domingo, 9 de janeiro de 2011

De deus. Ou de Chico Buarque

Não que eu pretenda dar upload em todos os meus pensamentos, como o título do meu blog possa sugerir ao visitante desavisado. E tampouco esta postagem refere-se a qualquer assunto teológico, como visitantes já avisados poderiam supor.

Contumazmente elejo assuntos sobre os quais pretendo, algum dia, futuramente, redigir algum tipo de postagem. Como é típico à disposição psicológica brasílica, estes intentos são sempre reiteradamente, redundantemente, para mais que protelados, deixados para um depois que quase nunca desnuda-se numa esquina futura.

Mas às vezes sinto-me como intimada pelas pequenas coincidências que nos obrigam, de forma plenamente humana, a tentar procurar algum tipo de propósito, mesmo que arbitrário entre quaisquer dois ou dez eventos variados, pinçados a esmo da nossa particularíssima, mas cremos telúrica, biografia.

Toda pessoa meio que mais ou menos desperta para a vida deveria ser uma grande interessada por linguagens, para além da sua própria, pois pensamentos, rimas, métricas e até certo tempero apenas podem ser conferidos por um termo exato, ainda que estrangeiro, ou apenas por ser estrangeiro. E as palavras são a matéria-prima de nosso próprio pensamento, de nossa forma de expressão pessoal. E às vezes as diferentes línguas têm palavras específicas, que não possuem correspondentes em outros idiomas.

Em português o caso público mais clássico e banal é o da lusitana “saudade”. Não que estrangeiros não a sintam, mas talvez sua saudade não seja tão profunda a ponto de merecer um substantivo específico, como lá em Trás-os-Montes. A comparação mais handful é com o inglês. Quantas vezes não vemos nos filmes cenas ao som de “I missed you” traduzidas pelas legendas “Eu estou com saudades de vc” ou “Senti sua falta”. Certo, num reencontro este sentimento é inequívoco.

Mas em português o termo saudade ou a falta de alguém distante não têm nada de correlato a outros usos para “miss” como: “I almost missed my flight”, ou “My cell phone is missing”, ou mesmo: “I won the contest of miss Alabama.” Que o vocabulário e a própria expressão em língua inglesa são inequivocamente mais pobres e fáceis de dominar que o português é óbvio urrante. Não que os anglófonos não sintam saudade, mas talvez esse seja um elemento menos definidor de sua índole, se comparada aos melancólicos lusitanos, que criaram assim uma palavra repetida, enrolada e quase eterna, tão bela para ser cantada e tão sonora na voz de Amália Rodrigues.

Escrevo isso pq, como hoje é domingo, acordei, e ao contrário de lançar-me a um longo acorda-não-acorda, pulei da cama pois precisava dar uma saída. A manhã de domingo arranca-me assim que acordo da cama pois para mim domingo é sinônimo de uma coisa deliciosa: o jornal de domingo, em especial o “Caderno Mais” da Folha de SP, recentemente reformulado com o nome “Ilustríssima”. Tão tradicional é este suplemento dominical que até seu principal concorrente, o Estado de SP “ Estadão”, desistiu do combate direto de intelligentsia no domingo e, conformado, lançou seu “Sabático” aos sábados. Pulei da cama pois no domingo passado, no qual haveria a cobertura da posse de Dilma Roussef, quando cheguei na banca, não só não havia mais exemplares da Folha, como já acontecera, como até o Estado já se esgotara.

Foi através do então caderno Mais que descobri, aos 17 anos que, para além das coisas imediatas de meu universo sensível, haviam multiversos de conhecimento a ser descobertos ou mesmo desvendados. Descobri que as minhas respostas certas não eram tão óbvias assim, que o mundo era muito maior, multidimensional, para além da paisagem quase plana que até mesmo eu, que pensava tanto de mim era capaz então de ver e arquitetar.

O Caderno de hoje traz o texto “Na ponta da língua. O idioma dá forma ao pensamento?” de Guy Detscher, que analisa a influência da língua materna na própria conformação psíquica das estruturas do pensamento individual. Analisa línguas em que há masculinos e femininos para objetos inanimados e como isso influencia a própria concepção que estas pessoas têm desses conceitos, a depender do “sexo” arbitrário que lhes atribuem, citando "The awfful german language" de Mark Twain. Apresenta análises e comparações de “idiomas geográficos” incutidores de uma concepção toda diferente da localização espacial de todas as coisas, memórias e expressões. Assinala que assim duas pessoas falantes de línguas distintas se lembrarão de forma completamente diferente da mesma realidade, pois seus falantes submetem todos os seus parâmetros ora a algo absoluto, cardeal, ora a um parâmetro auto-centrado, particular.

E ainda aprendi, além deste novo conceito, uma nova palavra em alemão, e sei como soa bonito usar, numa roda da intelligentsia, um ou outro termo bem sonoro em alemão: Schadenfreude (alegrar-se com o infortúnio alheio). Não que os brasileiros ou portugueses não sintam inveja, muitas vezes perversa, mas talvez esse não seja um elemento definidor de sua índole a ponto de merecer um verbo especial.

Atualmente, é estranho perceber como as pessoas continuam sempre as mesmas. Enquanto que até agora penso estar cada vez mais aceleradamente, tal qual o Universo, para mais e além de digitar mais rápido, de forma progressivamente mais bela, com opulento vocabulário, melhores e mais lapidados conceitos; outras, antes iguais a mim conformaram-se com seu estar passado e, vistas de minha perspectiva, “pararam no tempo”.

Nunca, talvez, leram aos cadernos intelectuais dos grande jornais paulistas. Talvez abram o jornal apenas para ler ao resumo das novelas e o horóscopo. Talvez dêem uma passadinha pelo caderno de empregos, verifiquem, só pra constar, a cotação do dólar. E, num dia realmente inspirado sua sabedoria burguesa resvale na leitura integral do caderno de entretenimento e num passar de olhos nas notícias das guerras pelo mundo, como tantas vezes eu mesma fazia. Até os 17 anos de idade, quando um certo bichinho me infectou, e este vírus contaminou-me através da leitura do Caderno Mais da Folha de São Paulo, as aulas do professor James do cursinho e a audição quase compulsiva das músicas de Chico Buarque, que é o mote final deste texto em redemoinho, ou talvez em pororoca.

Nesta mesma edição de Ilustríssima, na seção Arquivo Aberto – Memórias que viram histórias há o texto, algo até sentimentalista, mas delicioso “Saramago almoçou em minha casa. Carapicuíba, 1997” de Cristiano Mascaro. Tudo ia meio mais ou menos quando uma frase arrancou-me da mesmice inércia do hoje.

O autor lista os que convidara para o almoço, citando banqueiros, intelectuais, quatrocentões e arremata: “E, para despertar uma certa preocupação no Franco, meu genro, e alegria em minhas filhas Isabel e Teresa (e acredito que em Satiko também) [convidei] Chico Buarque.”

Como explicar a preocupação de Franco para quem desconhece quem é Chico Buarque? A coceira que imediatamente sentiu na testa? Como explicar a explosão de ansiedade nas três anfitriãs? Como piscaram longamente seus olhos na doce expectativa de poder estar a um metro de distância de Chico Buarque? Quem teria coragem de cozinhar para tentar alegrar ao paladar de Chico?

Numa expressão curta para demonstrar a mesura que sua presença suscita: Chico Buarque é deus.

Que fique claro que sou monoteísta estrita, e não pretendo com isso diminuir ao atribuir auxiliares ao meu Criador. Apenas pretendo fazer alguma justiça à arte de Chico Buarque.

Para ilustrar: é dito popular conhecido que absolutamente todo e qualquer homem é um potencial corno na presença de Chico Buarque. E toda mulher inteligente deveria colocar em seu acordo pré-nupcial: qualquer tipo de relacionamento, emocional, sexual ou intelectual com Chico Buarque não é adultério, mas a realização de um sonho inatingível acalentado por milhões de mulheres. Mesmo atualmente, com Chico já bem passado dos 60 anos. E todo homem corneado com Chico Buarque deveria, resolutamente, conformar-se que simplesmente nenhum mortal é páreo para competir com Francisco Buarque de Hollanda. E deve, compreensivamente, dar razão à sua esposa, reconhecendo que, se ele mesmo fosse mulher, não poderia deixar passar qquer oportunidade de poder eternamente gabar-se diante das amigas da inesquecível noite de amor que teve ao lado de Chico. Este é o tipo de feito que eu relataria até a meus bisnetos! Não digo que eu venderia minha alma ao diabo por uma noite de amor com Chico Buarque, mas acho que eu daria um rim para passar uma noite inteira com Chico, cantando-me, baixinho, no cangote. Ui!... Isso, com certeza, vale um rim!

Dizem que há um ranking do Índice de Felicidade Mundial análogo ao IDH, “Índice de Desenvolvimento Humano". E que no ranking da satisfação o campeão imbatível é o Butão, minúsculo e perdido no topo do Himalaia. No Brasil, tenho certeza, o campeão imbatível é o Rio de Janeiro pois as cariocas têm o deleite de eventualmente, ver Chico Buarque passar pelo calçadão, ainda mais diáfano que Helô Pinheiro, mesmo aos 20 anos. Só a felicidade de Marieta Severo, famosa e discreta atriz, que foi esposa de Chico por muitas décadas, já dispara exponencialmente a felicidade de todas as cariocas na média geral.

Se eu morasse no Rio, eventualmente, esperaria, como os paparazzi, Chico Buarque passar desavisadamente pela rua, só para poder suspirar a 4 metros dele, mas creio que não teria coragem de pedir-lhe um autógrafo, com medo de que sua pessoa física pudesse manetear sua persona criativa, que tanto amo. Fique tranqüilo, Chico, jamais me tornaria aquilo que os malucos americanos têm um ótimo termo para ilustrar: stalker. Um desses vitimou outro gênio musical, já citado: John Lennon. Mas como o Brasil tem bem menos malucos por km2 que os EUA, seus gênios e presidentes podem andar quase tranqüilos.

Assim como as pessoas se utilizam de seu acervo pré-fabricado, seu campo semântico familiar, sua língua, para expressar seus pensamentos, creio que da mesma forma utilizam-se de um certo acervo de expectativas, imagens mentais, arquétipos, clichês, sentimentalismos, que adquirem em parte através das músicas com as quais permitem-se chorar, e ouvem até decorar a letra ou até decifrar arranjos e partituras. Talvez eu não precise “maldizer o nosso lar, sujar teu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço te adorando pelo avesso” pois eu já chorei não só ao ouvir Chico cantá-lo mas também pela interpretação avassaladora de Elis Regina desta “Atrás da Porta”.

Em outras palavras, creio que a experiência de ouvir as músicas ricas e geniais de Chico Buarque alargou meu campo proximal de emoções e projeções psíquicas. Ampliou minha própria capacidade de ter sentimentos e fazer associações e transferências emotivas. Para quem tem 17 anos é muito mais proveitoso ouvir a discografia de Chico Buarque do que ler a “Os Lusíadas”. Não que Camões não seja relevante. Mas há pouco, sinceramente, que Camões realmente diga aos corações verdes dos adolescentes do séc XXI.

A maioria das pessoas contenta-se com um João Bosco & Vinícius, ou Maria Cecília & Rodolfo, ou Ivete Sangalo e similares. Eu pensava que Oasis, Pearl Jam, Renato Russo e a Legião Urbana eram o mais longe que eu poderia ir, mas vi-me inesperadamente diante de deus. Caí de joelhos e, como toda brasileira que já ouviu falar dele, me apaixonei. Não que eu tenha parado em Chico, depois fiquei mais boquiaberta ainda, embora não apaixonada, por João Gilberto, e a queda vertiginosa prossegue até hoje nas experiências emotivas e intelectuais que as músicas podem suscitar.

Assistir aos DVD’s de Chico Buarque e perder-se em seu olhos, como duas águas-marinhas é uma experiência hipnotizante. Perceber as diferentes nuances de sua voz em gravações com às vezes 30 anos de distância é o louvor de perceber como os anos, os cigarros e os excessos fizeram-lhe bem à expressão. Além de musicista, letrista, cantor, compositor, dramaturgo, Chico também tem se tornado romancista e é com orgulho que digo que já li 3 livros escritos por deus. A Torah? Não!!! Estorvo, Budapeste e Benjamin.

Até o recente “twiquito” (faniquito virtual via Twitter) pedindo que ele devolvesse o prêmio Jabuti recebido por seu mais recente Leite Derramado, tenho certeza foi despertado para satisfazer ao epíteto rodriguiano (do Anjo Pornográfico Nelson Rodrigues) de que “toda unanimidade é burra”. Então, não para dizer que Chico seja unanimidade pois há todo tipo de maluco no mundo, mas para reverificar o ditado ousaram sugerir que Chico não merece tal prêmio!

Para tentar ilustrar este texto tentei-me lançar à ingrata tarefa de elencar minhas músicas favoritas de Chico Buarque – estão a seguir sem nenhuma ordem. Tal tarefa é interminável. Em outra postagem elenquei, rápida e facilmente minhas favoritas de Amy Winehouse, Ella Fitzgerald e Billie Holiday. Mas com Chico não é tão simples assim. Sua obra é longa, abrange pelo menos 4 décadas, e é, toda, ótima.

Chico é deus. Chico é um gênio. Chico vai do samba ao blues, à valsa ao fado e ao samba, pára na bossa nova, dá uma pirueta no tango, no rock, no xote e termina num emocionante bolero. Outros artistas compõem letras de músicas. Chico Buarque é um ourives que rendilha, reconstrói e enobrece à última flor do Lácio, ou mesmo a enovela lindamente com suas primas, como em “Joana Francesa”.

Chico fez das próprias tripas a primeira lira que animou todos os sons. E canta toda sua profundidade abissal que apenas um eu-lírico feminino é capaz de compor, cantando com uma voz curtida numa longa boemia não só no Rio como em Paris, com um sobrenome duplo tão sonoro e pomposo, e tudo isso ainda engastado com dois hipnotizantes olhos azuis como uma turmalina-paraíba. Conhecer, saborear e enveredar-se pela obra de Chico Buarque é... orgásmico!


Lista das melhores músicas de Chico Buarque:


Amor Barato

Joana Francesa

Carioca

Chão de estrelas

Sem compromisso

Cotidiano

Morena de Angola

Notícia de jornal

Mulheres de Atenas

Samba de Orly

Sob medida

Teresinha

Pedaço de mim

Samba e amor

Homenagem ao malandro

A Rita

Construção

Minha história

Partido Alto

Xote de navegação

Assentamento

Cantando no Toro

Lígia

Luiza

Fado Tropical

Pois é

A ostra e o vento

Amanhã, ninguém sabe

As vitrines

Samba do Grande amor

João e Maria

Paratodos

Cálice

Vai passar

Bastidores

Futuros Amantes

Sobre todas as coisas

Valsa Brasileira

Cecília

Acalanto

Aquela mulher

Bancarrota blues

Cálice

Folhetim

Gota d’água

Romance

Samba e amor

Todo o sentimento

Tanto mar

Ciranda-da-bailarina

Apesar de você

Geni e o Zeppelin

Querido Amigo

Te amo

Bárbara

Olê Olá

A banda

A Rita

Trocando em miúdos

João e Maria

As minhas meninas

Beatriz

Sinal Fechado

Rosa dos Ventos

Carolina

Casamento dos pequenos burgueses

A ilha

Sonhos sonhos são

Feijoada Completa

Valsinha

Você vai me seguir

Atrás da porta

Deus lhe pague

De todas as maneiras

Tango do covil

Basta um dia

Umas e outras

Almanaque

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