Essa pergunta traz muitos mais questionamentos do que os comuns. Normalmente esta dúvida seria acerca de uma questão envolvendo plágio, porém esta palavra não pode ser jamais aplicada ao genial, único e autêntico Pessoa. Este poeta lirou não apenas em si mesmo, mas em outras vidas, com outros nomes.
Fernando Pessoa é o poeta (que se utiliza) dos heterônimos. Essa palavra significa simplesmente "outros nomes", mas esse recurso estilístico não deve ser confundido com o pseudônimo (falso nome). O pseudônimo é uma espécie de "nome fantasia" que muitos autores usam para deixar resguardada sua identidade.
Fernando Pessoa não usa pseudônimos. Ele assina suas próprias poesias, não busca o anonimato. E além da lírica que assina com seu próprio nome, produziu lírica que assinou com outros nomes, sem resguardar seu próprio. Fernando Pessoa não é apenas Fernando Pessoa. É também Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e muitos outros. E esses nomes não são seus pseudônimos, mas seus heterônimos.
São também Fernando Pessoa seus heterônimos? Por muitas décadas não se soube. O próprio Pessoa não ajudou muito a esclarecer a dúvida. E por conta disso o Espiritismo Kardecista viu nele um psicógrafo, um médium tal qual Chico Xavier que escrevia obras que não eram suas, mas "sopradas" por espíritos desencarnados. Pessoa jamais autorizou ou desautorizou tal alegação. Talvez ele mesmo não soubesse se era médium. Consta que, por exemplo, escrevia como Álvaro de Campos quando "sentia um impulso indefinível para escrever". Seria esse impulso interno ou oriundo de algum tipo de influência externa, espiritual, de outra personalidade? Ou seria a própria personalidade de Pessoa a fragmentar-se, espalhar-se por outros nomes, e vida virtuais inventadas pelo poeta?
Pessoa não sabia, e nem nós seus leitores o sabíamos. Até que a crítica e a análise literária contemporâneas comprovaram por análises estilísticas e estatísticas que, sim, era Pessoa que falava, com seu estilo indisfarçável, através de seus outros eus.
E é apenas por conta dos recentes trabalhos de análise literária que escrevi "Fernando Pessoa via Álvaro de Campos" e não "Álvaro de Campos via Fernando Pessoa" pois tal ordenamento diria que o autor do poema é o Álvaro e não o Fernando. Na sentença "Fernando Pessoa via Álvaro de Campos" está dito que o autor é, ao fim e ao cabo, Fernando Pessoa.
Fernando foi Pessoas, no plural. Poeta de vida corriqueira, sem grandes aventuras novelísticas, inventou para si outros nomes, personalidades e vidas. O poeta não cabia dentro de si. Seu lirismo transborda a aparência e personalidade corriqueira das coisas, e pessoas. Transcende sua própria pessoa, virando pessoas. Muito já ponderei sobre os prós e contras de haver nascido no Brasil. Dentre os benefícios que aos poucos vou-me dando conta devo adicionar o compreender Fernando Pessoa em sua plenitude, em minha língua materna. O português é intrincadíssimo. Uma das mais belas, ricas e complexas línguas do mundo.
Uma vez estabelecido que foi o próprio Fernando Pessoa que escreveu "Tabacaria", o analisemos.
Este poema mudou minha visão sobre a vida. Hoje, depois de lê-lo, não sei como consegui trilhar meu caminho até aqui sem o conhecer. Ou melhor, sei. O trilhava trôpega (não que agora tropece menos, mas estou algo mais lúcida). Nesta poesia está tudo. Tudo o que pecisamos saber. O apanágio para a dor da existência. Uma chave interpretativa que abre as portas da compreensão. Até então eu não achava que nenhuma arte, poesia ou texto sagrado pudesse exprimir a ingrafável questão existencial básica: a dúvida primordial do sentido e propósito da vida. Pessoa não nos dá nenhuma resposta. Mas como é bela sua expressão do inefável!
"Não sou nada.(...)À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." "Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada." "Mas penso ser tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um,"
Consciência única e vária do "Eu". Pessoa é sublime pq percebe em sua individualidade a alteridade, a multiplicidade do mundo. Percebe o si nos outros. Vê a si mesmo em outréns. Ato impossível aos medíocres, e aos absortos na vida. É uma questão de perspectiva. Apenas quem apeia-se de si mesmo adquire a consciência da transpessoalidade. Eu não sou apenas eu. Sou apenas uma figura emblemática similar a outros "cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu". Minha humanidade, meus sonhos, minhas dúvidas existenciais não são só minhas: afligem toda Humanidade.
Pessoa externa sua consciência transpessoal de que não apenas ele se faz essas perguntas, que não apenas ele é inteligente e "genial". Reconhece-se apenas mais um dentre uma miríade de humanos que se consideram "Gênios", como ele. E a dúvida/certeza de que não basta ser gênio para se destacar.
"Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?"(...) "O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez."
"Tabacaria" é uma poesia sobre um "deitar de olhar novo" que ressignifica o que é comum. A mais trivial das banalidades: a vista que o poeta tem da rua defronte a sua janela. E desta rua Pessoa extrai o sentimento do mundo. Percebe ao mesmo tempo a realdiade e a irrealidade da existência, talvez falsa, da Tabacaria defronte. Do lado de dentro, a Tabacaria não é real, apenas sonho. Uma virtualidade que pode nunca se realizar.
Sonho de um gênio banal, que por mais genial que seja ou se considere, não há de "ganhar o mundo", em nenhum sentido. O mundo não é para os gênios. O mundo é de quem nasce com o ímpeto de o conquistar. Essência adversa (exterior) em relação ao poeta, cuja luz é interna, rouca e tão louca quanto a dos Napoleões nos manicômios.
"Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas"
Pessoa sabe que sua ânsia por reconhecimento é tão vã quanto o esperar ao alpendre de uma porta inexistente. Sabe que, tenha ou não gênio, o julgamento recairá para depois de sua morte. Morreu sem saber sua real estatura. Talvez. Diz ter falhado em tudo. Diz não ser nada.
"E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo."
E tudo isto é estrangeiro, como tudo."
Pessoa ecoa a multitude e vacuidade concomitantes no ser desperto. E que é apenas no vazio de dar-se um passo fora, ou atrás, de si que se pode ver "com nitidez absoluta" e que se fica lúcido "como se estivesse para morrer" e "não tivesse mais irmandade com as coisas" ao invocar-se como espírito alheio "a mim mesmo e não encontro nada". O poeta é um degredado, a quem tudo é estrangeiro. algo onírico, e irreal.
A poesia não nos oferece respostas. Pessoa não se encontra nesses versos. Vê-se num átimo além de si, e percebe-se preso. Ao quarto, à janela, ao vício da Tabacaria. Tudo se esvairá, até o planeta. E até a lírica será reescrita, reciclada, daqui a milhares de anos, numa outra língua, por outros seres, num outro planeta. Sempre igual, estúpido, inútil e real.
O cigarro, comprado na Tabacaria, onde não se compra só tabaco, é um símbolo, uma imagem, desta vida que se nos apresenta como real, que fumamos tão rapidamente e que some tão sem propósito nem finalidade quanto a fumaça, no ar. Inexistente, mas ainda real.
Para Fernando Pessoa a vida é como um vício, e ele se vê entre a lealdade ao "viver" (o ir à Tabacaria) e seu medo da vida (de sair do quarto), ou sua constatação de que o "viver" é irreal, e tudo é sonho. Mas a vida o puxa pra fora de si. Esteves sem metafísica e o dono da Tabacaria o chamam ao banal. Mas ao real?
A vida se esvai como fumaça enquanto o poeta pondera as virtualidades confortáveis e burguesas pelas quais nunca optará. O poeta não quer e sabe que não pode "ser feliz". Sabe que não pode comer chocolates com a mesma verdade que a pequena se refestela. Fosse "feliz" estaria mergulhado na banalidade das sensações, não poderia dar o perspectivo "passo atrás", não sentiria a necessidade de desermanar-se das coisas e não as veria como são: sonho.
Nesse poema Fernando Pessoa expressa sua compreensão de que a Tabacaria não existe: ela é Metafísica.
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