sábado, 25 de maio de 2013

Para gostar de cinema


Do primeiro filme iraniano, a gente nunca esquece. Também de nossos primeiros clássicos do cinema, daqueles filmados muitos anos antes de a gente sonhar em nascer. Filmes que são "clássicos" pela mesma razão que os "grandes livros" o são: tocam em "nódoas" emocionais inefáveis, muito difíceis de explorar em palavras, que apenas podem ser expressas por "parábolas", histórias exemplares em sua peculiaridade, mas epistolares em sua generalidade, que extrapolamos a nossa vida particular.

Eu tive a sorte de crescer numa casa chefiada por uma cinéfila. E não daqueles cinéfilos "metidos a intelectuais" que selecionam filmes por sua exclusividade, erudição e aparente incompreensibilidade. Para essas pessoas, quanto mais "difícil" o filme, tanto melhor.

Minha avó Tula era uma verdadeira amante da sétima arte. Inúmeras vezes me relatou como se lembrava com saudade de suas idas ao cinema ainda mocinha, na época em que as pessoas ainda não tinham televisão em casa. Contava com muita alegria dos grandes musicais que assistia com sua mãe e avó. Alguns desses filmes, protagonizados pelo galã Nelson Edy, compramos em DVD poucos anos antes de sua morte, e ela adorava reassisti-los no domingo à tarde, cantarolando suas músicas e dizendo entre suspiros:

- Não se faz mais filmes românticos como esses!

Quando eu era criança, ainda não existia TV a cabo no Brasil, e não fosse a cinefilia de minha avó, só teríamos a "Tela Quente" e os filmes pasteurizados da "Sessão da Tarde" à disposição. Mas ela nunca se contentou com isso.

Éramos uns dos melhores clientes da videolocadora, e muitas são minhas memórias de ainda criança indo acompanhá-la na seleção dos filmes que veríamos.

E não apenas de blockbusters, grandes lançamentos do cinema, eram feitos nossos fins de semana. Tula tinha ótimo gosto. Alugava filmes bons, de diversas origens. Adorava os chineses, sendo o "Clube da Felicidade e da Sorte" seu chinês predileto, mas igualmente com espaço para o "Clã das Adagas Voadoras", "Lanternas Vermelhas", "Adeus, minha concubina", "Comer, beber, viver"...

Também apreciava filmes europeus, um em especial de que me lembro foi a "Festa de Babbette", acompanhado de "7 noivas para 7 irmãos". Filmes considerados "obscuros", em preto e branco, como "Hellen Keller", tb eram sempre uma boa pedida em nossa casa. Todos os filmes de Romy Schneider dedicados à Imperatriz Sissi da Áustria, assistimos. Na mesma senda, também tenho bem gravado na memória "Os jovens anos de uma rainha", sobre a juventude da rainha Victoria da Inglaterra.

Também filmes de Hollywood, mas com grande qualidade, sempre figuravam em casa, como "A volta ao mundo em 80 dias", " Passagem para a Índia", "Duelo ao Sol", "Pimpinella Escarlate", "Indochina"...

Surpreendentemente, gostava muito dos filmes de Oliver Stone, e tínhamos em casa toda a sua trilogia sobre o Vietnã: "Platoon", "Nascido em Quatro de Julho" e "Entre o Céu e a Terra".

Cedo adquirimos dois videocassetes, e sempre que alugávamos filmes, fazíamos uma cópia, para reassistir sempre. Desta época data minha paixão pelo maior dos clássicos do cinema "... E o vento levou". Assistir e reassistir a este e outros filmes maravilhosos foi uma experiência definidora de minha personalidade.

Nunca vou me esquecer de quando alugamos "Acusados", clássico com Jodie Foster muito jovem. E de como fui "pega no pulo" por meu avô Vicente ao ver esse filme, pois chegou na sala justamente na cena mais violenta, a do estupro. Eu tinha uns 7 ou 8 anos, mas já sabia que não devia estar a assistir um filme "tão pesado". Tentei disfarçar, parei o filme assim que o percebi me supervisionando, mas não foi o suficiente para impedi-lo de depois recriminar minhas irmãs mais velhas e até à Tula por me permitirem ver um filme com cenas tão "gráficas".

Igualmente nunca me esquecerei da experiência de ver "As duas vidas de Audrey Rose", com um jovem Anthony Hopkins, e de como me abalou o suplício de Ivy, morta em uma sessão de hipnose, comprovando a "verdade" da reencarnação.

Mas também nunca me esquecerei de meu primeiro filme islâmico "cabeça". Para quem nada entende da empoada cultura dos cinéfilos, não há nada mais hype, mais "chique" que assistir a um filme obscuro off-Hollywood. E várias foram as ocasiões nas quais, já adulta, fui convidada por intelectualóides que queriam reforçar sua "finesse" divulgando aos outros que "assistiam a filmes iranianos", turcos, indianos: quanto mais longínqua a origem, tanto mais "intelectual" era o expectador.

Mas minha vó não era do tipo de pessoa que "assistia a filmes iranianos só pq eram iranianos, e isso é très chic". Ela assistia a filmes que fossem bons, se não eram mainstream, era só detalhe, que ela nem levava em consideração.

E assim chegou à minha vista o maravilhoso filme turco "Berdel". Eu era criança, e só o fui compreender plenamente muitos anos depois. O filme retratava uma situação familiar islâmica: um homem casado há muitos anos tinha apenas filhas mulheres. Querendo muito ter um filho homem, faz uma troca: entrega uma de suas filhas em casamento a um colega, e em seu lugar recebe como esposa uma parente dele. A nova esposa é muito mimada, na esperança de que providencie o filho homem que ele tanto queria. Ela engravida, e é cumulada de presentes. Sentindo-se relegada, sua primeira esposa sai de casa, e só depois se descobre grávida. Ao nascer o bebê da segunda esposa, a "má" surpresa: mais uma menina. Meses depois nasce o bebê da primeira esposa, já separada: finalmente vem o varão tão esperado, e sua mãe morre no parto. O arrependimento do pai dessa família, ao perceber que havia "desancado" a primeira esposa, que morrera ao lhe dar o "filho homem" tão sonhado é uma daquelas coisas, daquelas experiências estéticas e emocionais, que não tem preço, e que aprofundam nossa alma em muitos centímetros.

Desde criança, eu sempre soube valorizar essa cultura cinematográfica ampla que a convivência com minha avó amante do bom cinema me proporcionou. Enquanto meus amigos apenas podiam citar e se lembrar dos "sucessos do cinema" do dia, eu era bem versada em todos os grandes clássicos. Antes dos 12 anos já categorizava os filmes por diretor, e dizia coisas como:

- Kubric é uma experiência pós-moderna. Woody Allen é irônico. Tim Burton é tétrico. Steven Spielberg, pega pela emoção. Já David Lynch é surreal.

Zefirelli, Antonioni, Bertolucci, Fellini, Costa-Gravas, Hitchcock, Scorsese, Tarantino, Polanski, Chaplin, Coppola, Buñuel, Bergman, Milos Forman, Akira Kurosawa, Kieslowski, Ridley Scott, George Lucas, Truffaut, Orson Wells, Billy Wilder, Win Wenders, Attenborough, Pollack, Tornattore, Herzog, Brian de Palma, Zemeckis, James Cameron, Almodóvar e Hector Babenco, eram meus "companheiros", minhas referências culturais, meus "amigos íntimos".

A todos esses conhecia mais que a meus vizinhos, e de sua "visão de mundo" já me sentia bem versada. "Ver a vida" pelos olhos, pelo escopo, desses grandes cineastas foi uma experiência determinante, transformadora, enriquecedora. Ampliou minha visão, minha interpretação, minhas possibilidades diante da vida.

Crescer exposta a essas experiências estéticas aumentou em centenas de matizes minhas possibilidades de expressão, compreensão, fruição. Meus tons de cinza que separam o "certo" do "errado" ganharam mil complicações, mil discursos, mil viezes, mil possibilidades.

Hoje, que se completam 3 meses do falecimento de minha avó Tula, venho mais uma vez prestar homenagem e dar graças por ter tido em minha vida uma pessoa que tão bem me influenciou, que tantas experiências diversificadas e enriquecedoras me proporcionou. Muchas, muchas gracias, mais uma vez, por tudo, Tula. Sua presença, sua influência, é fundamental para mim. E sempre será.

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sábado, 11 de maio de 2013

Da chupeta

Chupeta é um acessório de plástico que simula o bico do seio materno, e é usado como forma de "acalmar" aos bebês quando choram. A chupeta é o primeiro engodo que os pais fazem aos filhos. Ao enfiar esta peça plástica na boca da criança, ela instintivamente começa a sugar, na esperança, vã, que dela há de sair leite. E ainda que não saia leite algum, prossegue a sugar.

Alguns consideram que o uso de chupeta é o primeiro vício a que somos expostos. E alguns pais relutam, ou mesmo simplesmente se negam a fornecer este objeto ao bebê. Há inúmeras teorias a respeito.

Mas este não é um texto antropológico sobre este objeto, mas o relato de como eu, particularmente, a deixei para trás. Sim, mesmo já tendo 30 anos, ainda me lembro do exato dia em que deixei de usar chupeta.

Foi tardio. Eu contava 6 anos e já há muito tempo vinham me amolando para que eu não mais a usasse. Embora a chupeta seja um acessório para bebês, é comum que crianças passadas dos 3 anos tenham grande dificuldade em prescindir dela. Especialmente se foram precocemente desmamadas, e, como eu, tenham sofrido traumas de separação. 

Eu era bastante carente emocionalmente e a chupeta era uma muleta, que me trazia segurança e conforto. Não conseguia viver, nem dormir, sem ela. Conforme eu crescia a pressão familiar aumentava, e até eu percebia que chupeta era coisa de criança, e usá-la tornava-se mais e mais inadequado, conforme eu deixava de ser um bebê.

Mas já aos 5, 6 anos eu já era exatamente a mesma Fernanda que sou hoje, que não aceita ser comandada, não acata ordens, e não se conforma em ser manipulada para qquer direção que não a que eu queira seguir. Nenhuma chantagem, conversa ou ameaça infantilóide me faria abdicar da chupeta. Apenas uma pessoa seria capaz de me convencer disto: eu mesma.

E foi apenas quando eu mesma percebi o quanto seria cada vez mais ridículo prosseguir a usar chupeta que me decidi a abrir mão dela, e anunciei aos meus familiares: 

- Vou usar chupeta até meu aniversário de 7 anos, depois disso, vou parar.

Eu tinha 6 anos. Mas então, como hoje, meu dito já valia um escrito. Eu já era uma pessoa de palavra, e eu mesma tinha me convencido de que abdicar da chupeta era conveniente e necessário. Marquei uma data, estabeleci um compromisso.

E o cumpri. O dia 29 de dezembro de 1988 foi o último no qual me permiti aproveitar desse acalanto artificial, desse enganoso prazer do se sugar um bico de seio plástico, que nada nos traz além de ilusões vazias.

Demorou muito mais tempo para eu perceber outras ilusões vazias, feitas de sonhos e expectativas que jamais se realizariam. Demorou muito mais tempo para eu perceber que, assim como não importava o quanto eu sugasse, nenhum alimento sairia da chupeta, não importava o quanto eu exigisse, aos prantos ou aos gritos, amor de quem deveria, por "obrigação social" me dirigir este sentimento, eu nunca o receberia.

Demorou para eu perceber que se vc precisa EXIGIR amor de alguém que o deveria dar voluntariamente, vc está a esmurrar uma parede achando que ela é uma porta: não importa o quanto vc bata, ela jamais irá se abrir. O amor deve necessariamente ser voluntário. Se quem o deveria te dar não o dá, de nada adianta se revoltar, protestar, gritar aos quatro ventos. Ou a pessoa te ama pq ela quer ou ela nunca te amará.

Demorou, muito, para eu perceber que de nada servia eu reclamar do desamor, falta de cuidados e descaso de minha mãe biológica. Nenhum protesto meu faria Regina "cair em si" e virar uma "boa mãe", pois ela já era uma péssima mãe antes mesmo de eu nascer, já tendo abandonado 2 filhas. Aliás, ela não pode ser chamada de uma "mãe boa" ou "mãe ruim" pois ela sequer atinge ao patamar de "mãe" para então ser adjetivada como "boa ou ruim".

Neste dia das mães, data comercial mas significativa para muitos, é como um ato de superação pessoal que, assim como aos 6 anos de idade resolvi, para todo o sempre, deixar para trás o vício da chupeta, tb procurarei deixar para trás o vício de me lembrar de Regina. Colocarei uma pedra sobre ela, assim como coloquei sobre a chupeta. A deixarei para trás, no passado, na lixeira, no esquecimento. Ela foi demitida por justa causa.

Minha mãe, a partir de hoje e para todo o sempre é Maria José Tomasella. E será dela que eu falarei quando disser a palavra "mãe". Já explorei à exaustão diversos dos motivos que me levaram a desconsiderar Regina, a deletá-la de minha vida. De hoje em diante, procurarei NUNCA MAIS me lembrar dela. E sempre que, de hoje em diante, os leitores aqui lerem a palavra "mãe", é de Maria José Pereira da Silva Tomasella que estou a falar.

Se com 6 anos meu dito já valia um escrito, aos 30 anos, meu escrito vale um compromisso. Pétreo. De hoje em diante, "Regina" é um assunto superado para mim. Ficará num passado triste que procurarei nunca mais revisitar.

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