Seres humanos são curiosos. Somos dos únicos animais com consciência histórica, com memória de nossa trajetória pessoal e capazes de transmitir conhecimentos ou “cultura” às sucessivas gerações. A isso se chama “Civilização”.
Outros animais possuem também certa memória emotiva referente aos entes amados que já se foram. Um bom exemplo é o dos elefantes, com sua memória paquidérmica. Ao passarem pelo local de falecimento de um ente querido, mesmo muitos anos depois, os elefantes fazem certa deferência, como a demonstrar respeito pela memória do ente falecido. A ararinha azul é um dos poucos animais naturalmente monogâmicos, e que conhecem a viuvez da ausência do parceiro sexual perdido.
Dos animais com os quais convivi, minha cachorra Jade enviuvou por 2 vezes: de Lucca e de Uísque. Sua “saudade” do ente querido perdido não excedeu uma semana. Nos primeiros dias do falecimento de seus esposos, ela ainda os procurava pela casa. Excedida uma semana, ela pareceu “esquecer” ou “superar rapidamente a perda” de seus companheiros, sem grandes traumas.
Com os seres humanos não é tão fácil “esquecer”, “superar”, “seguir adiante”, pois nossa consciência histórica nos traz sempre presentes as lembranças do passado, a balizar e dar parâmetros para nossas ações futuras. E, apesar disso, é surpreendente a capacidade humana de recomeçar, do zero se necessário. Inúmeras vezes. Numa perseverança inquebrantável.
A respeito disso, nascer na América, no “Novo Mundo” é significativo. Nativos da América trazem uma carga de permanências, nexos identitários menos vincados. Em nosso cotidiano não somos confrontados com reminiscências psicológicas e ruínas milenares. Há mais história por construir do que por reconstruir. De certa forma somos “como cultura”, menos traumatizados que os asiáticos ou europeus. Não que isso resulte em pessoas essencialmente diferentes em seu convívio diário inter-pessoal.
A dinâmica do relacionamento inter-pessoal estabelecida no Ocidente reza que “cada panela tem sua tampa” e que “sempre existe um chinelo velho para um pé cansado” ou seja, que a Felicidade é encontrar sua “alma gêmea”: alguém do sexo oposto que nos complete, nos traga a “Felicidade” e com quem constituiremos uma família ao gerar descendentes.
Especialmente às mulheres, todos os “contos de fadas” e “histórias de ninar” nos ensinam a perseverar por conseguir o objetivo máximo das princesas da Disney. As histórias de Cinderella, Aurora, Branca de Neve, Ariel, Bella, Jasmine, Pocahontas e afins, todas, têm uma trama comum: a mocinha que atinge a “Felicidade” ao encontrar seu príncipe encantado. Todas essas estórias acabam na cena do casamento com a frase “E foram felizes para sempre”...
Lindo. Maravilhoso. Poético. E ilusório.
Toda e cada menina demorará cerca de 30 anos para perceber isso. Que não existe “príncipe encantado” e que a dinâmica de relacionamento inter-pessoal conhecida como “amor romântico” é uma ilusão.
Ilustrarei esse argumento a partir de um caso específico. O da cantora country norte-americana Shania Twain. Shania é uma mulher muito bonita, e com uma voz de anjo. Seu maior sucesso é a música romântica “You're Still The One”, em português: “Você ainda é o único”, ou “Você ainda é aquele (um especial)”, ou “Você ainda é o escolhido” * . Nesta música Shania enaltece seu amor pelo seu então marido Robert Lange entoando:
“Eles diziam, "Eu aposto que eles nunca conseguirão"
Mas somente olhe para nós aqui
Nós ainda estamos juntos e fortes (...)
(Você ainda é aquele)
Você ainda é aquele para quem eu corro
Aquele a quem eu pertenço
Você é aquele que eu quero na vida
(Você ainda é aquele)
Você ainda é aquele que eu amo
Aquele com quem eu sonho
Você ainda é aquele que eu dou um beijo de boa noite
Eu estou feliz por nós termos conseguido
Olhe o quanto longe nós chegamos meu querido.”
Belo. Romântico. Inspirador.
E completamente falso. Nem Shania nem seus fãs o sabiam. Só soubemos neste 2011 o motivo pelo qual Shania “sumiu da mídia” por muitos anos mesmo sendo uma cantora de imenso sucesso. O revelou num programa de Oprah Winfrey. Relatou que não conseguia mais cantar seu maior sucesso sem chorar compulsivamente e sentir-se completamente lograda, enganada, aviltada, enquanto ser humano. Pois o alvo dos versos lindos e românticos que antes cantava a plenos pulmões lhe havia dado a pior rasteira de sua vida, o golpe mais baixo e inesperado, contra o qual não haveria proteção nem sobreaviso.
Ser vítima de adultério ou “levar um chifre” é coisa que todos os seres humanos temem e, em certa medida, até esperam. “Ser traído”, para além de “levar chifre” pode ser ainda mais sério se o protagonista da traição não é ligado a nós por um relacionamento sexual, mas pelo de amizade.
Ser traído por um amigo é muito pior do que “levar um chifre” de seu parceiro sexual pois diante dos amigos, que achamos ser nossos companheiros e estarem ao nosso lado, nos despimos ainda mais plenamente do que diante de nossos “amores”. Relacionamentos amorosos/sexuais vêm e vão. Amigos, de verdade, são eternos. Nos sustêm, auxiliam, dão colo, ombro e compreensão. Amigos são os irmãos que escolhemos, com os quais temos afinidades e múltiplas lembranças compartilhadas. Nos quais temos plena confiança.
Confiar em nossos amigos nos traz certo “descanso” e a sensação de que não estamos completamente sozinhos no mundo: nos faz crer que temos aliados, companheiros de trajetória, que estão ao nosso lado para nos dar suporte e nortear pela vida.
Assim creio eu e assim cria Shania Twain. Até descobrir, no auge da beleza, da riqueza, da forma e do sucesso que seu “the one”, aquele quem escolhera como “príncipe encantado” para ser o pai de seus filhos, seu companheiro pela vida, estava a manter um relacionamento extra-conjugal.
Estivesse seu marido botando-lhe um chifre com “uma qualquer”, anônima, Shania poderia rapidamente se recuperar. Pois algo deste tipo, embora seja trágico, até o esperamos, por ser muito corriqueiro. Mas a facada que o marido deu a Shania a feriu muito mais fundo. A mulher com quem ele se relacionava era Marie-Anne Thiebaud, a assim considerada, “melhor amiga” de Shania.
“Melhor amiga” que transa com o seu marido? Alguém percebe algo muito errado nesta sentença? Aparentemente Robert e Marie-Anne não viram nisso nenhum impedimento. E nem se preocuparam sobre que tipo de conseqüência esta relação teria sobre Shania, que foi cruel e vilmente traída por duas das pessoas em quem mais confiava na vida.
Como poderia, depois dessa facada na carótida, Shania continuar a cantar a bela “You're Still The One”, e com ela embalar milhões de paixões românticas? Como poderia Shania ver-se diante de milhares de pessoas num show e se apresentar a plenos pulmões cantando esta música tão linda, composta para um amor, que agora ela o sabia aviltado, desfeito, renegado de forma tão traiçoeira, tão baixa, tão inesperada?
Como poderia Shania perseverar na vida depois de descobrir tão dolorosamente que todas as suas ilusões, de amor e de amizades, eram irreais? Após perceber que mesmo aqueles sobre os quais havia depositado décadas de confiança, eram capazes de a trair, de agir em suas costas, de lhe causar uma ferida tão profunda?
Após descobrir que aqueles que achava serem-lhe mais “aprochegados”, que ela pensava “estar do seu lado”, estavam pouco se lixando tanto para ela, como para a ética aparente das relações inter-pessoais. Estavam apenas preocupados consigo próprios e com a quantidade e variedade de suas relações sexuais...
A história da cantora Shania Twain seria trágica e postular se se encerrasse, assim, sem final feliz, com ela conformada, descrente, havendo desistido da vida e de confiar nas pessoas. Com plena razão, diga-se de passagem. Porém Shania, como eu, é humana. E, apesar de não ser brasileira, “não desiste nunca”. Nos dá mostras da inquebrantável perseverança humana e de que a esperança, de fato, é a última que morre.
Neste 2011, ao sair de seu casulo de dor Shania compareceu à Oprah não para relatar sua trágica desilusão. Mas para lançar seu novo programa de TV “Why Not?”, “Por que não?” No qual “explora” as histórias de pessoas que, como ela, foram levadas a duvidar de seus entes maisqueridos e da própria vida. E que, apesar de tudo, perseveram, inquebrantavelmente, esperançosamente, em se reconstruir. Apenas para tornar toda a história ainda mais rocambolesca e digna de novela, atualmente Shania é casada com o então marido da então amiga Anne-Marie. A então senhora Lange tornou-se a senhora Thiebaud enquanto a senhora Thiebaud virou a senhora Lange. Pois é...
Que todos tenhamos a mesma força e perseverança inquebrantáveis de Shania para nos reconstruir sempre, apesar de todas as desilusões e as facadas que levamos pelas costas.
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* A acepção “escolhido” foi retirada dos filmes “Matrix”. Repetidas vezes dizem “Neo is the one” traduzido por “Neo é o escolhido”. Alguns poderiam traduzi-lo por “Neo é o ungido”, mas isso é assunto para outro texto...
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