sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O Brasil é um país cheio de boas intenções

Nascer no Brasil é uma verdadeira bênção, constantemente pouco reconhecida. Não é à toa q inúmeros estrangeiros escolhem aqui morar. Clima tropical, solo fértil, povo acolhedor, oportunidades múltiplas. Seguramente nem tudo é bom, como exemplos: a corrupção, péssimos serviços públicos, pobreza, criminalidade.

Creio q grande parte dos problemas brasileiros são resultado de um descompasso, uma falta de sintonia, entre a "alta cultura" dos eruditos e a "cultura popular" da "plebe", algo profundamente marcado pelas questões étnico-raciais entre "brancos" e "negros".

Tanto "brancos" como "negros" entre aspas pois os "brancos" muitas vezes não são propriamente brancos, mas o querem ser, e os "negros" muitas vezes não se vêm como negros, devido à grande miscigenação e racismo não-declarado; preferindo ver-se como "semi-brancos". Inúmeras vezes me vi diante de pessoas claramente negras q se declaravam brancas, e se ofendiam se alguém lhes dissesse q não eram brancas.

Como dizia um professor meu, "nos EUA uma gota de sangue negro faz de alguém aparentemente branco um negro. No Brasil, uma gota de sangue branco faz de alguém aparentemente negro um branco."

A elite branca brasileira parece posicionar-se sócio-culturalmente como se estivesse numa "missão civilizatória" visando "melhorar, instruir, ou educar" a "plebe inculta e mestiça". E isso pode ser demonstrado por esta elite tentar "iluminar o povo com a alta cultura (européia, é claro)". Neste texto explorarei 2 exemplos disto: nosso hino nacional e nossos parâmetros curriculares federais.

Numa avaliação internacional feita por músicos e maestros, o Hino Nacional Brasileiro foi eleito como o segundo mais belo do mundo, atrás apenas de "La Marseillaise", o célebre hino francês. Seguramente é belíssimo nosso hino. Porém, tem um "pequeno" problema: poucos brasileiros o sabem cantar.

Este hino é cheio de palavras belíssimas, como plácido, fúlgido, impávido, clave, flâmula, brado etcs. Termos eruditos completamente estranhos ao "povão". Sua melodia é riquíssima, mas não reflete nenhum ritmo brasileiro, popular. Não há nada em nosso hino nacional q faça "o povo brasileiro" se identificar com ele. O hino não foi feito pelo povo, nem para o povo. Mas sim pela elite, para a elite.

Muitos acham q o povo brasileiro não conhece nem canta o hino por falta de patriotismo. Creio q o problema é outro. O povo não o canta pois não se reconhece nele, não sente q este hino seja verdadeiramente "nacional", mas apenas representa aquela parcela "branca, educada, elitista" da população. Há um claro descompasso entre as aspirações, o folclore, a lírica e a musicalidade populares, em relação às representações "oficiais" da cultura brasileira. O hino não atende ao povo, por isso ele o rejeita.

Outra demonstração clara do desencontro entre as intenções da elite e as aspirações do povo são os Parâmetros Curriculares Nacionais para a educação pública. Sou professora de História e usarei esta disciplina como exemplo.

O Currículo educacional brasileiro é tão maravilhoso quanto nosso hino. Muito bem-estudado, elaboradíssimo, abarca todo o conhecimento da História Universal, do ponto de vista europeu. Lendo-o me perguntei: "provavelmente quem escreveu isso é PhD em Coimbra, Oxford ou Harvard". E produziu parâmetros visando colocar os alunos brasileiros em condições de disputar vagas nestas instituições.

De acordo com estes parâmetros, eu deveria formar alunos na oitava série, com 14 anos, na posse de todo o conhecimento da História Universal, desde a pré-História até o fim da Guerra Fria. Q maravilha! Quem lê este documento ACHA q isto é posto em prática, transformado em realidade. Vã ilusão.

Os alunos estão "se lixando" para a Grécia, Roma, o Feudalismo, a Revolução Francesa. Nada disso faz parte do seu cotidiano e seu horizonte cultural. Querem aprender coisas palpáveis, práticas, úteis. E essas coisas não fazem parte do currículo.

A disciplina de "História" tenta fazer do aluno um mini-historiador, e não ensinar-lhe sobre cidadania, Direitos Humanos, relações inter-raciais. Não procura, em nenhum momento, ensinar a instrumentalizar o conhecimento histórico para a compreensão do hoje. Não há nenhum conteúdo q me instrua a ensinar-lhes sobre documentos, imposto de renda, política, atualidades, as coisas q os estudantes realmente precisam e querem aprender.

Ao invés de educá-los para a vida e a cidadania, os PCN's me dizem q eu devo prepará-los para o vestibular da USP. O "pequeno" problema é, como todos sabem, q raramente um aluno egresso de escola pública entrará na USP. Seguramente, menos de 1 por sala. E em prol deste 1, q entraria na USP de qquer forma, eu sacrifico os outros 40, q deixam de aprender coisas úteis para "perder tempo" não aprendendo coisas q, para eles, seriam muito úteis.

Outro exemplo é a disciplina de Química, q tenta fazer dum aluno um mini-químico, calculando elétrons, ligações covalentes e mols. Em nenhum momento pretende prepará-los para usar estes conhecimentos no cotidiano. Nada lhes ensina sobre higiene pessoal, limpeza doméstica, farmacologia e interação medicamentosa, agricultura e pesticidas. Os alunos perdem tempo não aprendendo a ser mini-químicos, enquanto poderiam estar aprendendo química instrumental, para usar no dia-a-dia, beneficiando sua saúde.

Os burocratas, q ganham como juízes, e trabalham em Brasília no ar condicionado, representantes da "elite branca" não vêm a realidade pois nunca deram sequer uma aula na rede pública. Quem realmente sabe do q está falando, pois lida cotidianamente com a realidade existente e não imaginada, freqüentemente manifesta os problemas curriculares.

Apenas para obter como resposta q o currículo é ótimo, foi elaborado por um PhD pela Sorbonne, e q se ele não funciona é por incapacidade dos professores. Meio q dizem "quem são vcs, meros professorinhos da rede pública, para achar q podem dizem para nós, professores doutores, o q deve ser ensinado?"

Respondo: "nós somos aqueles q têm CONHECIMENTO DE CAUSA para falar disso, somos nós que ensinamos, somos nós q sabemos o q funciona e o q é ruim. Vcs, burocratas de terno italiano e sapatos Louboutin, não têm a menor idéia da realidade. Vcs criam leis para um país q não existe." Estes burocratas podem estar cheios de boas intenções, mas elas mais atrapalham do q ajudam quem de fato trabalha no dia a dia escolar.

É necessário romper com essa noção de q a elite deve "civilizar" a plebe inculta. O povo não precisa "ser civilizado na cultura européia", mas instrumentalizado para serem agentes interventores e conscientes na realidade brasileira.

Não é o povo q tem q "melhorar" para poder cantar nosso elaboradíssimo hino. É o hino q tem q ser mudado para refletir a cultura, e o povo brasileiro. Não são os estudantes, nem os professores, q têm q "melhorar" para cumprir o currículo. São os PCN's q têm q melhorar para atender as demandas dos alunos, para ensinar-lhes coisas úteis, cotidianas, e não abstratas, distantes, estranhas à cultura brasileira.

As "boas intenções" são ótimas até falharem no teste da realidade. Até percebermos q elas apenas aparentam ser boas. Na verdade são perniciosas, pois nos fazem desperdiçar anos e anos digressando sobre Roma enquanto os alunos não sabem a diferença entre o CPF e o RG, não têm a menor idéia do q é carga tributária, quais são seus direitos trabalhistas e pq são obrigados a votar a cada 2 anos.

Como diz o famoso ditado "de boas intenções o inferno está cheio", pois não basta ter "boas intenções"; é necessário q, no teste prático, elas sejam validadas como boas. Se o teste prático não as valida, estas intenções mais são uma camisa de força q limita as ações dos professores, q se vêm como um Napoleão de hospício, digressando longamente sobre assuntos q, para os alunos, são tresloucados, irreais e inúteis.


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