sábado, 3 de setembro de 2011

De como aprendi a ser assertiva. Ou do Psitacismo

“Assertividade” é uma qualidade rara e preciosa. No dicionário escolar, assertivo/a é aquilo referente à uma afirmação. Não somente. “Assertiva” é uma afirmação além da própria afirmação. É uma sentença que em si traz segurança e certeza. “Assertividade” não se refere ao conteúdo do que foi dito, mas à atitude de quem o disse, de não deixar margens para dúvidas.

Cedo na vida percebi que a receptividade dos ouvintes àquilo que dizemos é diretamente proporcional à empáfia com que o afirmamos. Se dissermos uma grande verdade em voz frouxa e reticente ninguém dará muito crédito. Já se dissermos o maior absurdo arrogando-nos ares de suma autoridade, recolheremos dos ouvintes olhares de admiração e expressões de reflexão profunda sobre a grande sentença proferida.

Mesmo que seja uma piada, se vc disser com postura intelectualóide e vocabulário psitáico*, te levarão a sério e alguns ainda farão comentários filosóficos a respeito enquanto fazem “cara de conteúdo.” :)

Como sempre quis ser levada a sério, estudar a fundo todos os assuntos de forma a pronunciar opiniões embasadas sempre foi uma preocupação minha, mesmo antes de conhecer o significado do verbo “embasar”. Ser criança, e portanto ter suas opiniões descartadas e alvo de riso, sempre me foi desconcertante. Cedo percebi que não me levavam a sério pelo fato de eu ser criança e, sendo criança, saber pouco sobre as coisas. Como eu não podia apressar meu envelhecimento, ao menos podia me dedicar a adquirir conhecimentos enciclopédicos sobre as coisas, de forma a adquirir mais respeito frente aos “adultos” e colegas. Já na adolescência percebi-me a “assessora para assuntos aleatórios” da turma. E ainda sou do tipo de pessoas que saca da manga informações curiosas que ilustram e trazem certa picância às conversas das quais participo.

Porém saber as informações é apenas meio passo para “impressionar” aos outros. A outra metade é ter a postura certa ao enunciar as informações: isso é “assertividade”. Isso eu não tinha: a forma. Aprendi a adquiri-la a partir do episódio infantil abaixo relatado.

Uma das poucas coisas boas que Regina fez por mim foi me levar repetidas vezes em férias a Campos do Jordão. E uma das piores foi impingir-me, inclusive nessa circunstância, a presença de seu ex-marido, JR. Numa dessas situações, como eu não queria ficar com ela e, por consequência, ser obrigada a partilhar da presença de seu ex-marido, eu estava em Campos do Jordão à procura do que fazer, já que estar com minha mãe, devido à companhia assessória, não era agradável.

O hotel da AFPESP – Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo em Campos do Jordão é, ou pelo menos era, maravilhoso. Além de amplo e confortável, contava com muitas instalações sociais, um bosque incrível, salas de TV, de chá, jardins e salões de jogos em várias modalidades. Um dos salões do subsolo contava com tabuleiros de vários tipos, inclusive xadrez.

Fugindo à presença desagradabilíssima daquele que Regina escolheu para a inseminar, eu estava neste salão a jogar xadrez sozinha. Como se tal fosse possível... Mas era mais agradável que estar com “minha mãe”...

Eu tinha cerca de 11 anos, mas já me achava a “suma enxadrista”, mesmo só sabendo mover as peças, pois já ganhara de muitos adultos com meu parco conhecimento. Eu já era então, como me soe, “cheia de mim”, cega por minha própria arrogância forjada como armadura diante da difícil realidade que enfrentava. Que enfrento. Mas pelo menos à qual não me furto. E tento refletir sobre.

Um senhor de cabelos brancos, também hóspede do hotel deve ter achado curiosa a cena de uma criança jogando xadrez consigo mesma. Se aproximou e perguntou:

- Quer jogar?

Apreciei seu sorriso e topei. Ele se sentou e juntos rearranjamos as peças. Ele me deu o benefício das brancas que iniciam o jogo. Joguei como costumava, as jogadas que eu já conhecia, que sempre haviam resultado em vitória, mesmo contra adultos. Dessa vez não estava dando certo. Meu oponente fazia lances inesperados, desafiando a dinâmica à qual eu estava acostumada, do jogar xadrez com pessoas que não tinham a menor idéia do que estavam fazendo. Percebendo minha surpresa, ele me disse:

- Eu sou professor de Matemática e ensino xadrez aos meus alunos.

Arrematou a frase com um sorriso maroto de Curupira. Meu cérebro fez “Ôpa! Agora a questão está num outro patamar. Agora ficou difícil, a coisa é séria.” Não costumo ser competitiva por certo sentimento construído ao longo de minha experiência escolar de “não chutar cachorro morto”, “ficar na moita”, “ser discreta” ou não atrair desnecessariamente a inveja dos demais. Por isso fui aprendendo a nem sempre expor publicamente meus conhecimentos, pois isso pode atrair sentimentos de inveja dos demais, se estes se sentirem diminuídos ou ameaçados por uma concorrência que, se não podem combater diretamente, poderão sabotar “na surdina”, “por debaixo dos panos”, insidiosamente, “pelas costas”.

[Um desdobramento disso é que, atualmente, quando um colega de trabalho me pergunta “onde eu fiz faculdade” respondo genericamente: “em São Paulo”. Normalmente isso é suficiente para dar cabo à curiosidade. Antes eu respondia orgulhosamente “na USP”; recolhia um imediato olhar de desconcerto e ganhava um inimigo para o resto do ano. Aprendi que declarar-me formada “na USP” humilhava aos demais. Portanto, mesmo tendo orgulho de minha formação, não a saio anunciando por aí, pois isso atrai, socialmente, mais inveja do que admiração.]

Resolvi jogar xadrez “a sério”, desafiando-me em movimentos nunca antes tentados. Eu estava indecisa, refletia sobre os vários desdobramentos de cada jogada, e as variadas reações possíveis de meu oponente, que, afinal “sabia jogar xadrez”. A cada etapa o jogo ia ficando mais espinhoso, e crescia o grau de dificuldade das decisões. A certa altura, enquanto eu refletia absorta brandindo meu indicador sobre o tabuleiro, processando qual seria a peça que eu iria mover, meu oponente disse:

- Fernanda, posso te ensinar uma coisa muito útil? Quando vc fica dançando seu dedo sobre o tabuleiro a esmo, vc demonstra ao seu oponente que está indecisa, não sabe qual peça irá jogar e portanto não tem um “plano”, uma visão global de como o jogo irá caminhar. Mesmo que isso seja verdade, e vc esteja perdida, na hora do jogo vc precisa fingir que está um passo a frente do seu adversário. Se vc fizer lances decididos, impetuosos, olhar no olho do seu adversário, ele vai ficar com medo de vc e achar que vc sabe mais do que de fato sabe.

Ele me disse que mais importante que saber jogar xadrez era aparentar saber jogar xadrez. Eu não percebi, mas ele estava me ensinando a “trucar”, a “blefar”, e dando uma das mais valiosas lições que todos precisamos aprender na vida: a importância de saber fazer uma poker face. Naquele momento, como eu era criança, achei que a lição só aplicava aos jogos. Depois aprendi que a vida é um grande jogo no qual quem é amador nem se dá conta de quais são as regras. E quem se profissionaliza aprende aos poucos as delicadas regras das interações sociais, como devemos nos pronunciar e nos posicionar no mundo. E como muitas vezes é mais valiosa a aparência do que a essência.

Aprendi a partir disso que as palavras e gestos podem ser usadas como armas, e que podem ferir mais do que socos e punhaladas. A ferida de uma facada cicatriza. O trauma da lembrança, nunca. Ou eventualmente, quando refletimos profundamente a respeito.

* "Psitáico” é referente ao papagaio e demais aves da família dos psitacídeos. Essas aves distinguem-se por sua penugem colorida vibrante chamativa, seu bico forte capaz de arrancar falanges humanas, e sua capacidade ímpar de vocalização que simula e reproduz a voz humana. Uma linguagem psitáica/de papagaio é aquela vistosa, colorida, forte, rebuscada, cheia de palavras elaboradas, com "ismos" e "logias", proparoxítonas até! Uma fala carregada de psitacismo seria popularmente chamada de “falar difícil”, usar a “linguagem dos bacharéis”, pronunciar-se conforme o léxico ancestral erudito do português. Nesta que é uma das línguas mais difíceis de dominar em seus variados tempos, plurais pessoas e diferentes radiciações; dominar a “norma culta” do português e ser capaz de “falar difícil” sem se enrolar nas concordâncias é, em si, um feito admirado pelos demais. E uma habilidade que muito cedo me empenhei em adquirir.

Uma “frase psitacídea” é portanto uma asserção enunciada por um papagaio: segura, em voz alta, com palavras bonitas, bem articuladas, difíceis, e... sem nenhum conteúdo. Curioso perceber que o papagaio é assertivo pois não tem nenhuma dúvida, nenhum segundo pensamento, sobre aquilo que diz. Pelo simples fato de que é incapaz de refletir sobre o conteúdo daquilo que enuncia.


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"Searching for Bobby Fischer"

"Little man Tate"


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