sábado, 5 de fevereiro de 2011

De meu biso e minha Nonna – imigrante e oriundi

Os noticiários locais brasileiros freqüentemente divulgam reportagens sobre estrangeiros que imigram para o Brasil e sua condição social. Não somente o Brasil mas todo o continente americano foi determinantemente colonizado por estrangeiros, dos 3 continente que compõem o Velho Mundo: Europa, Ásia e África.

É inegável a contribuição não só genética como cultural que os latino-americanos devem reputar a seus antepassados indígenas. No Brasil, especialmente, algo da indolência latente típica aos brasileiros remonta aos nossos avós autóctones. Certa vez um aluno me perguntou, claro que não nesses termos, mas nesse sentido: “Quando vemos aos demais povos latino-americanos, são expressas suas feições indígenas. Mas, e no Brasil, o que aconteceu com os índios brasileiros?”

Para além do genocídio, intencional pela guerra ou acidental pelas doenças, os índios brasileiros, mais que dizimados foram absorvidos. Portanto, respondi-lhe: “Os índios brasileiros somos nós. Embora não tenhamos olhos tão puxados, todos nós aqui nessa sala de aula seguramente temos sangue indígena.” O aluno, sabendo-se multi-mestiço, até deu um sorriso com minha resposta e talvez tenha depois reconhecido em seus olhos amendoados algo se seu sangue tupi.

Freqüentemente muitos não entendem pq a identidade nacional brasileira é mais difícil de ser compreendida, e muito crêem que no Brasil o patriotismo não existe no mesmo grau que na França, na Espanha, ou na Inglaterra. De fato. A identidade francesa, inglesa e espanhola remete-se não só a “nações” mais antigas, como tb mais uniformes, forjadas no sangue de uma Revolução Burguesa. Que poderia ser expressa pelo termo “etnia”. Um certo reconhecimento de que descendemos de um grupo que lutou e derramou seu sangue para garantir-nos nossas liberdades “democráticas”. O que não ocorreu no Brasil; que nunca passou por nenhuma Revolução verdadeira, popular. Isso, infelizmente, ainda sói fazer.

É muito mais fácil reconhecer um francês, espanhol ou inglês pelo seu fenótipo do que um brasileiro. Brasileiros podem ter qquer aparência exterior, de qquer etnia, pois o Brasil recebeu imigrantes dos 4 cantos do mundo. Por isso nosso passaporte é muito falsificado. Em “The Bourne Identity” grita o passaporte brasileiro de João do Carmo, assinado por Gilberto do Piento, só para ilustrar.

Creio que a única “etnia” reconhecível como exclusivamente brasileira refere-se ao que alguns chamariam pejorativamente como “nordestinos”. Os nordestinos são os únicos brasileiros que, pelo seu fenótipo, são imediatamente reconhecíveis como brasileiros. Pelo diâmetro ampliado do crânio, pela “cabeça chata”, pelo tronco reto, pela estatura baixa, pela pele morena, cabelo enrolado e feições mestiças de branco, índio e negro. Tenho eu também sangue nordestino via meu avô materno. Também meu amado avô era um reconhecível “nordestino” étnico, ainda que branco. Não havia boné que lhe coubesse.

Tenho eu portanto esse sangue etnicamente exclusivamente brasileiro, e dele tenho orgulho, pois quem mo legou foi um homem honrado. Porém minha identidade americana vai muito mais além. Sou também fruto da imigração. Pela via paterna sei que tenho sangue espanhol. Pela via materna sei que tenho sangue português e italiano.

Fizessem meu perfil genético, ao analisar meu DNA mitocondrial, diagnosticar-me-iam como oriundi. A mãe da mãe da mãe de minha ex-mãe era a signora Maria Bianchetti, italiana, que emigrou para o Brasil. Desta linhagem herdei meus seios fartos, minhas emoções passionais, meu gosto pelo drama e meu gesticular incontrolável, pois italianos, para além de com a boca, falam com as mãos. Minha trisavó oriundi Maria Bianchetti casou-se com o também italiano Geronimo Pilon originando minha nonna já brasileira Giselda Pilon, que casou-se com o português Agostinho José Alves, espírita kardecista, filho de Maria Cândida Gonçalves de Vila Pouca de Aguiar em Trás-os-Montes (Portugal), e originou minha avó já muito citada Shirleÿ Pilon Alves quando solteira, vulga “Tula”, que casou-se com meu avô mui citado, o nordestino Vicente Novais da Silva, originando Regina, que me pariu.

Posso pois traçar minha linhagem até a quinta geração, remontando-a à Itália, a Portugal e ao Ceará. Sei que tenho direito à cidadania européia por minha avó Tula, ainda viva, ser filha do já falecido português Agostinho José Alves. De minha linhagem portuguesa também tenho a única informação sobre os possíveis genes defeituosos que carrego pois o pai de meu bisavô Agostinho, Dom Augusto José Alves, era surdo. Para além dele, nunca tive notícia de nenhum parente ou antepassado portador de nenhuma deficiência. O que é até atípico.

Reconhecer ser descendente de imigrantes estrangeiros traz subjacente uma confissão de pobreza ancestral. Pessoas migram por motivos de opressão: religiosa, política, étnica ou econômica. Por este motivo final emigraram meus antepassados, e para o Brasil vieram iludidos talvez pelo sonho de “fazer a América” e aqui enriquecer.

Minha Nonna Giselda foi uma mulher cuja história é admirável e merece registro. Se eu não o fizer ninguém mais o fará e sua memória cairá no esquecimento. Portanto, para honrar à vovó, eternizo aqui, mais do que em tinta preta sobre papel, em pixels e bytes, que a traça não rói e o ladrão não rouba.

Minha Nonna foi registrada apenas aos 5 anos de idade, disseram-me pq precisava do papel para ingressar na escola, que freqüentou apenas 2 anos, para se alfabetizar. Portanto, ao morrer seu registro em papel marcava 5 anos a menos que seus 99 anos e 10 meses. Quase completou um século. Não, não viu o cometa Halley 2 vezes, pois na década de 1980 ele foi indivizável. E quando criança, tb não o viu. Contou que sua mãe, ao avistar o cometa mandou-a esconder-se no armário, por estar certa de que o cometa vinha para anunciar o Fim dos Tempos e o Juízo Final.

Consta igualmente que minha bisavó, paulistana como eu, quando criança fugiu com a família de uma fazenda de café em Serra Negra pois os capatazes dos cafeicultores queriam dispensar aos italianos o mesmo trato dado aos negros escravos. Chocados com tal selvageria, os Pilon fugiram de madrugada, com a roupa do corpo, para Rio Claro, onde o tecelão Geronimo conseguiu trabalho na fábrica da família dos também oriundi Matarazzo.

Foi tb trabalhando para os Matarazzo que minha bisavó ficou “meio surda” ainda criança, já de volta a São Paulo, capital. Fiquei sabendo disso com muita surpresa. Certa vez, assistindo com minha Nonna à televisão, ela pediu-me para subir o volume do áudio. Subi e comentei que era normal, dada sua avançada idade, ela ter problemas de audição. Ela sorriu. Eu não entendi. Ela explicou que sua surdez não era devida à idade. Contou-me então que percebera-se “meio surda” já aos 12 anos, pois trabalhava já há muito tempo entre as máquinas de tecelagem dos Matarazzo, muito antes de alguém pensar em “Leis Trabalhistas”.

Minha nonna era uma mulher de muita coragem, como eu. Ela casou-se com um rapaz 7 anos mais jovem. O que hoje é comum e então era anátema. Soube que quando ela era moça, na então “idade de casar” (creio que entre os 15 e 21 anos), foi noiva de um rapaz que, descobriu, a traía. Ora, comum era às mulheres dos 1930 engolirem caladas seu orgulho e agarrar-se à primeira oportunidade de se casar. Não a quem carregava os mesmos genes que me animam. Minha bisa mocinha rompeu orgulhosamente seu noivado. Solteira, viu os anos se passarem.

Aos 31 anos, já segura de que seu destino era “ficar para titia” conheceu um rapaz mais jovem. Meu biso Agostinho tinha então 24 anos e alguns “problemas com a Justiça”. Não era bandido, mas manifestava os genes da insubordinação, tal qual eu. Estava envolvido em questões sindicais, Anarquismo e greves operárias. Por ser estrangeiro, sabia que o governo já estava a adiantar os papéis para sua extradição como persona non grata, de volta para Portugal.

Imagino que tenham-se apaixonado. E que tenha sido algo escandaloso, em 1937, uma “solteirona” oriundi casar-se com um tipo português meio suspeito, envolvido com “arruaças” e, acima de tudo, mais jovem! Não tivesse minha nonna coragem de enfrentar as fofocas da vizinhança, não estaria eu aqui para o narrar. ;) Casaram-se em janeiro de 1937. Meu biso foi com sua certidão de casamento dar entrada nos papéis de sua naturalização e permanência no Brasil.

A burocracia disse-lhe que casar-se com uma brasileira não era suficiente para certificá-lo de sua estadia. Enquanto não tivesse ele, tal qual futuramente Ronald Biggs, um filho nascido no Brasil, não poderia estar seguro de não ser extraditado.

Creio que a situação de meu bisavô fosse frágil pois ele não pôde esperar que sua esposa engravidasse. Creio que nisto confesso um crime, mas já prescrito, e cometido por dois já falecidos. Meu biso então fez um falso registro em cartório. No dia 13 de fevereiro de 1937 registrou, menos de um mês após casado, o nascimento de uma filha deste matrimônio: Shirleÿ Pilon Alves, pois eram os tempos áureos da menina-prodígio Shirley Temple. Este registro foi de um bebê fantasma, inexistente. Mas da posse de sua certidão de casamento e do nascimento de uma filha-fantasma, o português Agostinho obteve sua permanência no Brasil.

Meses depois perceberam que minha Nonna estava grávida. Nascesse menino, fariam um novo registro. Nascesse menina, ficaria com o registro já feito, em fevereiro. Nasceu menina, e minha avó. É por conta disso que, embora 99,999% das pessoas que são registradas em data errada o são em data posterior, minha avó é um caso único de alguém que em seu registro é 9 meses mais velha do que de fato é, pois foi registrada em cartório quando ainda não existia.

Não tive tempo de explicá-lo aos para-médicos que, ao meu chamado, a socorreram em 2009. Na ambulância, pediram que eu lhes entregasse um documento dela.

Com ele em mãos, perguntaram-lhe:

- Qual é o nome da senhora?

Confusa, mas ainda lúcida, disse:

- Shirley Alves da Silva.

- E quando é o seu aniversário?

- Primeiro de novembro.

O bombeiro leu no registro 13 de fevereiro e concluiu que ela não estava tão lúcida assim.

Acudi em esclarecer, sem tempo para explicar:

- Seu bombeiro, ela falou a data certa, a data do documento é que é a errada.

Minha avó nasceu santista, filha de estivador líder sindical e de uma dona de casa. Como durante a II Guerra Mundial rarearam os navios cargueiros no porto de Santos, a família realocou-se na Vila Formosa, São Paulo, Capital, onde sua filha mais velha, minha avó, casou-se já aos 18 anos com seu vizinho de muro, meu avô Vicente, nordestino. Em São Paulo capital meu biso Agostinho assumiu a profissão de motorneiro, que eu própria desconhecia e que Tula explicou-me referir-se aos "motoristas e cobradores do bonde elétrico".

Não tivesse ocorrido a II Guerra Mundial talvez nunca Tula e Vicente teriam se conhecido e o amálgama que resultou em mim nunca teria-se realizado. Nunca saberemos do que não se passou, pois a II Guerra veio e Shirleÿ, já com 15 anos, noivou com seu vizinho Vicente. Muita falta de imaginação noivar aos 15 anos com seu vizinho de porta. Já o disse à Tula. Longe de criticá-la, pois meu avô sempre foi um homem que honrou a sua esposa e à sua família. Alguém que merece verdadeiramente por sua estatura moral ser reputado como patriarca de uma beit’av, tal qual Abraão.

Seu sogro, meu biso português Agostinho, faleceu quando eu era nova demais para plasmar lembranças. Convivi com sua viúva, minha Nonna já octogenária durante a infância e dela guardo ternas memórias. Mulher digna, teimosa, ranzinza, discreta, mas sempre carinhosa com sua descendência. Mais calava do que dizia. Criava por estimação um pássaro preto (não me refiro à cor, mas esta é a designação de uma espécie) e uma tartaruga, presente de sua neta Viviani Alves da Cruz, mãe de Ivana Gabriela, Amanda e Sofia. Além de minha avó Tula, minha Nonna Giselda teve outros dois filhos, Waldomiro Pilon Alves “Leco”, casado com Clara Reiter, (pais de Viviani, Vânia e Alexandre) e Agostinho José Alves Filho “Chanchan”, casado com Áurea Massuella (pais de André, Andréia e Adriana).

Pois é, tal qual os mafiosos napolitanos da Cosa Nostra, meus antepassados e colaterais oriundi nascidos antes dos 1950 têm, ainda hoje, epítetos/alcunhas/apelidos familiares indissociáveis. Urge também registrar que o nome de minha prima carioca Gisele Rani Martins da Silva é uma homenagem à bisa que ela pouco conheceu, Giselda; da parte de meu tio Renê, que como eu anima genes nordestinos, ibéricos e romanos; e creio que procure honrar aos que o antecederam.

Tiveram ambos, meu biso Agostinho e minha Nonna Giselda vidas memoráveis, que merecem registro. Português e Oriundi, contribuíram, com seu trabalho, filhos, netos e bisnetos para a construção da Mérica, mérica, mérica... Não creio que seu sonho tenha sido frustrado. Sinto-me orgulhosa de ser brasileira miscigenada, nordestina, lusitana, oriundi. E espero honrar a meus antepassados e toda a Speranza que depositaram no futuro. Que sou eu.

E, para além de mim, também são fruto deste sonho todos os meus tios e primos em segundo, terceiro e infindáveis graus. Só o fato de existirmos já testemunha algo do sucesso de nossos antepassados e de como a terra brasílica lhes foi propícia.

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