quinta-feira, 25 de setembro de 2008

De dois analfabetos

Já há algum tempo venho adiando este texto, que vem circulando nas minhas idéias, aos poucos tomando forma.

É difícil escrever a respeito dos meus alunos. Quem são eles?

Presos. Menores infratores condenados. Moleques que acham que roubar é “profissão”. No CRM, alguns presos aguardando julgamento, outros têm cara de malandro, suástica tatuada, cabelos brancos. Funcionários “de fora”, como eu, não ficam sabendo por qual crime os detentos estão condenados. Isso funciona tanto para o bem como para o mal. Às vezes vc se pergunta: o que fez esta pessoa parar aqui? E não tem autorização para perguntar, o que chega a ser angustiante. Às vezes eles falam espontaneamente, na maioria das vezes vc nunca fica sabendo.

Entre os muitos que eu vejo ir e vir, serem condenados e serem libertados, suas histórias sempre me fazem refletir. Suas personalidades sempre deixam em mim uma certa marca. Suas histórias me tocam, me engrandecem em experiências de vida, no conhecimento do ser humano.

O primeiro traço característico que se nota em quem está preso é a pobreza. Não defendo uso de clichês, mas pobreza que se nota, transparece através dos uniformes e sandálias havaianas. Pelo gestuário, pelo palavreado, pelos assuntos.

Na Fundação CASA (Centro de Atendimento Sócio-educativo ao Adolescente), novo nome da FEBEM (Fundação para o Bem-Estar do Menor), esse traço é marcante. Os meninos são, sobretudo, de periferia. Criados em famílias desestruturadas. Todos os clichês da “quebrada”: rua de terra, sem iluminação pública, escola deficiente, mães adolescentes, vários padrastos, parentes já presos etc. Cedo aprendem, em casa ou na rua, que roubar “os ricos” é normal, que traficar é apenas mais um ramo do comércio, que a justiça é feita pelos traficantes da “comunidade” e não pelo Estado Brasileiro. Que PM (policial militar) é inimigo e que todo político é ladrão.

Atualmente leciono para 45 alunos “menores infratores” com liberdade sancionada em regime de internação na CASA, divididos em 4 salas de aula. 20 na quinta e sexta. 20 divididos em duas sétimas e oitavas. 5 no ensino médio. Dá para perceber o gráfico em pirâmide que se forma? No CRM, leciono para 46 detentos, alguns em regime semi-aberto, outros em regime fechado, das mais variadas idades, condenados ou aguardando julgamento, em uma sala de ensino médio.

Como contar suas tristes histórias? Sinto tanta dificuldade em escrever sobre isso e parecer que os estou submetendo a algum tipo de “pesquisa de campo” sociológica... Não é esta a intenção, mas dou-lhes uma certa liberdade para conversar, que eles não desfrutam na presença dos seguranças. Gosto de nas minhas aulas ceder-lhes um raro respiro de uma relativa liberdade. E eles acabam se abrindo. Não há como ficar imune e não refletir sobre o que eles falam.

Como o menino que esteve preso por roubar R$30 e cinco pacotes de Passatempo na padaria do bairro. Ou o que voltou em reincidência por roubar uma bicicleta. Ou o que roubou um tênis. Ou os que estão presos por torturar uma vítima de assalto, por haver esfaqueado e assassinado um idoso, ou mesmo por estupro.

Muitos de seus crimes são chocantes, mas suas histórias são tocantes. Como o menino que teve a prima de 8 anos estuprada em um terreno baldio. E que testemunhou a irmã de 16 anos ser vítima de uma tentativa de estupro; meninos cujo pai, ou mãe, ou tio, está preso já há muitos anos? Os irmãos, os primos, os vizinhos, que ficam presos juntos? Muitos são órfãos. Muitos nunca conheceram o pai. Muitos são os criados por parentes, e não pela mãe. Muitos chegam semi-alfabetizados, os famosos “analfabetos funcionais”. Outros completamente iletrados.

Dois meninos analfabetos me tocaram profundamente. Fernando. Rapaz negro, paranaense, atarracado, bastante forte. Disse certa vez que ganhava R$5.000,00 reais por mês no tráfico. Chegou sem saber escrever o próprio nome. Sem conseguir fazer operações simples de adição e subtração. Não sei se a história sobre o seu lucro é verdadeira, mas soube que ele havia fugido de casa no Paraná por conta de violência doméstica e tinha vindo para em SP pegando carona com caminhoneiros. Certa vez tivemos uma festa de confraternização em que foram servidos produtos produzidos pelos próprios meninos da oficina de panificação. Pão de queijo, panetone, pães em geral. Nesta ocasião Fernando comeu exatos 14 pedaços de panetone. Em meio a isso perguntei-lhe: Nossa, vc deve estar com fome?! Disse-me ele: Professora, nunca comi uma coisa tão gostosa na minha vida! Panetone de frutas secas, uma coisa tão banal, que sempre sobra na minha mesa de Natal... Fernando nunca tivera um Natal como os meus.

Outro é Geremias. Com G mesmo. Geremias faz aniversário no dia 29 de dezembro. Eu faço aniversário no dia 29 de dezembro. Ele consegue, com muita dificuldade, identificar letras de fôrma. Não, porém, letras de mão. Eu entendo um pouco de paleografia, a ciência de decifrar a escrita em documentos antigos. Um abismo nos separa. Deveríamos ter sortes muito parecidas, não?

Geremias é um rapaz branco, atarracado, dente da frente faltando, testa baixa, tem uma namorada em quem pretende fazer um filho assim que receber sua liberdade. Como ela é filha única, vê nisso uma possibilidade de se mudar para a casa dos sogros e começar uma vida nova Ao contrário de Fernando, que foi alfabetizado com sucesso, Geremias receberá sua liberdade ainda analfabeto. Fez alguns avanços na matemática. Já é capaz de somar números com 3 dígitos. Numa aula minha ele, ao invés de tentar copiar a lousa, fez um desenho e mo entregou ao final da aula. O guardo até hoje. São duas figuras humanas estilizadas. Têm olhos, boca, ouvido, cabelos, pernas, braços, roupas. Um desenho até bonito. Meio que estilo cartoon. Destaca-se que nenhuma das duas figuras humanas têm mãos. Têm pés, mas não têm mãos. Os traços se encerram no punho, num corte seco. Não sou formada em psicologia, mas não pude deixar de perceber que esse detalhe demonstra que Geremias se vê maneta, literalmente incapaz de lidar com o mundo. Que ele inconscientemente percebe que seu iletramento o torna incapacitado, deficiente. E isso infelizmente não foi alterado em seus 6 meses de FEBEM.

É muito difícil conviver com tais histórias. Ver o quanto tenho uma vida confortável e sou privilegiada perto deles. E saber que eles são “o inimigo”. É por causa de pessoas como Fernando e Geremias que passo o cadeado todos os dias no portão. São pessoas como eles as que assaltam, as que seqüestram, as que matam, as que mantém a “classe média” em estado de sítio. São eles que eventualmente aparecerão em reportagens no programa do Datena.

É muito difícil conviver com os dois lados dessa história. Conhecer tanto sua Humanidade quanto sua desumanidade, em vários sentidos.

Existem muitos outros menores e maiores cujas histórias valem o registro. Aos poucos falarei mais. Quem ler, por favor deixe registrado em comentário, mesmo que apenas um “eu li”.

2 comentários:

  1. Li e relembrei meu tempo de professor em escolas públicas do Maranhão. Qnd lecionava para turmas de quinta à oitava séries. Eram alunos de periferia e com muitas histórias semelhantes, não tão trágicas, às dos seus alunos.
    É uma experiência excelente. Não tem como não amadurecer.

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  2. Fernanda, não tive experiências assim em sala de aula, mas convivi um bom tempo com jovens semelhantes e posso assegurar que conseguimos tirar alguns dessa situação.
    Infelizmente para esses que voce mencionou trancamos às portas de nossas casas e temos a sensação de segurança e para os políticos corruptos o que podemos fazer?
    Bj Inês

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