terça-feira, 19 de março de 2013
De quando salvei a vida da minha avó
Era uma segunda feira. Na semana anterior a professora Bruna, de português, avisara que faltaria na segunda. Contudo, mesmo tendo avisado, a escola não conseguiu um professor substituto. E isso salvou a vida da minha avó.
Naquela segunda feira eu deveria dar aulas até 22:30, porém como a professora de português faltara, eu dei aulas "paralelas": ao mesmo tempo em 2 turmas. Se o diretor fosse "linha dura", me teria feito permanecer na escola até as 22:30 "cumprindo o horário", o que teria resultado em eu chegar em casa e encontrar minha avó já morta. Mas como o diretor dessa escola (E.M. Armando Grisi) era legal, me deixou ir embora às 20h40.
Eu poderia ter ido passear, comer alguma coisa, tomar uma cerveja. Mas voltei diretamente para casa, sem saber o quanto essa pequena cadeia de coincidências seria importante.
Às segundas à noite, minha avó Tula ia ao Centro Espírita "Fé e Caridade", e chegava em casa por volta de 20:50. O trajeto entre a escola "Armando Grisi" e a minha casa é de 10 minutos. Portanto, eu cheguei em casa imediatamente, ou poucos minutos depois dela.
Um dia muito normal. Cheguei, o carro dela já estava na garagem, estacionei o meu ao lado. Abri a porta da sala. A TV estava ligada. Tínhamos 2 cachorros, que sempre vinham me fazer festa quando eu chegava. Neste dia foi estranho. Eu abri a porta. Só Jade veio me fazer festa. Onde estava Whiskey? A TV da sala estava ligada, mas Tula não estava na sala. Enquanto terminava de abrir a porta, vi a cena mais arrepiante de minha vida.
Olhei o fundo do longo corredor que liga a sala aos quartos. No fim do corredor, na porta do quarto da minha avó, vi 2 pezinhos.
2 pezinhos apenas, saindo do quarto da minha avó, cuja luz estava acesa. 2 pezinhos de uma pessoa caída no chão, desfalecida. A cena mais assustadora que já vi. Um com sapato, outro sem sapato, caído ao lado. Meu primeiro pensamento foi: "Meu Deus, ela morreu!"
Corri até o quarto. Uma enorme poça de sangue aureolava a cabeça da minha vó, toda pisada pelas marcas das patinhas de Whiskey, aflito ao seu lado. Para meu alívio, Tula não estava desmaiada, mas semi-consciente, tentando descoordenadamente se levantar. Pela profusão de sangue, temi que ela tivesse tido traumatismo craniano. Peguei suas mãos e disse:
-Tula, não tente se levantar. Deita, relaxa. Vou chamar a ambulância.
Ela se acalmou e parou de se mexer. Numa vã tentativa de estancar o sangue e prevenir maiores danos cerebrais, peguei seu travesseiro na cama e coloquei sob sua cabeça ferida.
-Tula, fique deitada, aguente firme, preciso chamar o resgate. Não se mexa.
Embora minha vontade fosse ficar ao seu lado para ela não se sentir sozinha, corri para a cozinha para pegar o telefone. No fogão, uma chaleira fervia furiosamente. Apaguei o fogo. Liguei para o 193. Descrevi a situação e pedi uma ambulância. Ao desligar, veio o medo "e se pensarem que foi trote e não vierem???"
Peguei na bolsa da minha avó seu cartão do convênio médico. Liguei para o hospital do convênio, desesperada, avisando do que acontecera, e perguntando se o resgate público nos deixaria no hospital particular. Responderam que sim. Atalhei: "então se preparem para receber um paciente idoso com traumatismo craniano, em 5 minutos."
Eu queria então voltar a segurar a mão da minha vó, mas havia mais providências práticas a tomar. Whiskey era um cachorro problemático. Se eu o deixasse ao lado da Tula, ele atacaria os socorristas, então o peguei e tranquei no quintal, junto com a Jade. Ele latiu em protesto, e prosseguiu a latir incessantemente.
Com os 2 carros na garagem, os socorristas não conseguiriam entrar nem sair com uma maca. Então, mesmo sabendo que minha avó agonizava sangrando no chão, eu sabia que muito mais proficiente que ficar segurando suas mãos no aguardo da ambulância, seria tirar meu carro da garagem antes que o resgate chegasse, para agilizar seu trabalho. E foi isso o que fiz. Apenas depois de tirar meu carro da garagem, deixando todas as luzes acesas para quando o resgate chegasse, agilizar seu trabalho, tornei a atendê-la.
Peguei o telefone sem fio, e voltei ao quarto. Enquanto segurava as mãos de Tula e a tentava deixar tranquila, ambas sujas pelo mais de 1 litro de sangue espalhado pelo chão, liguei para Maria José Tomasella, pedindo ajuda.
Não sei quantos, se 5 ou 10, mas a ambulância demorou intermináveis, excruciantes, minutos para chegar. Buzinaram na frente de casa. Corri. Abri o portão "é aqui mesmo, corram!". 3 bombeiros entraram com uma maca e itens para imobilização: "vc moveu a paciente?"
- Não, não mexi nela, e pedi que ela não se movesse. Só coloquei um travesseiro para estancar o sangue.
Eles a suspenderam e pediram minha ajuda para colocar a maca embaixo dela. Sobre a maca, lhe colocaram o colar cervical, e amarraram seus braços e pernas. Devido a eu ter tirado o carro da garagem, rapidamente a puderam colocar na ambulância. Agarrei sua bolsa, com seus documentos, e fui com eles na ambulância, na parte da frente, ao lado do motorista.
Muita aflita, lhe disse algumas vezes em voz alta:
-Tula, eu estou aqui, vc vai ser levada pro hospital, fique tranquila.
E a ouvi dizer aos bombeiros, para meu grande alívio:
-Eu sou viúva de um policial. Meu marido era major.
Eles sorriram. Pediram que eu lhes desse um documento dela. Lhes entreguei sua habilitação. Tentando checar seu nível de consciência, perguntaram seu nome completo. Resposta certa. Perguntaram a data de seu aniversário:
- Primeiro de novembro
O bombeiro fez um tsc, tsc, meneando a cabeça negativamente, pois o documento marcava 13 de fevereiro. Com muita felicidade, expliquei ao bombeiro:
-Ela disse a data certa, ela nasceu dia primeiro de novembro, mas foi registrada em 13 de fevereiro.
Menos de meio minuto depois chegamos à emergência do hospital particular. Como eu havia ligado, eles já estavam de sobreaviso, esquematizados para recebê-la com um neurologista. Foi imediatamente levada ao aparelho de ressonância magnética, enquanto fui encaminhada à recepção sem nem poder agradecer aos bombeiros pelo resgate.
Comecei a responder às perguntas da recepcionista, e percebi que estava a deixar impressões digitais marcadas em sangue por todo o setor de atendimento. Pedi para ir ao banheiro para lavar as mãos. Na volta, ela me informou que, como havia possibilidade de morte, a Guarda Civil precisava ser acionada.
Uns 5 minutos depois, sem que chegasse nenhuma notícia sobre o atendimento, chegou o Guarda Civil e a recepcionista me chamou. Ele começou a fazer perguntas sobre o ocorrido, e mesmo tentando ser o "mais sensível possível", pude detectar que uma das suas preocupações era se não teria sido EU a agredir minha avó na cabeça... Apesar de me sentir ofendida por esta simples insinuação, compreendi que era necessário ele descartar essa possibilidade.
Quando ele percebeu que não era este o caso, perguntou se eu verificara a casa toda, se não teria sido um invasor, um ladrão, a agredir minha avó. Sinceramente, isso nem passara pela minha cabeça. Lhe disse que a casa estava toda trancada, tudo no lugar, que com certeza tinha sido um acidente, com a dúvida subjacente de q eu nem tivera cabeça para verificar a casa, as jóias, os dólares, o quintal... Sim, era possível que enquanto eu socorria minha avó um ladrão tivesse ficado escondido no quintal e enquanto eu respondi a esta pergunta, a casa vazia poderia estar sendo saqueada... Mas isso era o de menos. Eu não sabia se minha avó sobreviveria, e isso era tudo o que me importava.
Logo Maria José chegou ao hospital, e então liguei para Renê e Regina, avisando do ocorrido. Sim, até para Regina liguei, e lhe disse: "se eu tivesse mãe e ela estivesse em risco de vida, gostaria que me avisassem. Por isso estou te avisando." Eu esperava q ela dissesse: "estou pegando o carro, em 2 horas estou aí", pois é o que eu teria dito nessa situação. Mas, com um suspiro de enfado, respondeu: "amanhã vou ver se dá pra ir..." Sem mais comentários...
Na recepção do hospital, algum tempo depois vieram chamar "a responsável pela paciente Shirley". Fui levada até sua maca. Ela estava consciente. Cheguei ao seu lado, e ao me ver ela me dirigiu um olhar eloquente, absolutamente indescritível, de alívio e confiança. Agarrou minha mão como quem dizia: "Estou viva!"
Não falei nada, virei minha cabeça para o médico e ele logo explicou:
- Fique tranquila, ela não teve traumatismo craniano. Ela sofreu um corte profundo na nuca, por isso sangrou tanto. Demos 4 pontos. Mas amanhã mesmo ela deve ter alta, sem nenhuma sequela, sem nenhum problema.
Uma lágrima rolou do canto do meu olho e eu sequer pude articular-lhe uma frase. Lhe dirigi um olhar pungente e tornei a olhar o rosto de minha avó, que a esta altura já sorria.
É verdadeiramente indescritível a sensação de ter salvo a vida da minha vó. E mais ainda, de que se todas a felizes coincidências que me levaram a poder fazer isso não tivessem se concatenado (a outra professora ter faltado e o diretor me dispensado mais cedo), e eu tivesse chegado às 22:40, eu a teria encontrado já morta, não com 1, mas com 3 litros de sangue derramados no chão.
Deus proveu. Eu a pude acudir. E ela pôde viver mais 3 anos. 3 anos nos quais viajou à Argentina, ao Sul e ao Nordeste, recebeu parentes, visitou parentes, foi alegre, seguiu a vida "de casa para o supermercado para o centro espírita" de que tanto gostava, viu mais umas 15 novelas, costurou várias dezenas de conjuntos de travesseiro e lençol para bebês doados a mães carentes. E pudemos conviver.
Nesse meio tempo operou-se das pedras na vesícula e da catarata, sem poder dirigir nem cozinhar por vários meses, nos quais fui suas pernas, sua motorista, seus olhos e sua cozinheira. Numa das vezes em que estava-lhe servindo de motorista devido à operação da catarata, reclamei que o trânsito me atrasaria e ela falou, como uma criança emburrada com os braços cruzados sobre o peito:
-Eu sei que eu sou um peso...
E eu pude lhe dizer, com todas as letras:
- Você não é um peso, você é minha avó e eu te amo, só estou reclamando do trânsito.
Ela não sorriu, nem falou nada, Tula era "dura na queda", e não era afeita a "demonstrações públicas de afeto", apenas colocou sua mão sobre a minha, que estava no câmbio trocando marchas e deu uma leve apertadinha.
Esse pequeno gesto, de ela apertando levemente minha mão foi mais eloquente que qualquer declaração de amor. Foi um gesto de confiança, que ela sentia na mão que ora lhe servia de motorista a mesma firmeza da mão que naquele dia, ensopada no seu sangue, a salvara. Foi como se ela tivesse dito : "obrigada por você estar aqui para me dar a mão, para me acudir, para dirigir e cozinhar para mim. Obrigada, simplesmente por você estar aqui e eu ter a sua mão para apertar, seus ouvidos para reclamar e sua voz para dizer que me ama."
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Muito linda a história!! :)
ResponderExcluir