecido ou um botão entreaberto. Não uso decote pq não estou interessada em atrair homens q procuram mulheres baseados em sua aparente sensualidade. Não uso decote pois quero ser considerada uma "pessoa séria" e, pelo menos para os homens, "mulheres sérias" não usam decote.

Por favor, me julguem pela minha inteligência, pela minha personalidade, pelas coisas q gosto e os assuntos sobre os quais falo, não pelo meu soutien 46, meu jeans 38 ou a altura do salto dos meus sapatos! Me julguem como "pessoa", não como um "pedaço de carne".


Recomendo o filme "Erin Brockovich".

4 comentários:

  1. Oi Fernanda, gostei de seu texto, e acho que tem uns adendos a ele.

    Primeiro, considero o simples fato de ser bonito no padrão ou fora dele algo desnecessário. Porém, é bastante óbvio que o primeiro contato de um casal será o sexual (não que transem na primeira noite, mas para o cérebro masculino, o visual é essencial para selecionar sua parceira).

    Segundo, e isso vê-se mais no nordeste que no sudeste, há uma maior variedade de preferências estéticas, tanto por parte de homens quanto por parte de mulheres, e todas independentes da mídia. Aqui, temos desde o meu irmão (que gosta de mulheres cheinhas e forrozeiras) e eu (mais afeiçoado às magras intelectualizadas), só para citar dois exemplos masculinos.

    Isso porque nossa cultura só nos ensina a ser "machos", e não a ser criteriosos. Apesar de haver uma certa repressão quanto à sexualidade, confesso que nunca sofri pressão de ninguém quanto à aparência da mulher com quem eu saio.

    Obviamente há situações em que tanto a mulher quanto o homem são passíveis de sofrer "cantadas" no trabalho, ao qual deve-se tomar cuidado. Quando dou aulas, faço as mesmas coisas que você (inclusive, só faço a barba nos fins de semana), e até mesmo evito expor demais a minha vida (aqui, no caso dos homens, não exponho demais meu "ego de macho").

    Na escola, portanto, o segredo para evitar problemas é anular o professor enquanto entidade biológica diante da sala, e reduzi-lo a uma função. Isso, com certeza, elimina muitos problemas relacionados a assédio no trabalho. Agora, lembremos que escola e balada são dois universos diferentes. Na balada, vai-se em busca de um parceiro, e a exposição é justificada inclusive biologicamente (ou seja, somos biologicamente impelidos a expor o que nossos genes pedem para expormos, que é a "atitude de macho" para os machos, e o corpo, para as mulheres).

    Antes eu achava que expor "atitudes de macho" não era importante, que se uma mulher me quisesse, que fosse pela minha intelectualidade. Foi um engano: as mulheres querem "atitudes de macho", e se quero que alguma delas me admire pelo que sei e pelo que faço, infelizmente (ou felizmente, visto ser de nossa natureza mesmo) terei de demonstrar as tais "atitudes de macho".

    Espero ter contribuído. Isso vai acabar virando postagem no meu blogue, rsrs.

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    1. Muito interessante, Félix. Realmente, no Nordeste o machismo ainda deve ser mais praticado do q no Sudeste. Seu texto com certeza será muito interessante. Me avise quando escrever. :)

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  2. Cheguei no seu artigo a partir daqui: http://arthur.bio.br/2012/05/25/comportamento/a-culpa-e-da-minissaia-em-parte-e#.UBbovCLaKSo .
    Achei ambos muito elucidatórios. Gostei bastante da descrição da sua experiência pessoal e acho que estas fazendo certo em agir da maneira que voce descreveu e no meio em que voce se encontra, para por fim, ter a experiencia que voce deseja.
    Essa historia de passar "uma mensagem" é muito verdade. Eu vivencio isso todos os dias ouvindo e participando dos mais diversos comentarios "improprios" que circulam em meu ambiente de trabalho sobre as mulheres que aparecem ali, ou ate mesmo em fotos na internet.
    Posso dizer com certeza que em todos os ambientes q ja trabalhei ou convivi foi sempre a mesma coisa.
    Quanto a experiencia do falar com uma mulher, olhando para seus dois atributos, posso dizer que ja participei de uma conversa destas. Eu tentei evitar mas algumas vezes nao consegui e acabei olhando para onde nao devia, ou devia? Talvez o decote tenha um motivo de existir, e acho q ele foi criado para ser sensual, pois na maioria dos casos é o que acaba acontecendo.
    Quanto ao uso diferente para as palavras, eu interpreto todas elas da maneira com que vc descreveu e nao me considero odiador de mulheres, desrespeitador ou machista ou que eu tenha aversao. Muito pelo contrario. Conheço muitas mulheres e gosto muito delas. Talvez haja um motivo historico para isso, mas nao creio q tentar mudar a maneira com que se usam aquelas palavras va ajudar em alguma coisa.
    Quanto as pessoas que sugeriram que vc fosse mais vaidosa, creio q a maioria tenha sido mulher. Daí nao me compete comentar, pois sobre o universo competitivo feminino eu nao tenho muito dominio. Ja ouvi falar que mulher se veste para impressionar outras mulheres ou a si mesma, mas muitas delas esquecem da historia da "mensagem" e acabam se sensualizando demais aos olhos dos homens.
    Acho q nao adianta "pedir" ou lutar para que te julguem de um jeito ou de outro. As pessoas julgam da maneira com que estao acostumadas a julgar, independente da vontade alheia e com grande influencia de seus instintos e hormonios. Se voce quiser ser vista pelo que é e nao pelo que aparenta nao tem jeito: a sua sorte (que vai ditar quais "tipos" de homens aparecerao ao teu redor) e o tempo (que vai te revelar das mais diversas maneiras) que dirão. Claro, passar mais tempo em lugares, e/ou com pessoas que favoreçam a tua sorte contribuem muito!

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