terça-feira, 27 de novembro de 2012

A cor do som

Este texto é sobre uma das mais deliciosas situações q já passei, um intervalo de 1 hora verdadeiramente maravilhoso.

Ano de 2006. Eu namorava o multi-instrumentista FAG. Já muito experiente em tocar diversos instrumentos, recentemente comprara uma cítara, ou sitar, como ele gostava de dizer, importada diretamente da Índia. Ao comprá-la F descobriu q não havia como nela tocar melodias inscritas na notação ocidental, do lá ao sol. As partituras e acordes q ele conhecia de cor não tinham como ser tocadas na cítara, com muito mais cordas e complicações do q os instrumentos q ele dominava.

Por algumas semanas ele se contentou em "brincar" com o instrumento, explorando sua musicalidade, enquanto eu assistia nas nuvens. Porém, músico sério q é, queria ir muito além. Queria dominar o instrumento. Queria reproduzir as músicas de Ravi Shankar, cujos LP's ouvíamos em êxtase.

Como é de se esperar, não é fácil encontrar um professor de cítara no Brasil. Ele havia encontrado na internet apenas um, justamente uma referência nacional no instrumento, o respeitado músico Alberto Marsicano. Entrou em contato com ele e marcou uma aula para um dia de sábado.

Como vcs podem imaginar, não é muito fácil transportar uma cítara, instrumento grande e delicado. O pai de F nos levou de carro até o metrô e de lá seguimos carregando-a com todo o cuidado possível até a linha verde, e na rua Augusta pegamos um ônibus até o Jardim Europa. A casa de Marsicano era linda, cheia de plantas. Nos levou à sua sala de música.

Sentei-me numa cadeira para observar e eles no chão, sobre tapetes bordados. Desculpem-me se minha descrição da aula for ineficiente, não sou profissional da música.

Marsicano é uma figura sui generis. Semblante plácido, longos cabelos naturalmente grisalhos, roupas claras e soltas, com fazenda tecida artesanalmente. Exala uma aura, uma luz, diferente dos "mortais comuns", uma certa segurança, um ar de experiência, uma calma bonachona. Uma paz interior aniquilante, um ímpeto genuíno de querer espalhar sua arte da melhor forma possível. Isso ficava claro pelo preço q cobrava, de 50 reais por aula, à época. F pagou sem reclamar. Me vendo diante de Marsicano, do seu domínio do instrumento, e depois ao me informar sobre sua trajetória e como ele é respeitado, este pareceu-me quase um preço simbólico. Ele não estava a dar aquela aula para ganhar seu pão, amplamente assegurado por suas apresentações e discos gravados. Ele estava a dar aquela aula por generosidade, por querer multiplicar e disseminar a arte de tocar cítara no Brasil.

Marsicano começou falando q a notação musical indiana não corresponde à Ocidental, e portanto para tocar uma música ou melodia ocidental numa cítara era necessário muito estudo e uma grande licença poética, adaptando ou melhor, reescrevendo, a música.

Explicou q as escalas musicais para se tocar cítara eram classificadas em cores. Tocando maravilhosamente um trecho falava: ele é amarelo, este é vermelho, este é azul. E conforme ele tocava e explicava eu sentia internamente as vibrações etéreas da cítara, q de forma quase palpável desenhavam uma aura colorida, conforme as cores q ele enunciava. A escala azul tinha baixa energia e um tom melancólico. A escala vermelha era contagiante, apaixonada, voraz. A escala amarela era fragrante, fresca e juvenil.

Por uma maravilhosa hora inteira fiquei assistindo a este grande mestre tocar e ensinar a F como manejar e compreender a escala musical indiana, em completo êxtase. Foi um daquele momentos em q é bom calar os pensamentos, e num estado meditativo, apenas fruir o momento, deleitar-se, aproveitar o presente, sem preço, de ver-se diante de uma aula particular de um grande mestre.

Nunca me arrisquei a tocar a cítara de F, mas depois dessa aula foi perceptível o enriquecimento das melodias q ele já era capaz de tirar do instrumento. Eu acompanhava, no céu, seus estudos. Ele tocava enquanto eu cozinhava, dormia, ou apenas assistia com um sorriso franco plasmado, deixando-me levar por sua música etérea, numa sintonia celestial.

Dentre todas as boas oportunidades de experiências interessantes q tive até agora, assistir a esta aula de cítara q Marsicano deu a F, foi com certeza foi uma das melhores. Uma daquelas ocasiões surpreendentes e inestimáveis q nos deixam uma marca profunda. Esta foi sensível, artística, onírica. Me despertou para a pluralidade e diversidade musical do mundo. Me apresentou a uma pessoa nova e interessantíssima.

Me mostrou q cada som, cada nota, tem seu tom, sua energia, sua cor. Me ensinou a mais do q ouvir, ver a música, sentir sua vibração, usar mais de um sentido para compreender o inefável, o q não pode ser descrito, apenas sentido, apenas intuído com a sensibilidade de nossa alma.

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