sábado, 8 de junho de 2013

Meu primeiro amor

Era 1993. Eu tinha 10 anos e morava na pensão de Dona Rosa Ross, à rua João Migliari, número 13, Tatuapé. Cursava a quarta série do Ensino Fundamental na E.E. Jackson de Figueiredo.

Nesta mesma escola estudava, na série seguinte, o menino que foi minha primeira paixão. Seu nome era Francisco. Era um menino loiro com brilhantes olhos verdes, que não me dava nenhuma atenção especial. Além de vê-lo na escola, tb éramos amigos de vizinhança, com dezenas de coleguinhas em comum.

Nos encontrávamos nas mesmas festinhas de garagem. Éramos convidados às mesmas sessões de videogame e fliperama. Foi com ele que pela primeira vez joguei "Street Fighter" e também foi com ele que dancei minha primeira música lenta em uma festinha pré-adolescente. Daquelas dancinhas em que se seguram as mãos, e se aproximam as faces, mas sem se tocar, timidamente.

Muitos foram os aniversários, amigos secretos, brincadeiras de pique-esconde, passa anel, e beijo abraço ou aperto de mão que compartilhamos. E eu sempre suspirava escondida por seus belos olhos, muito temerosa de que ele descobrisse que eu estava "gamadinha" por ele e isso fosse usado para me zoar, o que muito me magoaria. Pelo temor de revelar meus sentimentos e ser rechaçada, preterida, e também por ser muito jovem e nem saber ao certo o que sentia, que nunca "me declarei" para ele, jamais lhe revelei meu interesse romântico. Eu o achava "muito gato" e era enorme meu medo que ele me achasse feia, e se eu revelasse minha paixão, dissesse: "vc não é BONITA O SUFICIENTE para eu me interessar por vc".

Francisco era muito mais pobre do que eu. O percebi quando fui brincar em sua casa, com vários coleguinhas, e me surpreendi primeiro que ele morasse "nos fundos" de um longo corredor cheio de casinhas na rua Padre Estêvão Pernet, num construto que poderia ser chamado de cortiço.

Entrando em sua casa, também estranhei que houvesse apenas 1 quarto, que ele dividia com a mãe e irmãos, e com as manchas de bolor em todas as paredes, que resultavam num ar pesado, insalubre. Mas isso em nada diminuía a beleza dos olhos verdes de Francisco.

Nossa trajetória escolar e meus interesses românticos por ele foram seriamente prejudicados por uma tragédia, dessas que deixam marcas eternas.

Certa feita Francisco e outro colega meu vizinho, C, iriam a um jogo de futebol. Tiveram a "genial" idéia de fabricar uma bomba caseira para levar ao estádio. Nenhum dos 2 meninos tinha mais que 12 anos, e em tempos pré-internet, não tiveram acesso a esquemas confiáveis para a fabricação de bombas caseiras.

Na cozinha da casa de número 31 da João Migliari, na ausência dos pais e irmãos de C, se puseram a fazer a bomba. Encheram de pólvora um cano de PVC. Taparam as extremidades e só depois se deram conta: esquecemos do pavio!

Meninos, inexperientes, que eram, tiveram a pior idéia de suas vidas: "vamos esquentar a ponta de uma faca no fogão, e com a faca quente vamos abrir um buraco no cano de PVC, e nele meter o pavio." 

Não creio que tenha-lhes passado pela cabeça que o cano já estava cheio de pólvora, e isso poderia ser perigoso. C segurou o cano enquanto Francisco lhe enfiava a faca em brasa.

Eu pude ouvir a explosão de minha casa. Não achei que fosse nada até que 5 minutos depois 2 ambulâncias chegaram gritando em nossa vila. Então fui à rua e percebi a comoção de dúzias de vizinhos chorosos na porta da casa 31. Alguns de meus coleguinhas também estavam no meio da muvuca, e fui lhes perguntar o que acontecera, enquanto sentia pela primeira vez o cheiro de pólvora queimada.

- Ah, parece que o C e o Francisco estava fabricando uma bomba caseira, e ela explodiu na cara deles!

Fiquei mais do que chocada, apreensiva. 

- Eles estão muito machucados?... Morreram?... 

Ninguém sabia responder, só que tinham sido levados de ambulância, sangrando, para o hospital. E que a cozinha da casa estava completamente destruída.

Um ou 2 dias depois soubemos: C perdera 3 dedos das mãos. E Francisco ficara cego de um olho. E muito me doeu imaginar um dos belos olhos verdes de Francisco inutilizado. E tudo o que isso lhe traria como consequência.

Conforme dito, a mãe de Francisco era muito pobre. Não me lembro se foi algo espontâneo das crianças suas amigas, ou algo coordenado por um adulto, mas logo começamos a nos mobilizar para arrecadar fundos para a sua recuperação. Nosso colega C não precisava disso, pois sua família era bem "remediada", podia arcar com os custos de sua reabilitação.

Todos os nossos coleguinhas começaram a bater de porta em porta pela vizinhança coletando jornais para vender no ferro velho a quilo, como lixo reciclável, e todos os fundos eram revertidos à mãe de Francisco, em colaboração ao seu tratamento, para que ela pudesse comprar todos os medicamentos e garantir sua máxima recuperação possível.

Por vários meses, em certo tom de aventura caritativa, percorremos dezenas de ruas da vizinhança pedindo doação de jornais velhos. Ao ponto de que pela enésima semana nem precisávamos anunciar o motivo pelo qual tínhamos apertado a campainha: ao ver meia dúzia das mesmas crianças de sempre à porta, os moradores do Tatuapé já sabiam:

- Vcs são coleguinhas do garoto da bomba, né? Já trago o jornal.

Poder "fazer alguma coisa", mesmo que pequena, pela recuperação de Francisco algo que aliviou meu pesar. Ele passou algumas semanas internado, mais tempo que C. E dele eu só recebia notícias quando íamos à casa de sua mãe entregar o dinheirinho que havíamos angariado com nossa iniciativa de coletar jornais. Tenho certeza de que não era muito, mas, apelando a um velho clichê, era "de coração".

Depois que Francisco recebeu alta, o vi 1 ou 2 vezes. Ele não mais parecia o mesmo. Um de seus olhos, agora cego, estava esbranquiçado. Seu rosto e braços estavam todos marcados por cicatrizes profundas, ainda vermelhas. Mas, mais impactante que isso foi a mudança em sua postura.

Antes desse acidente da bomba, era um garoto decidido, orgulhoso, cheio de charme espontâneo, vivaz. Depois, parecia baqueado, cabisbaixo, sem vida, algo traumatizado e introvertido. Não era mais o mesmo. E isso não era algo de aparência, mas uma condição psicológica, emocional. Ele não tinha mais o mesmo "topete" de antes. Então percebi que o real motivo de minha fascinação por ele não era bem seus "lindos olhos", mas sua atitude, "quem" ele havia sido, e não mais era, um garoto forte e decidido.

No ano seguinte me mudei desta vila, e nunca mais depois disso vi ou tive notícias de Francisco. Sequer posso procurá-lo nas redes sociais, pois não guardei seu sobrenome. Mas de tudo isso restou muita coisa.

Meu primeiro amor, minha primeira paixonite platônica pré-adolescente, que jamais se materializou em beijo, nem selinho. Meu primeiro trauma de perda. Minha primeira aflição com a saúde de uma pessoa querida. A primeira vez em que temi que um ente querido viesse a morrer. Minha primeira "mobilização social", minha primeira "intervenção civil coletiva", minha primeira "ação caridosa" autônoma, voluntária, e aguerrida.

Mas também minha aversão, ojeriza, a explosivos. Meu horror ao cheiro de pólvora queimada. Meu profundo temor às coisas que podem fugir ao controle, como o fogo e químicos de essência forte.

Não fosse esse acidente da explosão da bomba, Francisco talvez teria sido meu primeiro beijo, meu primeiro namorado, minha primeira paixão pré-adolescente. Mas a pólvora naquele cano de PVC ao explodir embaralhou meus projetos, com todas as suas virtualidades, e tornou impossível a concretização de meus desejos românticos inocentes.

Francisco foi meu primeiro amor e minha primeira dor. Meu primeiro projeto e minha primeira frustração. Minha primeira beleza e minha primeira tristeza. Minha primeira admiração e minha primeira preocupação. Sinto não mais saber dele, se recuperou ao menos parcialmente a visão daquele belo olho verde, se tem alguma lembrança de mim. Se aqueles jornais arrecadados com tanta dedicação em algo ajudaram sua recuperação.

.

Um comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...