sábado, 22 de junho de 2013

De minha primeira passeata


A História é um campo de eterna surpresa. Por mais que imaginemos que exista alguma teleologia, alguma "mão invisível" a guiar os fatos, eles sempre nos aturdem. São mais rápidos que todas as análises, previsões, planejamentos.

Desde 10 de junho de 2013 , há apenas 2 semanas, os acontecimentos têm atropelado os analistas. Ninguém poderá dizer : "eu avisei", "I saw it coming" porquê ninguém previa os rumos que as passeatas pela diminuição da tarifa de transportes em São Paulo, organizadas pelo movimento Passe Livre, tomariam. Parecemos, hj, à beira da Anarquia, de nossa primeira Revolução, seja popular ou burguesa. Pela primeira vez em nossa História nos vemos diante de mobilizações sociais que abalam governos e convulsionam a sociedade.

Ver a tudo isso, até agora à distância, pela TV e Internet, além de um pouco de frustração por não poder ir à rua, me lembra meu primeiro ano na faculdade de História, na USP. Com frescos 19 anos, cheia de gana, iniciativa, vontade de "mudar tudo".

Assim que comecei a faculdade, pegava todos os panfletos que encontrava, me informando sobre os diversos movimentos sociais nos quais os estudantes se engajavam. Logo no primeiro mês anunciaram uma passeata na avenida Paulista e é claro que eu não podia perder.

Poderia ter sido qualquer o motivo, eu teria ido, tão empolgada que estava. O mote nesta ocasião era a oposição à ALCA, Área de Livre Comércio entre as Américas, uma proposta estadunidense de baixar, ou anular tarifas alfandegárias e impostos de importação.

O pessoal da faculdade, com muita razão, colocou no panfleto de convocação que a ALCA seria uma sentença de morte à indústria nacional, que faliria com a concorrência desleal dos norte-americanos. Me juntei a eles à luta, na rua.

Foi num domingo. Concentração no vão livre do MASP. Fui de metrô. Sozinha, no começo me senti um pouco deslocada. A polícia, avisada, não estava lá para reprimir a passeata, apenas para escoltar, supervisionar e impedir que o trânsito fosse completamente bloqueado. Fizeram um cordão de isolamento nos permitindo ocupar 2 pistas da Avenida Paulista.

Logo encontrei alguns colegas de faculdade, cumprimentados com sorrisos e surpresa: "Vc aqui tb, que legal!". Um deles, não me lembro sinceramente qual, fazia parte da coordenação da passeata e de sopetão, ao trocar meia dúzia de palavras comigo, perguntou todo animado:

- Você não quer subir no carro de som?

Mas é claro!

Me levou até a escada, trocou três palavras ao pé do ouvido com quem a guardava, que logo deu passagem, me permitindo subir a escada metálica, com um certo arrepio da espera do novo.

Lá em cima, além do "puxador" ao microfone, umas 30 pessoas, cheias de ânimo, empunhando cartazes e exibindo faixas, gritando palavras de ordem, agitando os braços ao alto, chamando a multidão. 

E era grande. Só lá de cima vi. Milhares de pessoas ao nosso redor, todas no mesmo compasso: alegria, cidadania, democracia, protesto, luta por melhorias e contra as desigualdades sociais. Ondas de adrenalina coletiva nos estimulavam.

Me senti "no olho do furacão", participando de algo muito especial, transformador, em cima daquele trio elétrico. Me juntei aos demais, cantando com a multidão e ajudando a segurar um longo cartaz de tecido, pintado com os dizeres "Fora ALCA".

Não sei dizer quanto tempo fiquei lá em cima, menos de 1 hora. Quando comecei a sentir minha voz enrouquecer, vitimada pela empolgação, cedi meu lugar a outro manifestante e vi que já era hora de descer. Já estávamos na rua da Consolação.

Prossegui em passeata, procurando outros colegas lá no meio. Encontrei alguns outros, calouros como eu, se sentindo "revolucionários autênticos" ao participar de seu primeiro protesto, como eu.

Vestida com uma blusa branca, nada demais. Ao constatar-me em meio a um mar vermelho, me senti algo deslocada, e como começava a esfriar um pouco, fui até um vendedor ambulante que acompanhava a manifestação com um varal de roupas para vender.

Dei uma repassada nas camisetas e achei uma que preenchia meus anseios: vermelha, com dezenas de pequenos Che Guevaras estampados com a frase "Viva Che". Perfeita. Vesti por cima da blusa branca e comecei a partir de então a me sentir "mais adequada", identificada com a onda coletiva.

Prosseguimos até a praça Roosevelt e na praça da República nos dispersamos. Essa manifestação não foi histórica, não repercutiu, não mudou nada (até hoje a ALCA não chegou ao Brasil, e não parece que vá tão cedo...). Mas me deixou uma marca profunda. Foi a minha primeira.

Na volta, peguei o metrô e, em segurança, voltei para casa. Conseguindo assento no trem, sentei-me com um sorriso no rosto, que coroava a sensação de estar participando de algo maior do que eu mesma. De ser um agente social transformador, que não apenas assiste, mas toma parte nos acontecimentos. Alguém que grita, e faz sua voz ser ouvida, contra o silêncio e a apatia geral.

No dia de hoje, parece, essa apatia do "gigante adormecido" acabou. Há 2 semanas milhares, milhões, de brasileiros saem às ruas, em protestos facilitados pelas redes sociais, azeitados pelas hashtags

#ogiganteacordou #obrasilacordou #vinagre #vdevinagre #passelivre #primaverabrasileira #vemprarua #protesto #manifestasp #changebrazil 

E algo mudou. Todos percebemos. Não sabemos ao certo o teor e a direção da mudança, mas ela está acontecendo. Centenas de cidades se levantam contra a alta no custo de vida, o peso dos impostos, a ineficiência dos serviços públicos, a corrupção institucionalizada, a impunidade à violência, os gastos exorbitantes nas obras da Copa do Mundo de futebol de 2014 e das Olimpíadas de 2016.

Parece que acordamos. 

Me sinto privilegiada em testemunhar acontecimentos Históricos como este.

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terça-feira, 18 de junho de 2013

De Jarson Brenner


Nunca estive na presença física de Jarson Brenner Borges Passos. Contudo, sinto como se o conhecesse mais do que a muitos amigos pessoais.

Jarson Brenner é meu amigo, de muitos anos. Nosso primeiro contato foi na comunidade do Orkut "Perguntas Cristãs Complexas", creio que no ano de 2006.

Jarson era cristão evangélico. Porém, se destacava por sua mente aberta, questionadora, polivalente. Diferentemente dos demais evangélicos, com a cabeça desesperadoramente fechada, Jarson falava sobre tudo sem maldade, sem segundas intenções. Por algum motivo até hoje alheio ao meu conhecimento, foi construindo uma certa "admiração" por mim, sem que eu até hoje tenha descoberto o porquê.

Quando a situação na PCCplex ficou insustentável, um grupo de membros dissidentes fundou uma nova comunidade, a "Religião & Vida", tema explorado neste outro texto: "De Orlando Nunes" http://inadvertidamente.blogspot.com.br/2013/04/de-orlando-nunes.html 

Jarson rapidamente aderiu à nova iniciativa, com entusiasmo, chegando a moderador antes da comunidade ser criminosamente deletada. Tb era membro bastante ativo da minha "Perguntas Cristãs Ridículas", e a ele teria repassado a moderação dela, se pudesse...

Com o passar dos anos, Jarson foi conquistando minha amizade e minha confiança. As comunidades eram criadas, deletadas, recicladas, abandonadas, mas ele continuava a ser presença constante em meus scraps, e-mails e mensagens. 

Jarson sempre se identificou como um "peregrino": alguém que está num caminho sagrado de descoberta pessoal, espiritual. Sempre primou pela humildade, calma, paciência, ponderação: marcas de uma pessoa verdadeiramente sábia. 

Mais sábio que aquele que aponta, indica ou inventa "caminhos" é aquele que diz "estou num caminho cujo destino não conheço, meu trajeto vai sendo descoberto ao longo da trilha". E assim é Jarson Brenner. Flerta com o Cristianismo, o Noachidismo, o Judaísmo, o Budismo, o Hinduísmo, sempre aberto a todas as formas de sabedoria, que mesmo parciais, podem sim, trazer cada uma sua contribuição à sua evolução espiritual.

Jarson é leitor assíduo desse blog, sempre deixando comentários construtivos. Sinto que eu mesma não visite o seu com tanta freqüência, e o deveria, pois são belos os seus textos e reflexões. http://www.jarsonbrenner.com.br/ 

Recentemente, tive uma grande decepção com um de meus mais íntimos amigos pessoais. Depois disso entrei numa certa "crise de identidade", me questionando quem realmente era "meu amigo de verdade" e nesse meio tempo, percebi o quanto cada curtida, comentário e mensagem de Jarson demonstravam que nele eu tinha um "grande amigo de verdade", que "me curtia" simplesmente por gostar das minhas idéias e escritos.

Assim o remanejei mentalmente do grupo dos "conhecidos virtuais" para o de "bons amigos pessoais", mesmo que nunca o tenha encontrado pessoalmente. Tantos anos de amizade, de demonstrações de boa índole, dedicação e atenção mereciam algum tipo de "reconhecimento".

Nesse meio tempo Jarson, para minha grande alegria, passou no vestibular e entrou no curso de História da UFPR. Do Maranhão, agora estava em Curitiba. Então vi que havia muito que eu poderia fazer por ele.

Imediatamente ponderei que podia ajudá-lo nessa nova trajetória. Sendo alguns anos mais velha que ele, tendo morado na maior megalópole do Brasil e já formada em História, eu poderia lhe mandar algo de minhas experiências e conhecimento.

Percebi que eram muitas as músicas que eu tinha em mp3 no meu computador que Jarson provavelmente nunca tinha ouvido. E conhecer esse "cancioneiro hipster" lhe seria cobrado no "ambiente acadêmico". Organizei todas as minhas músicas e as gravei em DVD's, divididas por categorias. Tb lhe copiei dois jogos muito interessantes para qualquer historiador: Caesar III e Civilization II. Pena que já são algo "velhos" e os novos computadores não os rodem... :(

Igualmente, eram centenas os meus arquivos de faculdade, que nunca mais usarei, e que poderiam lhe ser de grande ajuda. Os gravei, todos, tb em discos. Da mesma fiz com todos os .txt , .doc e .rtf de meus comentários e tópicos que guardei das postagens que fiz nas comunidades de perguntas religiosas das quais já participei. Por saber de seu interesse por Judaísmo, tb lhe remeti uma cópia do meu volume comentado e sublinhado do Mishnê Torá de Maimônides. Por já estar esgotado e saber de sua importância, tb lhe mandei uma cópia do "História social da Criança e da Família" do Ariès.

Por ele morar agora em Curitiba, um lugar frio, tb lhe fiz um mimo especial, e personalizado, que apenas poucos amigos chegados recebem: um cachecol, com suas iniciais. Cada cachecol que faço é exclusivo, artesanal, feito com muito carinho e cuidado. Em cada ponto vai um pensamento, um sentimento, uma meditação. E Jarson mais do que fez por merecer o seu.

Empacotei tudo e lhe remeti pelo correio. Um presente espontâneo, em reconhecimento a tantos anos de uma bela, e construtiva, amizade. Espero que o cachecol o aqueça, o proteja, o deixe elegante e charmoso. Espero que os arquivos de textos possam lhe ser úteis. Espero que ele goste das músicas, e que elas ajudem a ampliar seu horizonte cultural. Espero que ele leia os livros, e que isso contribua algo em sua evolução espiritual.

Mas, em se tratando de Jarson Brenner, sei que não me decepcionarei em nenhuma dessas expectativas. Acredito muito que no futuro ele venha a construir "renome" e que um dia, com muito orgulho, comentarei que sou amiga do famoso escritor, intelectual, historiador Jarson Brenner para assombro dos que ouvirem.

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domingo, 9 de junho de 2013

Dos melhores presentes que já dei a namorados

Presentear alguém é um ato muito especial. É uma declaração de que a pessoa tem sentimentos verdadeiros pela outra, que sempre a tem em mente, que ponderou profundamente sobre o que lhe poderia agradar, e, além disso, "despendeu" seu dinheiro, muitas vezes escasso, para simplesmente trazer alegria a alguém de sua profunda estima.

Sempre gostei de dar presentes verdadeiramente especiais às pessoas preciosas em minha vida. Não importava o valor monetário. Sempre considerei o se presentear um ato de dedicação bonito entre duas pessoas. E sempre caprichei bastante. Muito mais quando o receptor era meu parceiro romântico.

Em 1998 eu tinha 15 anos e um orçamento limitadíssimo. Acostumada a isso, já sabia ser necessário ter um "colchão de dinheiro", uma certa reserva, para imprevistos e momentos especiais. Eu tinha um namoradinho, muito apaixonado por mim, chamado Daniel.

Embora o sentimento que dedicava a ele fosse em menor intensidade, eu sabia valorizar o quanto ele me tratava bem e fazia todas as minhas vontades. Ao se aproximar o dia dos namorados, 12 de junho no Brasil, precisava lhe dar um presente especial, pois era realmente digno de mérito todo o amor adolescente que me dedicava.

Era ano de Copa do Mundo, na França. E ele não fugia ao clichê da "paixão pelo futebol" que brasileiros comumente têm. Não havia presente melhor a lhe dar que uma camisa da seleção brasileira. Fiz pesquisa. A "falsificada" de camelô, vagabunda, era 15 reais. A "falsificada" de loja, usável, era 30 reais. A original, em tecido dry fit, custava no shopping 80 reais a canarinho e 98 reais a "reserva", azul, muito mais bonita.

Meu dinheiro era muito, muito pouco. Me questionei qual era o "nível de amor" que Daniel me dedicava, e quanto deveria ser o "gasto justo" que deveria corresponder ao seu presente de dia dos namorados.

Ao dar presentes às pessoas de minha estima, sempre procurei não ser miserável, mesquinha, e sim lhes dar o que mereciam. E Daniel não merecia uma camisa falsificada, nem de baixo valor. Seu amor por mim era verdadeiro, profundo. E eu não trairia sua dignidade lhe dando um presente "inferior". Embora a camisa amarelo-canário oficial não fizesse feio algum, e custasse 18 preciosos reais a menos, pensei que uma blusa amarela não "combinaria com tudo" e que a azul, mesmo sendo mais cara, poderia ser usada em muitas mais ocasiões.

Não tive dúvida, mesmo que aqueles 98 reais me doessem, comprei a camisa oficial azul. E gigantesco foi o sorriso de Daniel ao recebê-la.

- Não acredito que vc me deu uma camisa oficial, azul, da seleção. Vc não acredita o quanto eu queria ganhar ela!

Em 2001, aos 17 anos, engatei meu segundo "namoro sério", com James. E a ele dei dois presentes durante os 4 anos de nossa convivência que tb considero verdadeiramente especiais. O primeiro teria sido de Natal, mas só o pude dar em princípios de Janeiro.

Até hoje me lembro da expressão de surpresa em seu rosto ao ganhá-lo. Não esperava um presente "tão bom". Eu ainda vivia das poucas notas que conseguia receber de Regina, cada real era suado, duramente negociado ou mesmo "arrancado" de suas mãos com chantagens. Apesar disso, sempre tinha escondidas "minhas reservas", sem que disto ela tivesse a mais vaga idéia.

Era descomedido meu amor por James, e embora eu soubesse que a recíproca não fosse verdadeira, queria lhe dar um presente que, de forma palpável, lhe demonstrasse a profundidade de meus sentimentos.

Sendo ele historiador e geógrafo, não podia ser alguma coisa banal, mas algo que ele visse como precioso, e útil.

Era muito, absurdamente, caro para mim. Mas na livraria encontrei o presente perfeito, e depois de achá-lo, nenhum outro serviria. Lhe comprei o livro "Trabalhadores" do fotógrafo Sebastião Salgado, em encadernação de luxo, com capa dura. Ele simplesmente não acreditou, e ficou muito feliz. Eu, mais ainda.

No ano seguinte lhe dei outro mimo precioso. Assistira recentemente ao filme "Um homem de família" (The family man) no qual Nicolas Cage interpreta um especulador de Wall Street que é "transportado" a uma realidade paralela, uma outra virtualidade do rumo que poderia ter dado a sua vida, como "pai de família". Ao abrir o armário de seu "outro eu" ele deplora o conteúdo de roupas baratas e sem grife. Apesar disso, seleciona as roupas "menos piores" para ir a uma festa, e na cena seguinte aparece com um belíssimo sweater de lã azul clara, com gola V.

Ao ir a Campos do Jordão em 2002, embora ainda longe do Natal, vi na vitrine de uma loja aquele mesmo suéter de lã azul com gola V, muito elegante. Custou caro, mas era perfeito. O comprei e dei a James. Ele não achou "assim" muito especial, mas gostou e imediatamente vestiu. Coube-lhe perfeitamente, e ele ficou muito charmoso, à la Nicolas Cage. Como um verdadeiro "homem de família".

Em 2003 namorei Felipe. Nosso enlace não chegou até o Natal, mas mesmo assim, se não lhe dei, lhe deixei um presente. Pouco versado em culinária e gastronomia, quando ia a sua casa eu lhe preparava muitos pratos, e para isso levei e lá deixei um livro de "Receitas Vegetarianas". Ao fim de nosso compromisso, não o pedi de volta, lá ficou, e o reputei como um presente dado a uma pessoa deveras especial. Espero que ainda hoje dele faça uso.

Em 2007 namorei Gabriel. 6 anos mais jovem que eu. Ele me amava com mais intensidade do que eu a ele. E da mesma forma como se passara com Daniel, queria homenagear o sentimento que me dedicava com um presente que "correspondesse" em sua preciosidade à consideração que eu tinha por ser alvo de sua "grande paixão".

Lhe comprei seu primeiro vidro de "eau de toilette", de "perfume de verdade", Kaiak de Natura, com estojo metálico e tudo. Foi esfuziante sua expressão de agradecimento. Ele gostou MESMO. Quando terminamos, mais de 1 ano depois, o frasco não estava nem pela metade. Creio que ainda o use.

Desde então não mais tive nenhum namoro sério, e nenhum parceiro romântico que de mim merecesse algum presente especial. Conforme os anos se passam, fico mais "fresca" e seletiva, procurando ínfimos defeitos para descartar quem quer que seja que se candidate a ser o próximo nesta lista.

Da mesma forma que apenas dou presentes especiais, apenas aceito parceiros românticos que eu considere especiais, dignos de receber presentes que "abram um rombo" em minhas finanças, agora mais "folgadas", com um "colchão" bem mais confortável.

O próximo a conseguir lugar nesta lista há de ser muito, muito, especial. Não aceito nada menos que isso.

Alanis Morissette - Unsent http://www.youtube.com/watch?v=8Wlhw_HJLts 

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sábado, 8 de junho de 2013

Meu primeiro amor

Era 1993. Eu tinha 10 anos e morava na pensão de Dona Rosa Ross, à rua João Migliari, número 13, Tatuapé. Cursava a quarta série do Ensino Fundamental na E.E. Jackson de Figueiredo.

Nesta mesma escola estudava, na série seguinte, o menino que foi minha primeira paixão. Seu nome era Francisco. Era um menino loiro com brilhantes olhos verdes, que não me dava nenhuma atenção especial. Além de vê-lo na escola, tb éramos amigos de vizinhança, com dezenas de coleguinhas em comum.

Nos encontrávamos nas mesmas festinhas de garagem. Éramos convidados às mesmas sessões de videogame e fliperama. Foi com ele que pela primeira vez joguei "Street Fighter" e também foi com ele que dancei minha primeira música lenta em uma festinha pré-adolescente. Daquelas dancinhas em que se seguram as mãos, e se aproximam as faces, mas sem se tocar, timidamente.

Muitos foram os aniversários, amigos secretos, brincadeiras de pique-esconde, passa anel, e beijo abraço ou aperto de mão que compartilhamos. E eu sempre suspirava escondida por seus belos olhos, muito temerosa de que ele descobrisse que eu estava "gamadinha" por ele e isso fosse usado para me zoar, o que muito me magoaria. Pelo temor de revelar meus sentimentos e ser rechaçada, preterida, e também por ser muito jovem e nem saber ao certo o que sentia, que nunca "me declarei" para ele, jamais lhe revelei meu interesse romântico. Eu o achava "muito gato" e era enorme meu medo que ele me achasse feia, e se eu revelasse minha paixão, dissesse: "vc não é BONITA O SUFICIENTE para eu me interessar por vc".

Francisco era muito mais pobre do que eu. O percebi quando fui brincar em sua casa, com vários coleguinhas, e me surpreendi primeiro que ele morasse "nos fundos" de um longo corredor cheio de casinhas na rua Padre Estêvão Pernet, num construto que poderia ser chamado de cortiço.

Entrando em sua casa, também estranhei que houvesse apenas 1 quarto, que ele dividia com a mãe e irmãos, e com as manchas de bolor em todas as paredes, que resultavam num ar pesado, insalubre. Mas isso em nada diminuía a beleza dos olhos verdes de Francisco.

Nossa trajetória escolar e meus interesses românticos por ele foram seriamente prejudicados por uma tragédia, dessas que deixam marcas eternas.

Certa feita Francisco e outro colega meu vizinho, C, iriam a um jogo de futebol. Tiveram a "genial" idéia de fabricar uma bomba caseira para levar ao estádio. Nenhum dos 2 meninos tinha mais que 12 anos, e em tempos pré-internet, não tiveram acesso a esquemas confiáveis para a fabricação de bombas caseiras.

Na cozinha da casa de número 31 da João Migliari, na ausência dos pais e irmãos de C, se puseram a fazer a bomba. Encheram de pólvora um cano de PVC. Taparam as extremidades e só depois se deram conta: esquecemos do pavio!

Meninos, inexperientes, que eram, tiveram a pior idéia de suas vidas: "vamos esquentar a ponta de uma faca no fogão, e com a faca quente vamos abrir um buraco no cano de PVC, e nele meter o pavio." 

Não creio que tenha-lhes passado pela cabeça que o cano já estava cheio de pólvora, e isso poderia ser perigoso. C segurou o cano enquanto Francisco lhe enfiava a faca em brasa.

Eu pude ouvir a explosão de minha casa. Não achei que fosse nada até que 5 minutos depois 2 ambulâncias chegaram gritando em nossa vila. Então fui à rua e percebi a comoção de dúzias de vizinhos chorosos na porta da casa 31. Alguns de meus coleguinhas também estavam no meio da muvuca, e fui lhes perguntar o que acontecera, enquanto sentia pela primeira vez o cheiro de pólvora queimada.

- Ah, parece que o C e o Francisco estava fabricando uma bomba caseira, e ela explodiu na cara deles!

Fiquei mais do que chocada, apreensiva. 

- Eles estão muito machucados?... Morreram?... 

Ninguém sabia responder, só que tinham sido levados de ambulância, sangrando, para o hospital. E que a cozinha da casa estava completamente destruída.

Um ou 2 dias depois soubemos: C perdera 3 dedos das mãos. E Francisco ficara cego de um olho. E muito me doeu imaginar um dos belos olhos verdes de Francisco inutilizado. E tudo o que isso lhe traria como consequência.

Conforme dito, a mãe de Francisco era muito pobre. Não me lembro se foi algo espontâneo das crianças suas amigas, ou algo coordenado por um adulto, mas logo começamos a nos mobilizar para arrecadar fundos para a sua recuperação. Nosso colega C não precisava disso, pois sua família era bem "remediada", podia arcar com os custos de sua reabilitação.

Todos os nossos coleguinhas começaram a bater de porta em porta pela vizinhança coletando jornais para vender no ferro velho a quilo, como lixo reciclável, e todos os fundos eram revertidos à mãe de Francisco, em colaboração ao seu tratamento, para que ela pudesse comprar todos os medicamentos e garantir sua máxima recuperação possível.

Por vários meses, em certo tom de aventura caritativa, percorremos dezenas de ruas da vizinhança pedindo doação de jornais velhos. Ao ponto de que pela enésima semana nem precisávamos anunciar o motivo pelo qual tínhamos apertado a campainha: ao ver meia dúzia das mesmas crianças de sempre à porta, os moradores do Tatuapé já sabiam:

- Vcs são coleguinhas do garoto da bomba, né? Já trago o jornal.

Poder "fazer alguma coisa", mesmo que pequena, pela recuperação de Francisco algo que aliviou meu pesar. Ele passou algumas semanas internado, mais tempo que C. E dele eu só recebia notícias quando íamos à casa de sua mãe entregar o dinheirinho que havíamos angariado com nossa iniciativa de coletar jornais. Tenho certeza de que não era muito, mas, apelando a um velho clichê, era "de coração".

Depois que Francisco recebeu alta, o vi 1 ou 2 vezes. Ele não mais parecia o mesmo. Um de seus olhos, agora cego, estava esbranquiçado. Seu rosto e braços estavam todos marcados por cicatrizes profundas, ainda vermelhas. Mas, mais impactante que isso foi a mudança em sua postura.

Antes desse acidente da bomba, era um garoto decidido, orgulhoso, cheio de charme espontâneo, vivaz. Depois, parecia baqueado, cabisbaixo, sem vida, algo traumatizado e introvertido. Não era mais o mesmo. E isso não era algo de aparência, mas uma condição psicológica, emocional. Ele não tinha mais o mesmo "topete" de antes. Então percebi que o real motivo de minha fascinação por ele não era bem seus "lindos olhos", mas sua atitude, "quem" ele havia sido, e não mais era, um garoto forte e decidido.

No ano seguinte me mudei desta vila, e nunca mais depois disso vi ou tive notícias de Francisco. Sequer posso procurá-lo nas redes sociais, pois não guardei seu sobrenome. Mas de tudo isso restou muita coisa.

Meu primeiro amor, minha primeira paixonite platônica pré-adolescente, que jamais se materializou em beijo, nem selinho. Meu primeiro trauma de perda. Minha primeira aflição com a saúde de uma pessoa querida. A primeira vez em que temi que um ente querido viesse a morrer. Minha primeira "mobilização social", minha primeira "intervenção civil coletiva", minha primeira "ação caridosa" autônoma, voluntária, e aguerrida.

Mas também minha aversão, ojeriza, a explosivos. Meu horror ao cheiro de pólvora queimada. Meu profundo temor às coisas que podem fugir ao controle, como o fogo e químicos de essência forte.

Não fosse esse acidente da explosão da bomba, Francisco talvez teria sido meu primeiro beijo, meu primeiro namorado, minha primeira paixão pré-adolescente. Mas a pólvora naquele cano de PVC ao explodir embaralhou meus projetos, com todas as suas virtualidades, e tornou impossível a concretização de meus desejos românticos inocentes.

Francisco foi meu primeiro amor e minha primeira dor. Meu primeiro projeto e minha primeira frustração. Minha primeira beleza e minha primeira tristeza. Minha primeira admiração e minha primeira preocupação. Sinto não mais saber dele, se recuperou ao menos parcialmente a visão daquele belo olho verde, se tem alguma lembrança de mim. Se aqueles jornais arrecadados com tanta dedicação em algo ajudaram sua recuperação.

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domingo, 2 de junho de 2013

A mansão de bonecas


Quando criança ganhei um presente indizivelmente maravilhoso, com ele brinquei à exaustão, e dele ainda hoje lembro com muito carinho.

Filha caçula, de 3, estava mais do que acostumada a "herdar" os brinquedos velhos e empoeirados, já aposentados por minhas irmãs mais velhas. E os somava aos presentes novos que ganhava de Natal, não de aniversário (sendo meu aniversário 5 dias depois do Natal, eu ganhava um presente único, o que sempre me deixava frustrada...)

E eu dava ainda mais valor aos brinquedos que eram "meus", novos, vendo com certo "preconceito bobo" os velhos, herdados. E como eu amava minhas Moranguinhos, meus pequenos pôneis e meus Playmobils inéditos! Tinha até a "casinha da Moranguinho", um grande morango de plástico com 2 cômodos, nos quais mal cabiam uma Uvinha e uma Chocolatinho. Até que...

Até que ganhei o melhor presente de toda a minha infância: uma verdadeira mansão de bonecas.

Meu tio Renê, distante, pois sempre, para mim, morou no Rio de Janeiro, tinha como hobby, tal qual tio Jaci Ignácio, a marcenaria. E numa das vezes em que veio nos visitar em Rio Claro, me trouxe de presente uma obra de suas mãos, feita exclusivamente para mim. A mansão de bonecas.

Toda feita em madeira fina, mas forte. Com 2 andares mais um sótão. Telhado vermelho removível, pintado de vermelho, com "Fernanda" delicadamente pintado entre florzinhas na frente.

O primeiro andar tinha hall de entrada, mais 5 cômodos, mobiliados com pequenos e delicados sofazinhos, poltroninhas e mesinhas. Com uma pequena escada feita de palitos de sorvete, que dava acesso ao segundo pavimento.

O segundo andar, com 6 cômodos, que eu fazia de quartos, mobiliados com caminhas, pequenos e fofos armarinhos, mesinhas de cabeceira, tudo de madeira, feito artesanalmente, só para mim, e mais uma escadinha de palitos de sorvete, que levava ao sótão, que seria o terceiro andar.

Na frente, a casa tinha uma uma linda fachada com janelinhas, e a portinha de entrada, que abria e fechava. Atrás, não tinha "parede dos fundos", a casa era vazada, me permitindo amplo acesso a todos os cômodos.

Eu tinha o kit Playmobil do ônibus escolar, com professora, motorista e uns 20 aluninhos. E minha casa de bonecas era tão imensa que eu brincava de orfanato, separando os 6 quartos entre meninos e meninas, fazendo do sótão o "quartinho do castigo", e das salas do primeiro andar, quartos de brinquedo e salas de aula, além de cozinha e refeitório. 

Também minhas Moranguinhos cabiam muito bem na casinha, seus acessórios e móveis ficavam muito bem nela.

Eu sabia, desde que a ganhei, o quanto minha mansão de bonecas era única, e especial, pois tinha sido feita SÓ PARA MIM, personalizada com meu nome. E brinquei com ela à exaustão, horas a fio, anos seguidos.

Quando me mudei para São Paulo, aos 9 anos, foi com certo muxoxo que a deixei para trás, e dela senti muita saudade. Sem que eu fosse consultada, logo a deram, sem me dizer seu destino. E me senti muito triste quando voltei de visita e não mais a encontrei.

15 anos depois me mudei novamente para Rio Claro, já formada na faculdade, professora. Alguns meses depois separei roupas e objetos dos quais não mais fazia uso e me recomendaram que os levasse à "Casa das Meninas", uma espécie de "orfanato", mas não propriamente isso, pois abrigava crianças que não estavam disponíveis para adoção, mas também não podiam ser devolvidas à família biológica. Num certo "limbo" judicial.

Cheguei, fui à recepção e, colocando 3 sacolas sobre a mesa, disse:

- Vim fazer uma doação.

A funcionária sorriu, deu uma conferida no conteúdo e me perguntou:

- Não gostaria de conhecer nosso trabalho?

Olhei ao redor, e com certa curiosidade, aquiesci com a cabeça. Ela se levantou, e foi me mostrando os cômodos do prédio:

- Esse é nosso refeitório, essa nossa cozinha, essa nossa sala de estudos, essa é nossa brinquedoteca.

Entrei e imediatamente meus olhos resvalaram num telhado vermelho, com aquele mesmo "Fernanda" delicadamente pintado entre florzinhas. Me aproximei. Era ela mesma: minha mansão de bonecas, cercada por 4 meninas sorridentes, entretidas em sua brincadeira.

Já não tinha as escadinhas de palito de sorvete, e poucos dos móveis originais restavam. Estava já bem surrada, pichada de canetinha no exterior, mas ainda inteira. E para minha maior felicidade: em pleno uso, 15 anos depois! Ver aquelas 4 meninas, juntas, aproveitando minha velha mansão de bonecas me trouxe uma alegria incontível, ao ponto que virei para a recepcionista que me acompanhava na visita e disse:

- Está vendo esse "Fernanda" pintado no telhado? Essa "Fernanda" sou eu. Essa casinha de bonecas era minha quando eu era criança. E estou muito feliz que ela esteja aqui.

Ela sorriu.

- Sério? Então muito obrigada, Fernanda, essa casinha de bonecas é o brinquedo preferido das meninas daqui. Elas brincam dia e noite, se deixarmos.

Não consigo pensar num destino melhor para ela. Sempre que me lembro de minha mansão de bonecas, a felicidade de a ter tido é exponencialmente multiplicada pelas dúzias de sorrisos que ela ainda dá às meninas do orfanato. E isso também me alegra.

Será que também brincam de orfanato, e na mansão de bonecas colocarem uma mini-casa de bonecas? E se eu fui uma boneca com a qual alguém brincou, e quando se cansou, simplesmente dispensou? E se todos fomos, somos, títeres?




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