terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

De Milena


Antes da era das redes sociais, era comum perdermos contato, mesmo com nossos amigos mais queridos. Este texto se refere a uma grande amiga-irmã q tive nos tempos de adolescente, com quem perdi contato por 15 anos, e de como me surpreendi ao reencontrá-la.

Milena morava a menos de 100 metros da minha casa, estudamos juntas por 2 anos, quando tínhamos menos de 15 anos. Éramos muito parecidas, em vários aspectos. Na aparência externa, na personalidade, no gosto musical, nas atitudes. Sempre andávamos juntas. Ambas tínhamos irmãs e famílias problemáticas, e passávamos horas comparando nossos problemas.

Muitas lembranças desta época tenho ao lado de Milena. No Ensino Médio, nos matriculamos em escolas diferentes, e eu mudei de casa, para outro bairro. Nesta época, antes do celular e das redes sociais, nosso afastamento foi natural; até nos ligamos algumas vezes, mas como não convivíamos mais na escola, as coisas deixaram de ser como eram antes, e cada uma foi seguir seu caminho. Mas eu sempre guardei um lugar especial em meu coração para ela.

Os anos se passaram, eu me mudei mais meia dúzia de vezes de casa, fiz faculdade, comecei a trabalhar. De vez em quando a lembrança de Milena passava pela minha cabeça, e a curiosidade de descobrir que rumo ela tinha dado à própria vida. Me perguntava se continuávamos parecidas, e quais caminhos divergentes o destino teria colocado à nossa frente. De tempos em tempos eu fazia buscas por seu nome, sem q nenhum perfil dela surgisse. Até q, um dia, apareceu.

A adicionei e mandei mensagem no estilo "Oi, velha amiga! Como vc anda? Vamos nos ver na próxima visita q eu fizer a Sampa?" Ela me aceitou e respondeu prontamente q da mesma forma, queria me reencontrar. Marcamos.

Reencontrá-la foi uma das experiências mais esquisitas da minha vida. Bati à porta de sua casa, e quando ela atendeu, não a reconheci, absolutamente. A desconhecida diante de mim abriu um sorriso, disse "Oi, Fê! Vc está igualzinha!" E, apesar de eu não saber com quem estava falando, a saudei e entrei, afinal este era o endereço q Milena me dera.

Me sentei no sofá e começamos a conversar. Aos poucos, analisei o formato do seu nariz, dos olhos, seu furinho no queixo e só então "caiu a ficha" q aquela era Milena mesmo. Eu não a reconhecera pois agora ela estava uns 30 quilos mais gorda, mas não era só isso. Outros amigos haviam engordado até mais. Não eram apenas os quilos a mais q me impediram de reconhecê-la, mas o fato de q, 15 anos depois, não havia absolutamente NADA nela q fosse parecido comigo.

Ela foi me contando sobre sua vida, seus trabalhos de recepcionista, secretária, auxiliar de escritório. Perguntei-lhe se fizera faculdade. Não, nunca tinha tido vontade. Se fizera outros cursos. "De informática". Mais algum? Não. Quantos namorados tivera. Dois. Dois? Sim, 2. E com o último se casara.

Me contou do seu marido, do seu casamento. Que após se casar, como o marido tem bom emprego, pedira demissão na primeira oportunidade, e agora era dona-de-casa. Como ainda não tinha filhos, lhe perguntei se estava tentando engravidar. Não, não pretendia ter filhos tão cedo.

Nada tenho contra a mulher escolher ser dona de casa. Desde q sua casa e família exijam sua dedicação exclusiva. Ao me falar q era uma dona de casa q não tinha nem pretendia ter filhos tão cedo, comecei a sentir uma angústia indescritível. Percebi então que usava roupas com desenhos infantis, falava com a voz infantilizada das pessoas profundamente inseguras, seus cabelos estavam penteados como os de uma criança. Mostrou com orgulho seus bibelôs e itens de decoração, todos em motivos infantis. Sem q houvesse nenhuma criança, ou sequer bicho de estimação, na casa.

Prosseguiu contando dos seus eternos desarranjos familiares, como ainda brigava toda semana com sua mãe e irmãs. Suas brigas com a sogra e cunhados. E minha angústia foi crescendo ao perceber como ela nada tinha "de sua vida" para falar, mas apenas de seus problemas. Não tinha projetos, planos, não estudava nada, nem à distância. Seus únicos assuntos, q ela matraqueva em voz esganiçada denotando certo desespero eram: o marido, as irmãs, os cunhados, sua mãe e sua sogra. E todas as histórias eram de como todos estes, menos o marido, infernizavam sua vida e estavam, sempre, contra ela.

A cada historieta, q eu ouvia apenas balançando a cabeça, minha angústia crescia. Não senti "pena" dela, pois mulher bem casada, com casa própria, não merecia tanto. Mas comecei a me perguntar se a história dela não teria se desenrolado de forma diferente se tivéssemos continuado amigas, e eu a tivesse influenciado mais.

Se, caso eu tivesse insistido mais em manter contato com ela, não poderia tê-la estimulado a fazer faculdade, ou ao menos cursos profissionalizantes. Se a tivesse chamado para sair algumas vezes, ela não teria tido a oportunidade de ter mais namorados, e não teria casado com o segundo rapaz q cruzou seu caminho. Se eu não poderia tê-la ajudado a ter mais empregos, oportunidades, experiências, outros parâmetros para "ampliar seu horizonte" de possibilidades.

Eu havia reservado a tarde inteira pra ficar com ela, na esperança q batêssemos altos papos, tomássemos umas brejas, déssemos várias risadas. Mas conforme ela incessantemente desfiava seus rosários de reclamações e relatava como ela era a "vítima do Universo", percebi q, além de ela não estar interessada em saber de minha vida, mas apenas em falar de sua própria, o cenário no qual a minha vida se desenrolava lhe era completamente estranho. Se eu lhe contasse as histórias q eu ansiava dividir com aquela Milena q era tão eu, a Milena de 15 anos depois ficaria chocada e não compreenderia muitas delas.

Conforme os minutos demoravam a passar, começou a crescer um certo nó no meu pescoço. Me perguntava: "como eu puder permitir q a Milena ficasse assim?" Percebi nitidamente q tê-la "abandonado" fôra péssimo para ela. Éramos então tão idênticas, e hj tão diferentes. Eu construíra uma vida. Fizera curso de operadora de Telemarketing, cursinho, passara em 3 vestibulares, estudara na USP, fizera inúmeros outros cursos, tivera meia dúzia de empregos, muito diferentes, tivera vários namorados, muito diferentes. Eu tivera uma vida plural. Ela não.

Eu enfrentara a vida com certo grau de coragem, saíra de casa, rompera com os maus parentes. Eu havia "aberto meus horizontes", dissera "sim" às oportunidades da vida. Eu escolhera "escolher", arquitetar um "plano" para meu futuro. Milena fizera todo o oposto. Escolhera a segurança de "deixar a vida" escolher os caminhos, ou não-caminhos, q ela trilharia. Escolhera não ter planos. Como as mulheres de antes da Revolução Sexual, via o "casamento" como seu único projeto e tábua de salvação. E, agora q estava casada, dizia sentir q sua vida estava completa, e q era muito feliz sendo apenas dona de casa.

Para mim, q escolhi construir meu próprio caminho, e ter "vida própria", ver minha amiga outrora tão íntima se dizendo realizada com uma vida q ao meu ver era tão vazia, me trouxe uma enorme dor no peito, um sentimento de culpa, de falha, tão gigantesco q na primeira oportunidade em q ela fez uma breve pausa no relato de seus muitos problemas familiares, lhe disse q tinha outro compromisso e q precisava ir embora.

Neste dia eu não reencontrei Milena. Mas visitei o pouco q restou dela. Ao chegar no meu carro, demorei longos minutos congelada, sem reação, antes de dar a partida. Sentia uma adaga rasgando o sentimento q eu tivera nesses anos de q, assim como eu seguira meu caminho, Milena teria seguido o dela. Durante esses anos eu imaginara q ela teria estudado, trabalhado, crescido, vivido. Mas percebi q ela permanecera parada. Sua maturidade psicológica, opiniões e assuntos continuavam "na altura" de uma pessoa de 15 anos, enquanto eu havia evoluído, me instruído, aberto minha mente, mudado minhas formas de pensar.

Antes de dar a partida, num lance de frustração, estapeei meu volante e gritei em voz alta: "Como eu pude permitir q a Milena ficasse assim?!"

Vi nitidamente q tê-la "abandonado", negligenciado nossa amizade, ter permitido q as circunstâncias da vida nos afastassem, tinha-lhe feito muita falta. Eu a teria "puxado para a vida", a teria instigado a abrir seus horizontes, teria lhe proporcionado outras experiências, q talvez a encaminhassem a "construir sua própria vida" e não a se "abancar" assim q conseguisse realizar seu único projeto: se casar. E o pensamento "e no dia q o marido dela se cansar de todas as suas neuroses e as brigas q ela arranja com a família dele? Q 'vida' restará a Milena, sem filhos, sem marido, sem profissão?"

Me senti culpada, angustiada, frustrada, derrotada, em dívida com ela, em certo ponto "revoltada" com os descaminhos da vida. E, sobretudo, arrependida por tudo q poderia, e deveria, ter feito por ela, mas não fiz, por negligência. O carinho q por ela acalentara à distância era uma ilusão, a de q ela estaria bem, enquanto não estava, e precisava de minha ajuda, minha presença, q lhe fizeram muita falta. Percebi o grande erro q cometera, e como agora isso era completamente irremediável. A antiga Milena não mais existia, e a nova Milena não era em nenhum aspecto parecida comigo. As coisas q ela falava me desconcertavam. E as coisas q eu falaria se ela tivesse me dado oportunidade, a teriam desconcertado, por serem completamente alheias ao seu Universo.

Reencontrar Milena foi uma frustração profunda. Provavelmente em nenhum momento ela se deu conta de minha angústia, o q só fez aumentar o meu pesar: q ela não perceba como sua vida é vazia, sem planos, sem projetos, como sua vida não tem vida.

Foi deveras melancólico perceber tudo isso. E o sentimento de culpa por minha pequena parcela de responsabilidade na não-vida de Milena prossegue a me incomodar, profundamente.

A vida é cigana. http://www.youtube.com/watch?v=h-vD3uf7aLQ

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