O ano era 2004. Eu residia no condomínio Viadutos, à praça General Craveiro Lopes, na Bela Vista, ou Bixiga, centro de São Paulo, em frente à Câmara Municipal, entre os viadutos Jacareí e Maria Paula.
Cursava o terceiro ano de faculdade de História na USP. Embora enveredasse pelos estudos judaicos, ainda me considerava a quarta geração de espíritas kardecistas de minha família.
Estava "em crise": acabara de terminar um relacionamento de 4 anos, e tinha vários problemas familiares. A 200 metros de minha casa, ficava a Federação Espírita do Estado de São Paulo. Num dia ensolarado, resolvi fazer uma visita.
Não posso dizer que tenha sido despretensiosa. Foi a primeira vez em muitos anos que entrava em um centro espírita. Desde pequena, nunca gostei muito de ir "ao centro" (fosse outra a minha religião, diria "ao templo" ou "à igreja").
Acho que o que mais me incomodava era uma certa percepção de "hipocrisia", não contra a religião espírita, mas a respeito das pessoas em geral. Era algo plenamente perceptível na postura, no tom de voz. Fora do ambiente religioso, quotidianamente, as pessoas tinham uma voz e uma postura natural. "No centro" eu percebia que as mesmas pessoas se comportavam de outra forma, falavam de outra maneira, tentando "passar uma imagem" melhor de si mesmas do que aquela que era perceptível no seu dia-a-dia. Mesmo que isso seja natural, e compreensível, sempre me incomodou, e me afastou de "ir ao centro" pois sentia que lá as pessoas meio que "faziam pose de boazinhas, evoluídas", e fora deste ambiente, "relaxavam" e voltavam a seu "eu espontâneo", falho, "real".
Quando qualquer pessoa me perguntava se eu "ia na igreja", minha resposta-padrão era:
- Não vou a nenhum centro religioso. Religião, para mim, não é algo que se pratica uma vez por semana, "no culto", é algo que se transpira, que se VIVE no cotidiano.
Mas apesar de minha "aversão" à "religião institucionalizada", sempre respeitei o Espiritismo Kardecista, especialmente por não cobrar, nem aceitar, dízimo dos fiéis. Sociologicamente, os espíritas tendem a ser pessoas instruídas, estudadas, que se relacionam com sua religião a partir da leitura, não de experiências místicas, transcendentais, "miraculosas".
Vendo-me num momento complicado, apesar de minha postura algo cínica, vi que "não haveria mal algum" em ir à Federação Espírita, nem que fosse só para me decepcionar e "desencanar de vez".
A Federação Espírita do Estado de São Paulo ficava a 200 metros da minha casa, portanto não havia desculpa. Juntei coragem e fui. Subindo a pequena escadaria branca, percebi que havia uma fila de pessoas no hall. Brasileiros têm certo fascínio por filas. Se há uma fila de pessoas, algo de "interessante" elas devem estar aguardando. Fui ao fim da fila e perguntei à última pessoa para o que ela era. Me disse "esta é a fila da palestra".
Espíritas não têm "culto" nem "missa", mas sim palestras, estudos. Minha avó Tula era palestrante no Centro Espírita Fé e Caridade, em Rio Claro. Portanto, eu sabia o que esperar de uma "palestra espírita". Aguardei ao fim da fila, e quando as portas foram abertas, entrei num grande parlatório, com mezanino, parecido com aqueles que a gente vê de madrugada na TV nos cultos evangélicos. Acostumada que estava ao acanhado "Fé e Caridade", admirei-me com o tamanho do lugar e o número de assentos disponíveis.
Eram 3 os palestrantes, se apresentaram como profissionais liberais, passaram suas "mensagens do evangelho" com aquele típico tom de voz dos palestrantes espíritas que eu ouvi em minha própria avó tantas vezes. Só no centro, não em casa. Terminada a palestra, disseram:
- Quem estiver precisando de atendimento personalizado, a seguir teremos orientação doutrinária no subsolo.
Como não tinha mais nada fazer, e já estava por lá, fui ao subsolo e peguei mais uma fila. Quando chegou minha vez, entrei na sala de atendimento, com umas 5 mesas, nas quais espíritas experientes "atendiam" aos visitantes. Me indicaram a mesa de uma senhora de cabelos brancos, com a mesma aparência respeitável das "senhorinhas espíritas" amigas da minha avó no Fé e Caridade.
Apesar disso, minha postura era algo cínica, de dúvida, como se estivesse diante de uma cartomante. Desde antes de sentar, já tinha decidido que falaria o mínimo possível, meio que "testando" a autenticidade de quem me atendia.
Muito simpática, com aquele típico "tom de voz espírita", professoral, perguntou o que me levara até lá. Respondi simplesmente:
- Estou à procura de orientação.
Ela olhou bem fundo nos meus olhos, pegou minhas mãos nas suas, tremeu levemente, e disse suavemente:
- Você tem mediunidade...
Achei que tinha sido uma pergunta e disse que não, que na verdade "tinha medo de espíritos". Ela não chegou a sorrir, mas suas bochechas se retesaram evidenciando seus pés de galinha, e nesta expressão compreendi sem palavras seu pensamento:
"Eu não perguntei se vc tem mediunidade, eu constatei que vc tem mediunidade."
Pegou uma folha de papel e começou a escrever o nome de uma série de cursos oferecidos pela Federação Espírita. Começou a falar comigo como se "soubesse do meu passado" de "espírita ancestral", ainda que nada eu tivesse lhe revelado.
Começou a me dar uma série de orientações: você deve fazer o curso tal, depois o curso tal, depois o curso tal... Enquanto eu me perguntava se ela "falava isso para todo mundo" ou era algo específico, personalizado, quando ela concluiu:
- Eu sei que você é uma pessoa intelectualizada, cheia de dúvidas sobre a espiritualidade. Mas estou te esclarecendo o caminho que eu vejo que você pode seguir no Espiritismo, pois tem todas as potencialidades. A sua intelectualidade pode ser usada em prol da espiritualidade, dentro do Espiritismo.
Percebeu minha postura reticente, questionadora, duvidosa. Mais uma vez pegou minhas mãos e disse:
- Mesmo que você ainda não se sinta pronta, pense. Guarde este papel. Um dia, quando chegar a hora, você compreenderá.
Não sei se já chegou esta hora. Na verdade, sei que ainda não veio. Ainda guardo o papel com suas orientações. Continuo a ter "medo de fantasmas" e de minhas capacidades mediúnicas. De certa forma, as renego, procuro ignorá-las, não alimentá-las. Nunca investi nisso, nunca me senti apta.
Mas sempre percebi uma série de intuições, insights, coisas "cinzas" inclassificáveis em minhas experiências pessoais cotidianas. Embora racionalmente eu ainda rejeite tudo isso, não posso deixar de percebê-las. Guardo certo medo de "ver além" e perder o controle das coisas que não compreendo, que sinto estarem "acima" ou "além" do eixo cartesiano, de tudo o que pode ser determinado, classificado, medido.
Acho que minha mente ainda está "fechada" e não quer ver as coisas que aquela senhora percebeu em mim.
Muito me surpreendeu que ela tenha me tratado como uma "espírita escolada", mesmo que eu não lhe tenha dito praticamente NADA sobre mim. Parecia que ela "já sabia" de tudo que não lhe falei. Senti-me como uma aluna diante de uma professora que a constata "em nível avançado" e já na quinta série recebe orientações de como entrar em Harvard.
Talvez seja este o caso, talvez não. Nunca "rompi definitivamente" com o Kardecismo, pois nunca vi necessidade disto. Primeiro porque esta não é uma religião na qual exista "conversão" e "desconversão" dos "apóstatas". Segundo pois, embora já tenha percebido inconsistências e até falhas teológicas em sua doutrina, ainda considero o Espiritismo uma religião digna de respeito, que não se envolve em escândalos, que não cobra nada em dinheiro de seus adeptos. Terceiro, pois mesmo me aprofundando nos estudos judaicos, ainda não constatei nenhuma "falha fundamental" na doutrina espírita, fora a questão "de Jesus", que precisa ser relativizada, e compreendida culturalmente no Ocidente.
Hoje, não sei sinceramente se continuo "espírita" ou não. Mas posso dizer que nunca me decepcionei com nada desta religião. E que esta visita apenas avolumou meu respeito pela doutrina. O fato de a senhora que me atendeu ter me encaminhado a "estudos superiores espíritas" mesmo sem saber de minha história de vida e meus estudos universitários, me surpreendeu bastante e reforçou minha admiração por seus praticantes graduados.
Ela sabia quem eu era, ainda que nada tivesse lhe dito. Não descarto a possibilidade de um dia fazer a série de cursos que me indicou. Mas ainda me sinto muito "racional, cartesiana", e pouco "intuitiva, metafísica".
Ainda não me sinto pronta. Nem sei se um dia estarei.
.