sábado, 2 de abril de 2011

De como processo meus pensamentos

Pensamentos e sentimentos nem sempre são expressos por palavras. E muitas vezes é difícil traduzir ao vernáculo coisas que se intui, infere, teme, sente ou pressente. Não sei se todos, mas ao menos as mulheres, naturalmente multi-tasking podem não apenas fazer como pensar em várias coisas ao mesmo tempo, em plurais códigos ou linguagens.

Nesse exato instante, enquanto escrevo este texto, realizo múltiplas outras atividades: assisto TV, navego na Internet, fumo meu cigarro e bebo meu refrigerante, enquanto tento conciliar o movimento do meu diafragma, das minhas mãos e a postura de minha coluna. Estes são apenas meus processos conscientes, como os que apareceriam listados se eu desse apenas um (1) Control+Alt+Del no meu sistema. Porém, além desses, passam-se simultaneamente inúmeros outros algoritmos, sobre os quais, talvez, eu não tenha nenhum controle ou mesmo consciência. A psique humana é partida em diferentes níveis, e muitas vezes nossas ações são condicionadas por pensamentos que nem sabemos que pensamos. Mas que estão, ágrafos, nas profundezas, condicionando e determinando nossas ações.

A grande questão dos pedagogos é compreender como a apreensão dos conceitos é processada pelo cérebro infantil. O pedagogo mais incensado na pedagogia brasileira na verdade era um biólogo, Jean Piaget. Que aplicou extensivamente seu método em seu filho, cujo final da vida, aliás, foi o suicídio. Grande sucesso! :P

Bom, a respeito disso seguem-se três curiosidades particulares sobre como fui desperta para estas questões “abstratas” do como se dá o processamento cerebral, diferentemente em cada ser humano..

1 – Certa vez, contava eu 9 ou 10 anos. Estava eu no quarto detrás da pensão da Dona Rosa, à rua João Migliari número 13, Tatuapé, quando Regina, em meio a uma conversa, das poucas boas que empreendemos, perguntou-me:

- Quais são os seus planos para o futuro?

Emborquei meu crânio à esquerda 37 graus, como faria um ciborgue de Blade Runner diante de um paradoxo não previsto por seu logaritmo e repliquei reticentemente:

- Como assim: “futuro”?...

Até conhecia a palavra, abstratamente. Não sabia que o “futuro” poderia ser algo palpável, manipulável, planejável. Respondeu-me:

- Ah, aquilo que está por vir. Vc não pensa a respeito de como vc quer estar daqui a 10, 20 anos? As coisas que vc quer fazer, estudar, sua profissão, essas coisas...?

Não lembro-me o quê respondi-lhe, provavelmente que queria ser astronauta ou veterinária, como fazem todas as crianças. Mas lembro-me até hoje como para mim até este momento a realidade era um “eterno presente” ao qual eu simplesmente assistia o desdobramento. A partir de então, ganhei uma nova perspectiva: eu não estava determinada a ser apenas uma espectadora passiva do transcorrer de minha vida, mas eu poderia ter, conscientemente, positivamente, pró-ativamente, por vontade ponderada, alguma influência determinante nos acontecimentos do porvir. Descobri que eu poderia “arquitetar” algum tipo de futuro. Que eu poderia, tal qual um analista de sistemas, reeditar o logaritmo que rege o programa do rumo de minha vida. E que, a depender do que eu fizesse, ela poderia “nunca mais” ser a mesma. A partir de então passei a “pensar” bastante a respeito do meu “futuro”, coisa que não fazia até então.

2 – Doutra vez, contava eu entre 11 e 12 anos, pois tal episódio desenrolou-se na quadra de esportes do Colégio Nossa Senhora do Sagrado Coração, na Vila Formosa, São Paulo, capital. O Colégio de freiras, anexo ao convento. Não o Externato, então anexo ao Seminário. Estava eu sentada na arquibancada da quadra quando um colega de sala, na tentativa de flertar comigo, disse em meio a uma conversa:

- Peraí que eu vou adivinhar no quê vc está pensando.

Eu não estava pensando em absolutamente nada, e como ele começou a fazer alguns gestos pretensamente mágicos, colocando 3 dedos na minha testa como se estivesse a sugar meus pensamentos, lembrei-me do famoso mágico Houdini, pois recentemente assistira, na TV a cabo, a um especial sobre ele. Cogitei que se meu pretendente de fato tivesse “poderes sobrenaturais” descrever-me-ia uma cena pictórica. Depois de algum jogo de cena, o garoto concluiu:

- Vc pensou: “Será que ele descobriu que eu gosto dele?”

Encerrou a frase com uma piscadela. Ri e retruquei:

- Mas não é assim que se pensa!

- Claro que é assim. Quando pensamos ficam “dançando frases” na nossa cabeça. Eu capturei a sua.

Estranhei. Não era assim que eu pensava, em frases. Meu pensamento não se processava por palavras, mas por imagens e coordenadas. Ainda hoje, quando me lembro de algo, a primeira coisa que espoca é o cenário, e sua localização geográfica, para posteriormente ganharem ânimo as cenas pictóricas, para apenas numa fase final isso ser traduzido no código alfabético em vernáculo português brasileiro. Estranhei tal qual um replicante diante de um processo cujo noves fora não dá zero que a forma do pensamento do meu colega fosse diferente da minha, e perguntei-me se havia algo de errado comigo e meus pensamentos.

Nesse episódio dei-me conta de que os pensamentos humanos, para além do evocar coordenadas geográficas, sensações, cheiros, cenas e imagens instantâneas, poderiam ser traduzidos ao código explícito da linguagem. E, sob esta forma, transcritos e/ou narráveis.

3 - Algumas pessoas, naturalmente, nascem com deficiências, ou incapacidades de processamento incontornáveis. Para exemplificar, segue a observação sobre nossa “bússola” natural. Tenho uma altamente desenvolvida “inteligência espacial”. Id est: não me perco. Tenho um senso de direção muito bom. Para que deem algum crédito ao que narro, segue um relato que surpreende até a mim.

Uma de minhas lembranças mais antigas é da impressionante altura dos muros da chácara Elizabeth, a 50 metros de onde estou sentada agora. Contava eu 3 anos de idade. Lembro-me de estar deitada no banco detrás de um Fusca bege, vinda de São Paulo. Pus-me de pé no banco para olhar pela janela e vi, através do vidro, o pé de unha de gato a recobrir o muro impressionante, altíssimo. Regina estacionou seu Fusca na sarjeta da casa onde estou agora, cuja frente era então muito diferente, ajardinada.

Era sábado ou domingo. A casa estava fechada. Não havia ninguém. Regina viera de São Paulo, trazendo-me na garupa, para a casa de seus pais, onde residiam suas duas filhas mais velhas, de sopetão, sem avisar. E não era feliz o motivo da “surpresa”.

Vendo-se diante da casa trancada, algo desesperou-se e perguntou-se o que faria. Onde passaria a noite? Teriam eles deixado a chave da casa com alguém? Com certeza, dado que meu avô era um homem muitíssimo precavido. Com quem? Talvez com seu companheiro de caserna, Coronel Orlando Tomasella. Talvez com seu pai, seu Luís. Ou seu irmão, Hélio Israel, que creio que a esta altura já namorasse sua “irmã” de criação Maria José. Porém, Regina não sabia chegar à casa do “Lando” ou de seu Luís. Não sei de que forma, expliquei-lhe que eu sabia onde era a casa de seu Luís. E guiei-a, não sei se a pé ou de carro, até lá, onde com sucesso obtivemos as chaves da casa de meu avô. Aos meus 3 anos de idade minha bússola já era melhor que a de Regina.

Ela não foi a única pessoa que conheci possuidora de uma “bússola quebrada”. Minha amiga filósofa Rafaela Barros Bordignon igualmente, observei, apesar de ser uma pessoa inteligentíssima em outros quesitos, é capaz de perder-se até num tabuleiro de xadrez. O uso desta imagem não é arbitrário.

Famoso é o ensaio de Sérgio Buarque de Holanda “O semeador e o ladrilhador”, no qual tangencia as diferenças entre a colonização castelhana e a portuguesa na América a respeito do planejamento urbanístico, ou sua ausência. Explicita o caráter precário, provisório, acochambrado, gambiarrado, temporário, visando apenas um eterno presente, que os portugueses deram às feições de suas vilas coloniais americanas. Não realizavam nenhum tipo de planejamento urbanístico, e suas cidades apresentavam uma disposição orgânica, sinuosa, arredia, enigmática e sibilante.

Na América espanhola o paradigma foi outro. As vilas foram ladrilhadas, planejadas, urbanizadas, desenhadas de forma racional e geométrica, descrevendo tabuleiros de xadrez, se a cidade fosse vista de cima.

Raras são as cidades brasileiras planejadas. Rio Claro é uma delas. É difícil confessar, mas sinto-me muito bem, e profundamente confortável em Rio Claro não apenas por ela guardar boas reminiscências familiares, mas para além e independentemente disso, por ela ser um cidade algo mais racional e compreensível que a tresloucada megalópole que é São Paulo, capital de meu estado pátrio, ou mátrio.

O mapa de Rio Claro descreve um tabuleiro de xadrez, com coordenadas facilmente apreensíveis. Suas ruas não têm nomes, mas números, que seguem uma lógica estudada. No eixo norte-sul correm avenidas, independentemente de seu calado ou tráfego. No eixo leste-oeste correm ruas, independentemente de seu calado ou tráfego. A partir da estação ferroviária, traçam-se, paralelas e retilíneas, a cada 100 metros, as ruas 1, 2, 3, 4, sucessivamente. À direita da estação ferroviária numeram-se as avenidas pares: 2, 4, 6, sucessivamente. À esquerda da estação ferroviária, numeram-se as avenidas ímpares: 1, 3, 5, 7, sucessivamente.

Da posse das simples instruções acima alguém possuidor de bom senso geográfico consegue rapidamente localizar qualquer endereço que lhe for dado na área urbanizada (existente até a década de 1980) em Rio Claro, e com facilidade chegará a qquer endereço explicado como: “Moro na rua 5, entre as avenidas 11 e 13”. Coordenadas exatas, que prescindem de qquer outra indicação.

Quando eu mesma preciso meu endereço, digo: “Moro na rua 11 BNH, entre a av. 40 e 42. A rua 11 BNH fica entre as ruas 11 e 12, perto da rotatória da (rua) 14 com a (avenida) 40. E alguém habituado com Rio Claro imediatamente saberá onde eu moro.

Não quem nasceu com a “bússola quebrada” e é capaz até de perder o próprio carro no estacionamento do supermercado...

Não pensem que sou altamente funcional em variados quesitos. Uma incapacidade ou deficiência expressa que carrego como handicap é minha dificuldade no processamento de contas e equações matemáticas. Sou uma analfabeta matemática e qualquer cálculo além das simples 4 operações básicas que dominei já aos 7 anos é-me sobrehumanamente difícil.

Peçam-me para decifrar hieróglifos sem a pedra de Roseta ou analisar a um filme de David Lynch sem tomar LSD e eu farei boa figura. Produzirei, no mínimo, um embromation razoável.

Peçam-me para calcular um Delta ou um simples X e exibirei, vexatoriamente, minha total burrice em processar dados exatos, precisos, matemáticos. Não consigo compreender até hoje de que forma letras e números, algarismos indo-arábicos, podem se misturar...

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