quarta-feira, 20 de abril de 2011

Duma alucinação coletiva

Aos que estão à procura de curiosidades psiquiátricas, já adianto: o relato a seguir não se refere a uma experiência verdadeira, e raríssima, de uma alucinação compartilhada. E tampouco é um relato ficcional. Trata-se de uma ilusão coletiva de que estávamos a compartilhar uma alucinação. O motivo do engano seguirá explicado abaixo.

O estado de Minas Gerais, no sudeste do Brasil, possui uma certa aura de história, de assombro, de mágica. A cidade que melhor exemplifica isso é a mística São Tomé das Letras, ponto de romaria de todo tipo de bicho-grilo, pessoal da Nova Era e metidos a alternativos em geral. Reza a lenda que de São Tomé segue um túnel que a liga a Machu Picchu, no Peru. Não que alguém já tenha percorrido tal caminho e retornado para contar a história...

Já tive a alegria de viajar algumas vezes a Minas, e conheci as seguintes cidades: São Lourenço, Cambuquira, Lambari, Poços de Caldas, Mariana, Tiradentes, Ouro Preto, Congonhas do Campo, Bueno Brandão e Extrema.

Extrema, apesar de ser uma cidade muito pequena (quando a visitei, aos 16 anos, tinha 20 mil habitantes) carrega uma certa aura mística semelhante à de São Tomé das Letras. Não há como explicá-lo, mas a cidade tem uma certa vibe, um ar mais leve, um céu mais azul, uma atmosfera de despojada sacralidade, se é que isso é possível. Similar à de Brasília. Também já ouvi dizer que Extrema tem uma base geológica estabilíssima. E, se em 2012 as placas tectônicas começarem a enlouquecer, Extrema é o único destino de fuga no qual conseguiria imediatamente pensar.

Fui convidada para ir a Extrema por minha amiga T, que tinha uma amiga lá, para uma aventura num feriado. Fomos. Ao chegar, fomos recebidas numa república, e lá conheci C, vulga “Preta”. Sim, ela era afrodescendente. Já entrada nos seus 20 anos, Preta era super cool e descolada. Vestia-se, portava-se, e vivia de forma alternativa, não era careta “Como nossos pais”. Era enfermeira, sustentava-se e morava sozinha. Não propriamente “sozinha”, pois Preta tinha uma filha, S, com pouco mais de 1 ano de idade.

O detalhe curioso é que a filha de Preta era loira. De olhos verdes. Explicou-nos que o pai de sua filha era “alemão” (o que no Brasil implica, genericamente, que ele era loiro), e assim saíra a filha, ao pai. Impossível não ter o pensamento malicioso de que fossem trocados os gêneros dos pais de S, fosse sua mãe loira e seu pai negro, rapidamente todos duvidariam se ele era mesmo o pai. Mas como sobre quem é a mãe não jazem dúvidas, e fora testemunhado por muitas pessoas que cachinhos dourados nascera de mãe negra, ninguém duvidava que S. era filha de C. Negras terem filhos loiros, caucasianos, é um dos fatos curiosos da vida que dão um colorido todo especial à nacionalidade brasileira. Prova empírica de que el alma no tiene color.

Certa noite deste feriado aprontamo-nos para comparecer à festa da Casa Redonda, num local algo afastado da cidade. Fomos as três, eu, T e Preta à casa do namorado desta última, D, para fazer o que no Brasil é conhecido por “esquenta”: encher a cara antes de ir para a festa, ou “balada”. Na casa de D bebemos bastante, jogamos videogame, contamos histórias e, enquanto nos preparávamos para sair, ligamos o rádio. Procurando uma sintonia, em meio a axés, sertanejos e pagodes, encontramos no dial um suspiro de alívio num acorde conhecido: sintonizamos a melodia de “Losing my religion”, o maior sucesso da banda americana R.E.M. Música deliciosa, clipe lindo. Maravilha. A certa altura um de nós disse:

- Mas essa música não está tocando há muito tempo?

Prestamos atenção, esperando o final da música. Terminou. Um segundo, dois segundos. Novas notas começaram a tocar. Notas inconfundíveis, conhecidas, de “Losing my religion”, do R.E.M. Não podia ser. Inquirimos ao D.:

- Fala sério, vc tem esse CD e colocou a música no repeat!

Negou, renegou. Ele não tinha “Out of time” (estávamos em 1999, quando para se tocar uma música de sua escolha em casa era necessário comprar seu CD, original). Não era o leitor de CD que estava acionado, mas a rádio FM. OK. Esperamos a música terminar para ver qual viria em seguida. Depois dos 2 segundos de suspense, novas notas começaram a tocar. Notas inconfundíveis, conhecidas, de “Losing my religion”, do R.E.M. Não podia ser.

Verificamos o aparelho de som de D, ainda pensando que ele estava a nos pregar uma peça no estilo candid camera. Ejetamos o CD do leitor. Não era do R.E.M. Desligamos o aparelho. A música cessou. O religamos. A mesma música tocou. Mexemos no dial. As demais estações estavam normais, tocando outras músicas, variadas. Retornamos à sintonia anterior. O que estava a tocar? O riff inconfundível de “Losing my religion”, do R.E.M. Não podia ser.

Alguma coisa muito estranha estava acontecendo. Estivesse um de nós tendo uma alucinação, os demais estranhariam, falariam que a impressão não era verdadeira. Mas não. Estávamos, todos, compartilhando a mesma experiência estranhíssima de uma música repetir-se sucessivamente na rádio, sem explicação. Pensei “Vamos sair logo, pois o clima aqui neste quarto está nos fazendo ‘ouvir coisas’.”

Saímos e nos dirigimos, à pé, para a balada. Comentando pelo caminho a maluquice do inexplicável evento radiofônico, nos aproximamos de um boteco de rua que estava aberto. Ainda a muitos metros de distância percebemos que dele ressoava uma certa música, num acorde conhecido: “Losing my religion”, do R.E.M. Não podia ser.

Caímos coletivamente no riso mais uma vez, ainda desacreditando do que estava acontecendo. Passamos pelo bar e prosseguimos nosso caminho. Dobrando uma esquina, caminhamos pela calçada de uma casa com a luz acesa e rádio ligado. Pela janela aberta revoavam notas musicais num acorde conhecido e luminosidade que principia amarela, e esverdeia-se prum tom vivo, claro e metálico de cigarra: “Losing my religion”, do R.E.M. Não podia ser. Caímos coletivamente no riso mais uma vez, de novo desacreditando de nossos próprios ouvidos, mas já algo convencidos de que algo estranhíssimo, sobrenatural, estava acontecendo. Que estávamos a testemunhar algum tipo de “mensagem subliminar tsunâmica divina”. Ou que estávamos a alucinar coletivamente.

No caminho, enquanto vencíamos a um milharal ainda ouvindo de longe tocar em volume baixo o riff inconfundível de “Losing my religion”, foi impossível não questionar-me se eu estava em algum episódio de “The X-Files”, “Twilight Zone”, ou mesmo no filme “Feitiço da Lua”, e se o meu presente percebido estaria girando em falso, reiniciando-se sucessivamente. Estaria o Long Play de minha realidade riscado? Estávamos prestes a ser abduzidos no milharal? Éramos vítimas de algum tipo de experiência militar esdrúxula? A imagem do ET mineiro de Varginha espocou em minha mente enquanto me lembrava que o governo brasileiro foi o único, até agora, a reconhecer que sua força aérea testemunhara experiências com OVNI’s: Objetos voadores não identificados.

Por outros lugares passamos a seguir, e vários tocavam intrigantemente a mesma música. Ganha um sorvete quem adivinhar qual. :P Chegando à Casa Redonda, felizmente, lá não tocava R.E.M., pois a casa tinha DJ e não dependia da programação do rádio.

Na tarde posterior acordamos comentando o acontecimento, nos questionando se de fato ocorrera ou se havíamos tido uma inexplicável alucinação coletiva. Como a cidade era pequena, a dúvida não prosseguiu por muito tempo.

Saímos para arranjar algo para comer e na padaria ouvimos ao comentário geral:

- Vc ouviu à radio ontem? Parece que o radialista adormeceu sobre sua mesa de trabalho e acidentalmente acionou a repetição de uma música, que ficou tocando a noite inteira, até que chegou o radialista do plantão da manhã e trocou o “disco riscado”. Ficou tocando “Losing my religion”, do R.E.M., até hj cedo!

Gargalhamos coletivamente à larga do curioso incidente radiofônico que para nós, por estarmos “alterados”, achamos ser algo sobrenatural, ou até digno de preocupação e atenção psiquiátrica. Pequenos incidentes randonicamente mágicos como este adicionaram um charme extra a Extrema, às minhas experiências adolescentes e à minha sensibilidade musical.

P.S.: À época eu desconhecia o significado da expressão sulista, creolle, cajun. Muitos anos depois ouvi Michael Stipe relatar que “to lose thy religion” é algo análogo ao que no Brasil é referido por “perder a linha”, “ver tudo vermelho”, “armar um barraco”, “fazer uma cena”, “perder a compostura”, “se espalhar”, “descer do salto” ou das tamancas.

Um comentário:

  1. O pior não é rir quando tá acontecendo, é rir depois que se desmistifica a coisa. Gostei da "pseudoalucinação"

    http://dijadarkdija.blogspot.com

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