domingo, 15 de maio de 2011

Gelato Sappore di Vendetta

Há poucas forças humanas tão motivadoras quanto a calculada frieza racional forjada no esfacelamento de seu próprio ego e de todas as certezas pretéritas. É deveras perigoso encurralar, anular e aviltar a outrém sem provocação. Nunca devemo-nos esquecer das leis da própria natureza, principalmente daquela que professa que para cada ação há uma reação de igual intensidade em sentido contrário. Ou como diria poeticamente Antoine de Saint-Exupery: “És eternamente responsável por aquilo que cativas”.

Do ponto mais baixo de nossas vidas só há um caminho para ir: acima. Uma visão permanente, uma idéia fixa, e encontramos força para escalar. E a busca da reparação das injustiças sofridas é força motriz de guerreiros capazes de derrubar impérios. Foi no fundo do poço que Edmond Dantes encontrou sua postura de Conde de Monte Cristo no clássico de Alexandre Dumas. O exemplo é ruim, mas ainda assim vai: foi na prisão que Adolf Hitler escreveu Mein Kampf. Foi apenas por sua condição de sentenciado a prisão perpétua que Nelson Mandela conseguiu destruir o Apartheid. Foi em sua primeira prisão que Fidel Castro já começou a dizer: "A História me absolverá". Quantos mártires imolaram-se obtendo o sucesso de sua causa? Foi apenas após o ultraje derradeiro, acima do qual não haveria maior possível, o Shoah / Holocausto que o povo judeu finalmente pôde retornar à sua Terra Prometida, e nela gozar a benemese de ser um povo livre e com pátria.

Um dos principais motivos de infelicidade e desorientação na vida humana é o fato de enganarmo-nos profundamente sobre quais são nossos objetivos na vida. Seres humanos comumente consideram que seu objetio na vida é “Ser feliz”. Tolice infantil. Jamais algum ser humano um dia se sentará no seu sofá e pensará consigo "Eu sou completamente feliz". A infelicidade, ou a busca por uma felicidade imaginária move a própria vida e nos faz sair da cama pela manhã. A felicidade é um moinho de vento, uma construção puramente imaginária, mítica e irreal tal qual o unicórnio e as sereias.

Há certa frase famosa do poeta russo Vladimir Maiakóvski: “Dizem que em algum lugar / Parece que no Brasil / Existe um homem feliz. Vivo já há 28 anos no Brasil e posso afirmar: nunca o encontrei e desconheço onde tal cidadão resida.

“Ser feliz”. Parece simples e fácil como o enredo de uma música do Roberto Carlos, de uma telenovela, ou de um comercial de margarina: “Felicidade” seria encontrar, conquistar e casar-se com aquele que cremos ser “nossa alma-gêmea” ou cara-metade. E com esta pessoa constituir uma família pequeno-burguesa que inclui no pacote alguns filhos, casa própria, carro se possível novo, algumas viagens de férias, um poodle, tudo arrematado por uma longa e marásmica velhice animada de vez em quando pela visita dos filhos e netos. E por seu cuidado nos anos finais de velhice.

Esse é o enredo básico da “vida feliz” no Ocidente.

O que inquieta é que o seguimento pleno do roteiro não só não garante a Felicidade como é quase certeza de infelicidade, irrealização e um certo sentimento muito comum de ter-se desperdiçado a vida, jogando-se fora muitos anos com um casamento "que não valeu a pena". Mesmo os que seguem tin-tin por tin-tin tudo certinho, pouquíssimos, mesmo que apenas vistos de fora, expressam em sua personalidade algo que poderia ser chamado de “satisfação consigo próprio”, o que creio que seja bom índice para auferir o “índice de felicidade” de alguém.

Esse modelo de felicidade não só é ineficaz como deixa implícito que as demais pessoas existentes ou do porvir podem e devem ser instrumentalizadas como um objeto que proporciona felicidade tanto quanto uma banheira de hidromassagem ou um pedaço de torta holandesa. Que se deve procurar a Felicidade na posse exclusiva, ciumenta, passional de outrém e que a forma de “amarrar” ou cimentar tal relação e compromisso é o gerar filhos. Que desde seu nascimento são instrumentalizados como projetos da auto-realização parental. Filhos são objetos para se atingir orgulho narcísico tanto quanto parceiros sexuais são instrumentos para se obter prazer sensual e posição social.

Muito comum é o ouvir-se, especialmente a respeito de mulheres: “Coitada, nunca se casou.” Ou “pobrezinha, não conheceu a felicidde de ter filhos”. E mulheres que já são mães dizem que só após nascidos seus filhos conheceram a “verdadeira felicidade” e vida ganhou “real significado”. Casar-se e ter ao menos 1 filho é o "mínimo" que alguém tem que fazer para dizer que teve uma "vida normal" e "realizada". Tudo ilusão. Tudo vão. Tudo vento.

Esta idealização pequeno-burguesa da maternidade como o "ápice" da condição feminina é muito mais deletéria do que se pensa a princípio, se combinada à iniciação sexual precoce e irresponsável das adolescentes. 2 casos simbólicos:

1 – Quando eu estava no colegial uma colega de sala tinha uma filhinha com meses de idade. Numa conversa ela revelou que sua filha nascera quando ela tinha 14, mas ela engraidara ainda com treze. Perguntei se ela ficou com medo quando descobriu que estava grávida. Respondeu-me que não. Sua gravidez não fora acidental, mas planejada. Seus pais eram contrários a que ela tivesse um namorado sendo tão jovem e a melhor forma de fazê-los engolir seu namoro, obviamente, era engravidar. Desnecessário arrematar que quando a conheci, já com 15 anos, o pai de sua filha já era seu ex-namorado.

2 – Poucos anos atrás, ao encontrar um ex-namorado meu perguntei-lhe como andava sua vida e disse-me assustado que sua atual namorada, bastante jovem, era completamente louca. Queria desesperadamente sair da casa de seus pais e já o arrastara para ver “móveis e roupinhas de bebê”. Disse que nem conseguia mais transar com ela pq sabia que ela estava querendo engravidar para fazê-lo engatar com ela algo mais sério que um namorico. Claro que o sonho máximo da adolescente irresponsavél é o casar com o seu primeiro amor, seu "High School Sweetheart", ou seja, comprometer-se com o primeiro perdedor que cruzou seu caminho ao dele engravidar, sucessivas vezes, para “cimentar ainda melhor a seriedade do compromisso”...

Embora a maioria dos adultos considerem que adolescentes e jovens mulheres engravidam “por descuido”, não há nada mais irreal em tempos de plena informação sobre métodos contraceptivos e farta distribuição de camisinhas. Adolescentes engravidam pois são meninas mimadas que não têm pudores nem escrúpulos em instrumentalizar um ser que ainda nem existe, para atingir seus objetivos egoístas imediatos: conseguir mais liberdade, “prender” um homem, sair da tutela paterna, obter status social através do casamento e da maternidade.

Curioso que em nenhum momento essas adolescentes pensam que apelar a “meios tortos” para obter a Felicidade pode na verdade transformar a busca numa conjectura inverificável, e em cujo triste desenrolar desfaz-se não só a vida da gestante sonhante, mas também da criança inocente. E que ao abusarem de sua liberdade estão não apenas prejudicando à própria vida, mas a de seus pais que serão, seguramente, os responsáveis financeiros por seus netos, além da própria criança que já nasce em situação capenga, filha de alguém que nem pode se suster nem tem maturidade para fazer escolhas deste quilate. E infelizmente é comum a estes “pais” quando adultos de forma alguma considerarem que cometeram qquer tipo de erro no passado. Morrer sozinho, ou sem deixar filhos é socialmente considerado um retumbante fracasso. Mas creio que mais humilhante que isso seja admitir e desculpar-se por seus próprios erros.

Sempre fui uma pessoa muito responsável, não só com a minha vida mas com as vidas que poderia vir a cativar. Muitas vezes tive relacionamentos sérios nos quais cheguei a sonhar em incluir filhos. Porém sei bem distinguir sonho de realidade e conheço as conseqüências de tal desdicha por haver sido pessoalmente vítima da desestruturação familiar que uma, ou duas, ou três, gravidezes irresponsáveis podem suscitar às maioes vítimas destas gestações: os próprios bebês. Por isso jamais brinquei com meu sistema reprodutivo. Jamais engravidei por não ter, até hoje, uma confortável situação financeira. E mesmo quando a tiver, pensarei realmente muito seriamente a respeito antes de sair engravidando por aí do primeiro que cruzar o meu caminho, como muitas vezes fazem as mães adolescentes. Nunca pretendi repetir os erros dos que me precederam. E até agora jamais os cometi, graças a Deus!

Escrevo isso pois esta noite tive um sonho que me fez sentir genuinamente autêntica felicidade, do tipo que é duradoura, eterna, pois é advinda da percepção de um certo “clique” de Justiça encaixando-se nos Multiversos. A Felicidade que alguém que sente-se reparado, elevado, restaurado. Felcidade é sentir-se reparado por uma injustiça sofrida. Infelicidade é sentir-se desprezado, abandonado, prescindido, tratado com descaso.

No sonho eu estava sentada em meu local de trabalho lendo ao jornal, despreocupadamente. Eu era mais velha do que sou hoje, algumas décadas. De repente, num virar de página a manchete: “Morador de rua encontrado morto. O corpo do catador de latinhas Ambrósio também conhecido como Lampião foi encontrado carbonizado na madrugada desta quinta-feira”. No sonho lembro que ainda dei uma revirada de sobramcelha como que duvidando, ou achando ser uma coincidência esdrúxula. Ao virar a página seguintedeparei-me com a foto de uma velhinha recurvada cobrindo o rosto com as mãos, com a aparência lastimável. Aquela mão, mesmo manchada, recurvada, coberta de pintas e rugas, eu reconheceria entre um milhão de outras mãos. A foto acompanhava a manchete: "Asilo fechado por maus tratos aos idosos".

No sonho eu me virava para meu colega de trabalho sentado na mesa ao lado e lhe dizia, enquanto fazia barulho ao puxar o ar:

- Sente?

Ele também deu algumas cafungadas, cheirou as próprias axilas e arrematou:

- Sinto o quê?

- O inebriante aroma da desforra! O verdadeiro cheiro da Felicidade! É como um Gelato Sappore di Vendetta.

Se a vingança é um prato servido frio, como um carpaccio, a desforra é servida gelada, como um sorvete. E é muito mais deliciosa.


Raul Seixas - Mosca na Sopa

Richard Ashcroft - Break The Night With Colour

Epístola aos Efésios 6:
4 Pais, não dêem aos filhos motivo de revolta contra vocês; criem os filhos, educando-os e corrigindo-os como quer o Senhor.

Um comentário:

  1. Olá Fernanda,

    "Sobre todas as coisas", obrigado pela visita ao meu cantinho. Ao retribuir-lhe, tenho a grata satisfação de encontrar um blog super, extra, mega, ultra "pimpão" (como se diz lá minha "terrinha").

    Muito agradecido! Vou segui-la com prazer!

    ResponderExcluir

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