domingo, 2 de junho de 2013

A mansão de bonecas


Quando criança ganhei um presente indizivelmente maravilhoso, com ele brinquei à exaustão, e dele ainda hoje lembro com muito carinho.

Filha caçula, de 3, estava mais do que acostumada a "herdar" os brinquedos velhos e empoeirados, já aposentados por minhas irmãs mais velhas. E os somava aos presentes novos que ganhava de Natal, não de aniversário (sendo meu aniversário 5 dias depois do Natal, eu ganhava um presente único, o que sempre me deixava frustrada...)

E eu dava ainda mais valor aos brinquedos que eram "meus", novos, vendo com certo "preconceito bobo" os velhos, herdados. E como eu amava minhas Moranguinhos, meus pequenos pôneis e meus Playmobils inéditos! Tinha até a "casinha da Moranguinho", um grande morango de plástico com 2 cômodos, nos quais mal cabiam uma Uvinha e uma Chocolatinho. Até que...

Até que ganhei o melhor presente de toda a minha infância: uma verdadeira mansão de bonecas.

Meu tio Renê, distante, pois sempre, para mim, morou no Rio de Janeiro, tinha como hobby, tal qual tio Jaci Ignácio, a marcenaria. E numa das vezes em que veio nos visitar em Rio Claro, me trouxe de presente uma obra de suas mãos, feita exclusivamente para mim. A mansão de bonecas.

Toda feita em madeira fina, mas forte. Com 2 andares mais um sótão. Telhado vermelho removível, pintado de vermelho, com "Fernanda" delicadamente pintado entre florzinhas na frente.

O primeiro andar tinha hall de entrada, mais 5 cômodos, mobiliados com pequenos e delicados sofazinhos, poltroninhas e mesinhas. Com uma pequena escada feita de palitos de sorvete, que dava acesso ao segundo pavimento.

O segundo andar, com 6 cômodos, que eu fazia de quartos, mobiliados com caminhas, pequenos e fofos armarinhos, mesinhas de cabeceira, tudo de madeira, feito artesanalmente, só para mim, e mais uma escadinha de palitos de sorvete, que levava ao sótão, que seria o terceiro andar.

Na frente, a casa tinha uma uma linda fachada com janelinhas, e a portinha de entrada, que abria e fechava. Atrás, não tinha "parede dos fundos", a casa era vazada, me permitindo amplo acesso a todos os cômodos.

Eu tinha o kit Playmobil do ônibus escolar, com professora, motorista e uns 20 aluninhos. E minha casa de bonecas era tão imensa que eu brincava de orfanato, separando os 6 quartos entre meninos e meninas, fazendo do sótão o "quartinho do castigo", e das salas do primeiro andar, quartos de brinquedo e salas de aula, além de cozinha e refeitório. 

Também minhas Moranguinhos cabiam muito bem na casinha, seus acessórios e móveis ficavam muito bem nela.

Eu sabia, desde que a ganhei, o quanto minha mansão de bonecas era única, e especial, pois tinha sido feita SÓ PARA MIM, personalizada com meu nome. E brinquei com ela à exaustão, horas a fio, anos seguidos.

Quando me mudei para São Paulo, aos 9 anos, foi com certo muxoxo que a deixei para trás, e dela senti muita saudade. Sem que eu fosse consultada, logo a deram, sem me dizer seu destino. E me senti muito triste quando voltei de visita e não mais a encontrei.

15 anos depois me mudei novamente para Rio Claro, já formada na faculdade, professora. Alguns meses depois separei roupas e objetos dos quais não mais fazia uso e me recomendaram que os levasse à "Casa das Meninas", uma espécie de "orfanato", mas não propriamente isso, pois abrigava crianças que não estavam disponíveis para adoção, mas também não podiam ser devolvidas à família biológica. Num certo "limbo" judicial.

Cheguei, fui à recepção e, colocando 3 sacolas sobre a mesa, disse:

- Vim fazer uma doação.

A funcionária sorriu, deu uma conferida no conteúdo e me perguntou:

- Não gostaria de conhecer nosso trabalho?

Olhei ao redor, e com certa curiosidade, aquiesci com a cabeça. Ela se levantou, e foi me mostrando os cômodos do prédio:

- Esse é nosso refeitório, essa nossa cozinha, essa nossa sala de estudos, essa é nossa brinquedoteca.

Entrei e imediatamente meus olhos resvalaram num telhado vermelho, com aquele mesmo "Fernanda" delicadamente pintado entre florzinhas. Me aproximei. Era ela mesma: minha mansão de bonecas, cercada por 4 meninas sorridentes, entretidas em sua brincadeira.

Já não tinha as escadinhas de palito de sorvete, e poucos dos móveis originais restavam. Estava já bem surrada, pichada de canetinha no exterior, mas ainda inteira. E para minha maior felicidade: em pleno uso, 15 anos depois! Ver aquelas 4 meninas, juntas, aproveitando minha velha mansão de bonecas me trouxe uma alegria incontível, ao ponto que virei para a recepcionista que me acompanhava na visita e disse:

- Está vendo esse "Fernanda" pintado no telhado? Essa "Fernanda" sou eu. Essa casinha de bonecas era minha quando eu era criança. E estou muito feliz que ela esteja aqui.

Ela sorriu.

- Sério? Então muito obrigada, Fernanda, essa casinha de bonecas é o brinquedo preferido das meninas daqui. Elas brincam dia e noite, se deixarmos.

Não consigo pensar num destino melhor para ela. Sempre que me lembro de minha mansão de bonecas, a felicidade de a ter tido é exponencialmente multiplicada pelas dúzias de sorrisos que ela ainda dá às meninas do orfanato. E isso também me alegra.

Será que também brincam de orfanato, e na mansão de bonecas colocarem uma mini-casa de bonecas? E se eu fui uma boneca com a qual alguém brincou, e quando se cansou, simplesmente dispensou? E se todos fomos, somos, títeres?




Um comentário:

  1. história emocionante!
    e as últimas linhas nos fazem pensar se não estamos envoltos em Maya e sendo títeres de alguma inteligência superior hein rsrs

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