quarta-feira, 12 de outubro de 2011

De minha breve experiência corporativa

Não consta de meu perfil no Facebook, mas ainda assim é verdade: já trabalhei numa empresa multinacional. De forma terceirizada, como é típico no século XXI, mas ainda assim dava expediente diretamente na sede administrativa da empresa.

Escrevo isso pois no dia de hoje, conversando com colegas de trabalho também professores, ao relatar essa minha experiência profissional, muitos disseram que eu era louca de ter deixado “um emprego de escritório numa multi-nacional, no ar condicionado” para ir dar aulas. Discordei e apresentei alguns argumentos para tal, sem tocar no ponto principal, e delicado, que resolvi trabalhar aqui.

Mas partamos do princípio.

Quem faz bacharelado em História tem uma dificuldade tremenda em obter estágio, que não é obrigatório, devido à escassez de empresas e instituições que lidem com a construção da História no Brasil. Apesar disso, durante a faculdade me foi oferecido, a título gratuito, uma vaga de estágio na empresa “Grifo Projetos Históricos e Editoriais” por minha amiga Luciana Martim Ferraz, que estagiava por esta empresa no Centro de História Unilever Brasil e estava a se transferir, ainda pela Grifo, para o CENPEC.

Lu me abordou, me perguntou se eu estava procurando estágio, e ainda que não estivesse, respondi que sim. Explicou-me sua transferência e indicou que me apresentasse no dia seguinte no “Centro Empresarial” pois estavam selecionando um substituto para sua vaga. Fui, fiz uma breve entrevista, dei a referência de ter sido indicada “pela Lu” e em 5 minutos a chefe Rosimeire Santos disse que eu estava contratada. No mesmo dia dei meu primeiro expediente.

Trabalharia 5 hora por dia para ganhar R$500,00 por mês, sem vale alimentação, sem vale transporte, sem registro em carteira. Dinheiro pouco, mas que faria toda a diferença em meu apertadíssimo orçamento de universitária uspiana que pagava quase isso só de aluguel.

O Centro de História Unilever Brasil era subordinado ao Marketing da Unilever. Nosso trabalho era arquivar embalagens, peças de propaganda, fotos, documentos históricos, livros etcs. E, principalmente, prestar consultoria às novas campanhas de marketing da empresa. Alertá-los para slogans, garotas-propaganda, sabores, aromas e estratégias já usados.

Como éramos subordinados ao Marketing, embora fôssemos terceirizados, tínhamos um crachá com chip que nos dava acesso “ao sétimo andar”. Este ocupava um nível inteiro, uma ampla sala recortada por biombos baixos, com umas 100 pessoas e seus respectivos computadores espreitando-se (e contra-espionando-se) no mesmo ambiente. O principal motivo que tínhamos para ir “ao sétimo andar” era ter acesso à máquina de café italiano, gratuito e livre, que eles tinham, e nós não. Era “de grátis”: café, latte macchiatto, cappuchino, expresso, chocolate quente, e chá. Naquelas maquininhas em que cada xícara custa uns 3 reais. Além disso, na copa tínhamos livre e farto acesso a produtos da Unilever para o “coffe break corporativo”: Ades, Becel, Doriana, pães, bolachas e sorvetes Kibon. Tudo à vontade, com fartura. Muito atraente. A princípio.

Aos poucos, pelo ano excedido que estagiei na Unilever fui percebendo a armadilha escondida sob tantas facilidades aparentes.

Nestes intervalos para o café, eu não podia deixar de reparar no naipe das mulheres que trabalhavam “no sétimo andar”. Todas lindas, magras e malhadas, trajando tailleurs, em cima do salto, maquiadas, com escova e manicure impecáveis. Isso me parecia ótimo até que num certo dia vi duas dessas Barbies corporativas a conversar. Uma delas deu um amplo bocejo. A outra perguntou se ela estava cansada, e obteve como resposta:

- Nossa, estou MUITO cansada. Saí da academia às 22 hs, terminei meu relatório meia-noite e hoje acordei às 5 e meia pra fazer chapinha.

Imediatamente pensei “coitada...” e percebi o preço de se estar sempre em cima do salto. Eu simplesmente JAMAIS acordaria um só minuto mais cedo para ajeitar meus cabelos. JAMAIS me torturaria com saltos altos diariamente durante todo o expediente. JAMAIS encararia o “ir para a academia” como uma exigência para “estar bem no trabalho”. JAMAIS prescindiria de um só minuto de meus momentos de lazer pensando no trabalho, fazendo trabalho voluntário (pois é uma hora-extra não paga) para uma empresa multi-nacional.

Outro detalhe que percebi é que, embora o coffe break fosse “boca livre”, sem tempo determinado, os engravatados e as alisadas do Marketing não perdiam mais do que 5 minutos na copa, rapidamente retornando aos seus postos de trabalho, pois estavam diretamente sob o olhar do chefe. E com o temor eterno de serem rifados na primeira contenção de gastos sob a desculpa de que “gastavam muito tempo no cafezinho”. Não só os chefes fiscalizavam a duração do café de seus subordinados, mas os colegas fiscalizavam-se entre si, numa tensão competitiva latente e muda, plena de olhares enviezados e comentários “à boca pequena”

Vi claramente que eu não desejava eternamente trabalhar num covil de lobos, ou num ninho de serpentes. Que eu não era o tipo de pessoa que cultiva as aparências, que se esmera em marketing pessoal, que alisa o saco do chefe, que procura demonstrar que “veste a camisa da empresa”, adequada para triunfar no ambiente corporativo.

No “alisar o saco do chefe” cabe relatar outro fato ocorrido neste ínterim. Quando eu já estava há muitos meses trabalhando na Unilever, minha chefe Rosimeire recepcionou uma “colega de trabalho”, S, que já chegava em paridade com ela, e com a melhor das referências: era amiga antiga duma das sócias-proprietárias da Grifo. Rosimeire, que era muito eficiente, ensinou a S seu ofício. S nunca foi eficiente, era bastante perdida, não sabia mexer nos computadores, chegava sempre atrasada, não demonstrava o comprometimento com o trabalho, nem a postura, que se espera dum “chefe”. Apesar de tudo isso, e de Rosimeire ser gritantemente mais competente que S, após alguns meses, quando a dona da Grifo achou que Rosimeire já teria ensinado todo o necessário a S, Rosimeire foi simples e sumariamente demitida, sem nenhuma explicação do “motivo”. Só então soube que treinara sua substituta. E que, apesar de incompetente, ficaria com seu posto de trabalho pois tinha “Q.I.”, “quem a indicasse”, ou “as costas quentes”.

Depois disso percebi que a “eficiência do empregado” não era levada em conta para fins de demissão. E parei de me esforçar, pois percebi que ainda que o fizesse, o esforço seria vão, caso eu não me sujeitasse a puxar muitos sacos, dar muitos sorrisos falsos e cultivar uma “aparência de pessoa eficiente e bem-sucedida”. Sobretudo, trabalhando para uma multi-nacional, eu me sentia contribuindo para uma pirâmide financeira global, contribuindo num grande esquema de estelionato que, mais cedo ou mais tarde, haveria de cair. E que esta dívida (o contribuir com este esquema) me seria cobrada um dia. Eu não me sentia bem ajudando a promover o Capitalismo. Nunca senti que ali fosse o meu lugar.

Dar aulas na rede pública traz imensos desafios, e nem de perto remunera como o setor corporativo. Mas pelo menos não me traz uma constante consciência culpada de contribuir para a ereção de uma ilusão perniciosa, que vampiriza e faz falir a “economia real”, regional, nacional, que gera empregos de verdade, para gente que sua na linha de montagem, não na academia de ginástica.

Ainda que eu ganhasse o dobro, ou triplo, num “emprego de escritório”, não estou disposta a pagar o preço que me será cobrado seguramente um dia, nesse plano ou no outro, por participar de toda essa ilusão, desse esquema capitalista desumano.

Creio que um dia terei que responder por cada centavo que ganhei arrancado da mais-valia dos operários da Unilever. Pelo menos minha parcela será muitíssimo menor que a dos engravatados e das alisadas. Desta empresa e de outras.


"13 going on 30"


"The Devil wears Prada"


"Resident Evil"

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