sábado, 10 de setembro de 2011

O Onze de Setembro de 2001

Formiguinhas históricas que somos, normalmente não nos damos conta dos fatos determinantes que se desenrolam no espaço de tempo em que vivemos. A História com agá maiúsculo se descreve na longa duração braudeliana, e nossas consciências são como lanternas fracas que iluminam apenas uma pequena fração da realidade, que está diante dos nossos olhos, e cuja configuração é deformada pelo lusco-fusco de nossos conceitos.

Por estarmos tão perto, atados ao dia-a-dia, não vemos a curva, a parábola que descreve a longa duração, e menos ainda os picos e quedas das conjunturas. Vemos apenas os pequenos pontinhos dos acontecimentos, sem perceber que se nos afastarmos alguns passos veremos que estes pontinhos das efemérides descrevem zigue-zagues de conjunturas. E se andarmos muitos mais passos atrás, veremos, talvez, a longa curva descrita pelas conjunturas e na qual os acontecimentos individuais, embora integrantes, perdem sua definição detalhada diante do “esquema geral”.

Escrevo isso justamente para estabelecer que nós, testemunhas oculares da História, gostamos de dar maior relevo aos acontecimentos que nos são contemporâneos do que eles realmente merecem.

Após o 11 de setembro, muitos foram os alarmistas e até “profetas do Apocalipse” que viram neste fato algo parecido com os grandes eventos históricos secularmente sedimentados, que alteraram determinante os rumos da História. A respeito disso, lembro-me de uma cena curiosa passada no ano de 2003.

Eu estava cursando História, e fazendo Iniciação Científica com o Professor Doutor István Jancsó. Professor Titular da USP, diretor do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros “Sérgio Buarque de Hollanda”, apesar de húngaro, István era um brasilianista e intelectual muito respeitado e requisitado pela imprensa para entrevistas.

Nesta feita, estávamos em sua sala pessoal no Departamento de História (sala que não mais existe, foi desfeita numa reforma) quando o telefone tocou. Por nosso orientador, todos nós do grupo de Iniciação (que em sua máxima extensão abarcou, além de mim a André Nicacio Lima, “Godinho ou Gêngis”, Mainá Pereira Prada Rodrigues, “Mainas”, Andréa Paula Placitte, “Dea”, Bruno Fabris Estefanes, “Garfield”, Maria Inês Panzoldo de Carvalho, Júlia Relva Basso e Henrique Palazzo) tínhamos alta deferência, e lhe facilitávamos a vida nas pequenas coisas que podíamos, como ir buscar um café, uma xerox e atender ao telefone. Neste dia o atendi durante uma reunião com o professor. Do outro lado disseram:

- Boa tarde, aqui é da [revista] Caros Amigos. Gostaríamos de entrevistar o doutor István para uma matéria. Ele está disponível?

Passei o telefone para ele, e ficamos observando sua conversa ao telefone. Após a secretária transferir a ligação para o jornalista, István abiu seu típico sorriso e falou eu seu característico sotaque que nada tinha de húngaro, e muito da indolência baiana:

- Oi, meu amigo! Pode falar!... Hum... Não, não, de jeito nenhum! Vocês jornalistas... Ah, você conhece a história daquele menino que ficava avisando toda hora que tinha um lobo à espreita? Pois é... Não, ainda não, você ainda não pode escrever isso. Faz o seguinte, passa amanhã no IEB e a gente conversa melhor. Te espero então. Tchau.

Desligou enquanto dava um sorriso búdico. Balançou complacentemente a cabeça numa expressão negativa dum avô cheio de doçura que vê o netinho fazer uma traquinagem. Soltou uma risada solta, calma e pausada, Levantou seu indicador no ar, como lhe era tão típico ao ter um ponto que pretendia explicar. Seguiu-se a pausa dramática que todos conhecíamos e amávamos enquanto ele articulava a primeira sílaba vocal de seu pensamento abstrato, talvez em húngaro. Nos disse:

- Esses jornalistas, sempre tão desesperados, alarmistas, quase histéricos... rsrsrs. Sabem o que ele me perguntou? Se podia escrever em sua matéria que os Atentados de 11 de setembro são o fato que porá fim à História Contemporânea e iniciará uma nova era... rsrsrs... Ele estava querendo decretar o pentapartismo, e não mais o quadripartismo histórico... rsrsrs... Amanhã vou mandar ele ler Filipe II” de Fernand Braudel e tentar lhe explicar a diferença entre estrutura, conjuntura e acontecimentos...

O jornalista, que embora escrevesse na respeitadíssima Caros Amigos, não tinha a menor idéia do que é História para achar que podia, 2 anos depois, dizer que os ataques perpetrados pela Al Quaeda eram tão importantes quanto a Invenção da Escrita (circa 4000 a.C.), a Queda de Roma (476 d.C.), a Queda de Constantinopla (1453) e a Revolução Francesa (1789). Citei estes fatos pois estes foram estabelecidos como as marcas que separam as 4 divisões do quadripartismo histórico nas seguintes eras: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Esta última iniciada pela Revolução Francesa e que, dizem os historiadores, continua em nossos dias, e queria o jornalista decretar encerrada. Risos para sua pretensão.

Hoje, véspera de completarem-se 10 anos dos piores atentados terroristas da história, pelo menos dos Estados Unidos, ainda é grande a leva dos alarmistas e profetas do Apocalipse. E como historiadora, tentando dar alguns passos atrás para divisar melhor a “imagem geral” desenhada pelos acontecimentos, é fácil compreender o porquê disso, pó-lo em perspectiva, e até “justificar” essa postura.

Como cada um de nós acha que o próprio umbigo é o centro em torno do qual o mundo gira, nos considerados testemunhas privilegiadas da História, e destinados e testemunhar acontecimento mais importantes que todos os que se desenrolaram antes de nós. O que não vemos perde importância. O que testemunhamos, já que nós somos tão importantes, tem que ser igualmente um fato chave, que alterará a História do Mundo, tanto quanto, achamos, nossa própria existência o fará. O nome disso é “Síndrome de Messias”, algo que o Cristianismo implementou profundamente em nossas estruturas psicológicas da longa-duração. Desde que Jesus morreu sucederam-se pelo menos 80 gerações. E cada uma delas teve certeza de ser a última, aquela que testemunharia as convulsões apocalípticas do “Juízo Final”. Eu, que vivi a virada do segundo para o terceiro milênio, a pretensa passagem para a “era de Aquário”, testemunhei o messianismo de meus contemporâneos e sua expectativa de que o mundo acabasse em 2000, depois em 2001 no “Bug do Milênio”, e agora se aguarda ansiosamente pelo 2012 profetizado pelos maias. Risos para nossa pretensão.

Como não há como eu mesma projetar-me fora da curva, pois minha consciência individual é apenas uma lanterninha fraca que ilumina muito pouco, para encerrar este texto redigirei meu próprio testemunho pessoal de como os atentados às Torres Gêmeas do World Trade Center me impactaram pessoalmente. No futuro, creio que todos serão perguntados “Onde você estava quando aconteceram os atentados do Bin Laden?”. E todos, seguramente, se lembrarão vividamente de sua experiência pessoal. A minha segue abaixo.

Eu tinha 18 anos. O fuso horário oficial de Brasília conta uma hora a menos que em Nova York. Era manhã e eu estava assistindo a aula no cursinho pré-vestibular. Um dia muito comum. No horário do intervalo, lá pelas 9 e meia, quando o primeiro avião atingiu a primeira torre, os atendentes da cantina nos disseram que um avião havia batido contra “um prédio alto” em Nova Iorque. A princípio, claro, todos achamos que teria sido um acidente. E nesse nível foram os comentários durante as aulas que faltavam até o meio-dia. Terminado o turno escolar, corri para casa e liguei na CNN.

Eu vi o fim do mundo.

Eu vi o Inominável. Eu vi o Horror, o Horror.

Ao vivo, live, diante de meus olhos, eu vi o começo da tão temida Terceira Guerra Mundial. Eu vi ruírem todos os esforços diplomáticos da segunda metade do século XX.

Chocante. Inesperado. Só quem acompanhou em real time os acontecimentos deste dia pode dimensionar o impacto psicológico dos atentados. E como o “imponderável” conspirou a favor de nossos maiores medos. Quem só sabe deste fato bem sedimentado pelos anos não carregará, felizmente, o trauma do desastre em cada ínfimo e escabroso detalhe. Não carregará em sua memória centenas de horas de jornalismo mostrando as pessoas assando nos prédios ainda em pé. Sacudindo panos nas janelas. Se espatifando, às dezenas, em torno do prédio.

E, muito pior, as cenas, minuto a minuto, dos prédios ruindo, um após o outro. A poeira tomando Manhattan, cobrindo os engravatados, os ricos e poderosos, aqueles que regem o mundo a partir de Wall Street. Milhares de nova-iorquinos peregrinando à pé pela ilha, chocados, machucados, respirando ar contaminado, indo, mas sem saber para onde.

Quem souber dos atentados de 2001 apenas por ler ou “ouvir dizer” seguramente perderá a dimensão de um detalhe que não escapou às testemunhas contemporâneas: absolutamente ninguém considerava possível que os prédios ruíssem. Esse “absolutamente” é, de fato, absoluto. Por isso supracitei o termo “imponderável”. O objetivo calculado por bin Laden era apenas “ferir” às torres gêmeas. Símbolos do Comércio Mundial, os mais altos prédios da Capital do Mundo Ocidental, tal qual Roma foi um dia, pareciam tão sólidos quanto a economia capitalista neo-liberal. Nada, nem bombas nem aviões pareciam capazes de as derrubar. Destruir as torres não era o intento da Al Quaeda. Sequer os terroristas foram capazes de dimensionar as conseqüências e a severidade de seus atentados.

Tanto ninguém achava que qualquer das torres pudesse ruir que parte dos mortos não estava nas torres quando os aviões as atingiram: são bombeiros e socorristas que acorreram ao Ground Zero para ajudar às vítimas. Subiram pelos prédios sem considerar o “imponderável”. Mas este sobreveio e a segunda torre a ser atingida foi a primeira a ruir, sepultando centenas de bombeiros heróicos do NYFD – New York Fire Department.

Muito mais impressionante que o fato de dois aviões de passageiros terem sido lançados contra o símbolo máximo do capitalismo yankee foi o colapso posterior das torres. Isto desnudou a fragilidade do sistema que considerávamos pétreo. O colapso demonstrou que as estruturas do Capitalismo, que achávamos sólidas e à prova de tudo, eram muito mais frágeis do que nossos medos antecipavam, e que poderiam ir facilmente ao chão. Não sob o ataque de um elefante, mas pela picada de um mosquito que ninguém achava tão virulento.

Nunca tínhamos ouvido falar de Osama bin Laden ou da al Quaeda. Descobrimos que muito mais perigosos são os inimigos que desconhecemos, ou que não levamos em consideração.

Não testemunhei aos “Treze dias que abalaram o mundo” na crise dos mísseis de 1962, mas teleassisti ao dia que sacudiu o mundo, como eu o conhecia. Vi a Grande Potência que emergiu da Guerra Fria e unipolarizou o mundo após 1991 colocada de joelhos, agora não pela vizinha Cuba e pelo Comunismo, mas por um grupo terrorista sediado no longínquo e (até então) facilmente esquecível Afeganistão e pelo fundamentalismo religioso islâmico. E este novo inimigo é muito mais difícil de combater que “os vermelhos”.

Durante a Guerra Fria assistimos à disputa de dois Estados, legítimos, governos constituídos, signatários de convenções internacionais, que se sentavam em mesas para negociar, que atendiam ao telefone. Inimigos equivalentes com os quais se podia dialogar. Liderados por chefes de Estado responsáveis, que não desejavam levar o mundo a um holocausto nuclear, que seria a Terceira Guerra Mundial entre EUA e URSS, que pareceu tão próxima entre as décadas de 1960 e 1970...

Essa “guerra tradicional” entre elefantes poderosos estatais não mais existe. Nossa guerra do século XXI é assimétrica, de guerrilha, do tipo que os americanos sempre perderam, dede o Vietnã. Não há comparação entre os “atentados de 11 de setembro” e a batalha de Waterloo, por exemplo. Nem Osama bin Laden nem George W, Bush chegam a poucos centímertos da estatura de Napoleão Bonaparte nem do duque de Welington.

Os atentados de 11 de setembro não foram levados a cabo pelo governo do estado do Afeganistão contra o governo dos Estados Unidos da América. Os atentados são responsabilidade de uma (múltiplos risos) ONG – Organização não-Governamental. “Organizada” em células terroristas. Com as quais não há negociação. Que não assina nem respeita ratados. Que talvez até tencione acelerar o “apocalipse”, ansiando pela chegada de seu próprio messias, o Mahdi.

Só para arrematar, quem em 2001 dissesse que hoje o presidente americano teria por nome do meio um “Hussein” igual ao de Saddam e por sobrenome um “Obama” tão parecido com o prenome de Osama, e que ainda por cima seria negro e havaiano, seguramente seria considerado completamente louco e fora de si. Talvez tanto quanto consideramos desprovidos de razão aqueles que viram no 11 de setembro de 2001 um fato histórico digno de iniciar uma nova era.

Apenas a longa duração poderá dizer quem é o louco e quem é o lúcido. Vamos aguardar.


Cássia Eller - O Segundo Sol

Melancholia

π (pi/1998)

Nós que aqui estamos por vós esperamos

2 comentários:

  1. Olá, Fernanda Ramos. Parabéns pelo texto. O preconceito, a falta de postura ética e o tão antigo mas, ainda, tão válido amor ao próximo está se esvaindo. Ás vezes acho que a política é a-moral. Não, na verdade os que fazem a política a tornam a-moral. A política americana sempre foi tendenciosa e quando vejo eles falando a respeito da luta ao terror, fico imaginando do que terror eles estão falando. Terrorismo fizeram e continua fazendo os americanos com mundo. Disso você entende. Afinal, estou falando com uma historiadora. Fiz uma postagem em meu blogger de um filme, Megamente, que aborda esssa questões a respeito, da moral, do destino, da escolha, da diferença, do preconceito. E que temos que fazer para melhorar um pouco nossas conduta diante de nós de outro. Dê uma olhada ,também, no filme "O Livro de Eli". Espero que g ostes. Um abraço...
    Etarei seguindo este blogger... Gostei de verdade. Um abraço.

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  2. Opa, Fernanda, estou aqui... Gostei do texto. Lembro que, quando o ataque ocorreu, eu estava tomando meu café e me preparando para ir à universidade. Quando vi o primeiro avião, fiquei triste pelas vítimas, e encarei como um acidente. Quando o segundo avião atingiu a torre, fui inundado por uma porrada de sentimentos. Medo (não queria que essa guerra chegasse aqui), tristeza (pelas vítimas e pelos envolvidos), raiva (dos terroristas, dos EUA), euforia (entre o necessário e o brutal), alívio (tipo, um véu caiu e revelou ao mundo sua verdadeira face), dentro outros. Na época eu era bem mais emotivo.

    Dali, fiquei em casa e, depois, saí para a universidade para conversar com meus amigos a respeito do fato. Foi muita coisa ao mesmo tempo, mas não achei que tivesse o mesmo efeito que a Bomba Atômica, a II Guerra ou o Golpe Militar no Brasil.

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