terça-feira, 13 de abril de 2010

O zero pedagógico

O assunto neste turno pode parecer desinteressante, mas asseguro que vale a pena o alerta.

Nossa escola está se especializando em produzir uma legião de fracassados. Nosso ensino público é uma produção em série de ineptos. A escola mais emburrece do que desperta.

Há muito eu já havia percebido que meu papel na educação era pouco mais que ocupar as horas de adolescentes aborrecidos e preencher números em quadradinhos de forma a simular a observação das “aprendizagens” dos alunos. Esta semana um artigo de Gustavo Ioschpe em “Veja” abordou este assunto (Brasil: a primeira potência de semiletrados?, edição 2160 de 14/04/2010).

A certa altura de seu artigo, Ioschpe diz: “Uma pesquisa de 2009 sobre alfabetização feita pelo Instituto Paulo Montenegro, mostrou que apenas 25% da população adulta brasileira é plenamente alfabetizada.” O texto segue surpreso com tal constatação. Por muitos motivos eu não fiquei nenhum pouco surpresa. Considero este número bastante razoável. Já passei de ano diversos alunos semi-letrados. Já formei no terceiro colegial muitos alunos semi-alfabetizados.

Por que eu faria tal coisa?

É o sistema. Vou explicar através de um exemplo prático que vivi. É a historinha do zero pedagógico. A coisa mais rara em uma escola são notas verdadeiras, que refletem algum real aprendizado. Isso eu não tive enquanto aluna e não forneço agora enquanto professora.

Enquanto aluna sempre fiz o mínimo necessário de cópias da lousa para passar de ano. Inglês, pro exemplo, eu falava bem melhor que a própria professora e fechei os 3 anos com C, C e C. O mínimo necessário. Agora como professora entendo e aplico, sem orgulho, o mesmo método. Funciona. Os alunos gostam. Aluno feliz é aluno que ganhou visto no final da aula.

É triste, mas me rendi rapidamente ao esquema cópia da lousa = visto = nota. Qualquer coisa muito diferente disso gera algo próximo ao caos pois nossos adolescentes parecem sempre à beira da histeria, procurando qualquer motivo para reações tribais. Até passar um simples filme está fora de cogitação em muitas escolas, pois a chance de alunos “fugirem” no deslocamento até a sala de vídeo, ou de eles ficarem a aula toda reclamando que o filme é chato ou de algo não funcionar ou se quebrar é tão grande, que o velho e seguro esquema da lousa e visto sempre parece a melhor opção. Me desculpem, mas controlar 5 adolescentes ao mesmo tempo já é difícil. Imaginem 35...

Pois bem: tirar nota comigo não é difícil. Fora os vistos, dou uns questionários (não muitos pois não faço trabalho voluntário para a Secretaria Estadual de Educação de SP) com consulta e alguns trabalhos. Raramente dou prova pois mesmo quando eu dou, a maioria cola de qualquer jeito. Como sei que não adianta eu puxar na nota se o conselho vai aprová-los, todos, de qualquer jeito, no final do ano, me resignei ao meu papel de entretainer infantil de longo prazo e dou todas as chances para eles atingirem as tais notas para que eu não tenha que passar pelo constrangimento de tê-las simplesmente alteradas pelos meus superiores.

Porém muitos alunos não fazem simplesmente nada. Absolutamente nada. E mesmo assim mantêm suas notas artificialmente no patamar do “mínimo necessário” para passarem de ano e gerarem belíssimas estatísticas para o Governo do Estado de SP. Essa parte não existia na minha época, ou eu não era esperta o suficiente para perceber. Hoje todos eles sabem. E o picadeiro “escola” está à mostra.

Ano passado, na sétima série, eu tinha um aluno assim. Nem chegava no nível de “aprendiz de marginal”, como muitos. Era só meio “vagabundo” mesmo, só queria saber de zoar com os coleguinhas e jogar videogame. O moleque religiosamente sequer abria o caderno. Na hora de fechar sua média, não tinha nenhum visto, nenhuma atividade. Que nota eu deveria dar-lhe? Ora bolas, zero! Bem redondinho. Não fez nada? Zero! Simples assim.

Qual não foi minha surpresa no conselho de bimestre de que não só eu havia sido a única a lhe dar um zero, como uma das únicas a dar-lhe nota baixa.

“Mas... zero?!” falavam os outros professores. Expliquei a situação e outros falaram que na matéria deles ele também não fazia absolutamente nada. Mas nenhum deles havia lhe dado zero. Um havia dado 1, outro 3, outros 5.

“Mas... por quê?!” ... Ora, ele tinha freqüência. Ele tinha presença, não faltava. Ele não ameaçava, não era agressivo com os professores. Logo, a errada era eu por ter-lhe dado zero.

Dessa forma, se um aluno simplesmente ficar parado na sala de aula, não fizer nada o ano todo além de responder chamada e olhar para a parede, ele também deve passar de ano, pois apesar de não ter feito nada, ele não foi agressivo nem atrapalhou as aulas. É fácil assim passar de ano na rede pública estadual de São Paulo.

Surpresa maior que a da reunião foi a do aluno ao me ver após receber o boletim: “Professora, você me deu zero?!” ele falou isso com cara de espanto, com os olhos arregalados, como que estupefato. “Dei sim, você não fez nada!”. Ele pareceu achar a resposta justificada e voltou para seu lugar algo cabisbaixo. Ele já havia levado muitas notas baixas, nunca um zero, bem redondinho.

Percebi que esse zero foi verdadeiramente pedagógico. Foi um não. Alguém havia mostrado ao menino que seu aproveitamento era completamente nulo. Este número lhe disse que ele estava errado. Depois disso ele não virou um aluno aplicado, mas pelo menos fazia alguma coisa aqui e ali de forma a que eu não pudesse no futuro negar-lhe um cinco.

Ao darmos notas fictícias aos nossos alunos estamos lhes passado a mensagem de que o aproveitamento deles, embora pífio, é suficiente. E é na escola que os alunos são “adestrados” para a convivência em sociedade e para o mundo do trabalho.

A progressão continuada, raiz dessas distorções, é uma regra que reza que o aluno não pode repetir de ano, a não ser por faltas. Como o aluno não pode ser aprovado com menos de 5 no boletim, os professores são obrigados, ou durante o ano ou apenas no conselho final a aplicar um artificial “5” em suas tarjetas, empurrando adiante o aluno e as estatísticas tão caras ao governo.

Os alunos que não repetem são os maiores prejudicados. Vítimas da sanha dos números e da propaganda política, é-lhes furtado rever aquilo que não aprenderam, é-lhes vetado o alerta, logo no início de seu desvio, de que seu aproveitamento é insatisfatório. Quando o aluno pouco faz ao longo do ano e é aprovado não só a escola fica desacreditada como ele próprio crê que, se a escola o aprovou, então ele já sabe tudo e não há nada de errado na forma como “estudou” ao longo do ano..

Estamos pregando-lhe uma peça. Lhe dizemos ao final do terceiro colegial que ele está pronto para o mundo. Mas ele não está, pois aprendeu que pode faltar e chegar atrasado o quanto quiser, pode apresentar-se sem uniforme, pode usar boné, bermuda e até chinelo, pode entregar suas obrigações fora de prazo, pode ficar o tempo todo “batendo papo” e passeando, pode desrespeitar quem ele quiser, até as maiores autoridades, que “não dá nada”, ele será, no final, aprovado.

Mas após formados ele farão essas coisas em relação à escola? Não mais. Farão isso com seus familiares, patrões e colegas de trabalho. Isso se conseguirem trabalho sendo incapazes de cumprir a mais simples tarefa. A escola é o microcosmo da sociedade. Se quem não faz nada é aprovado, que tipo de cidadãos e trabalhadores estamos lançando no mundo adulto?

Um comentário:

  1. Parabens pela perce~ção de que falar a verdade é mais saufdavel e permite o crescimento e a correção. Enquanto ficar maqueando só retarda a solução e aumenta o problema.

    Fiques firme no desafio que é ser educadora.

    Seja bem vindo em meu blog e que possa lá também ser edificado na Palavra.

    atalaiadocastelo.blogspot.com

    nicodemos

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