sábado, 28 de agosto de 2010

Reminiscências escolares

Depois que me tornei professora passei a me questionar sobre como meu trabalho, se bem ou mal feito, poderia interferir na pessoa que futuramente meus alunos serão, após “formados”.

Para tanto passei a refletir a respeito do papel que meus próprios professores tiveram em minha formação. E descobri que da maioria deles sequer me lembro.

Em grande parte isso é devido a eu ter passado a maior parte de minha vida escolar numa gesselschaft e não numa gemeinschaft. Isso é grego? Não, alemão. Não que eu fale alemão, longe disso, mas lembro de minhas aulas de Teoria da História com o professor Augustin Wernet, ex-padre (se é que isso existe) e já falecido (uma grande perda, pois ele era um professor muito simpático e solícito, devia ser uma pessoa melhor ainda em suas relações pessoais). Gesselschaft é “sociedade”, como São Paulo. Gemeinschaft é “comunidade”, como Rio Claro, onde moro hoje, ainda é.

Sei disso pq observei que minha “madrinha”, Maria José Pereira da Silva Tomasella, professora do Fundamental I numa gemeinschaft, ao longo de uma festa de 15 anos, era incessantemente abordada por alunos que, mesmo depois de muitos anos, não haviam se esquecido dela.

Augustin Wernet foi meu segundo professor padre pois no Ensino Médio tive na matéria de Filosofia um professor que era padre mas não usava batina, não lembro seu nome, só que ele dava capítulos do livro “Mundo de Sofia” de Jostein Gaarder e por conta disso comprei este livro, que ainda tenho vontade de terminar de ler.

Do Ensino Médio, vulgo Segundo Grau ou Colegial, lembro de outro professor, de português, com cabelos bem brancos e que eu suspeitava ser tarado. Apenas suspeitava, pois por umas três vezes eu estava esperando na Radial Leste, altura do metrô Carrão, o ônibus para ir à aula pela manhã e ele passava por essa avenida com o mesmo destino e me ofereceu carona. Nas três vezes eu aceitei. Seu comportamento nessas ocasiões não chegou a ser impróprio, mas sabe quando uma pessoa é meio “simpática demais”? Pois é, parecia que ele só estava dando margem para eu acenar positivamente para interesses não-pedagógicos, o que eu não fiz, e ele sábia ou elegantemente soube entender minha negativa. Seria ele pedófilo? Não creio, pois eu contava então 16 ou 17 anos, sapato 37 e 1 metro e 70.

Meus três anos de Ensino Médio se deram na mesma escola em que minha mãe estudou, e engravidou, duas vezes, a Escola Estadual Professor José Marques da Cruz, na Vila Formosa, zona leste de São Paulo, perto de onde ainda moram minhas tias-avós Evanda e Maria do Carmo, irmãs de meu avô Major Vicente Novais da Silva, cearense da família Alencar, primo do primeiro presidente militar, general Humberto de Alencar Castelo Branco. Nesta escola eu não engravidei, apenas estudei, e fui a única que, ao final do terceiro colegial, entrou na USP.

No Ensino Fundamental II estudei em duas escolas: Escola Estadual Irene de Lima Paiva e Colégio Sagrado Coração (particular). Do Irene eu lembro que tinha muitas aulas vagas e era um caos. Que a professora de inglês pediu um trabalho em grupo para que traduzíssemos e cantássemos uma música e que eu fui até Itaquera, na casa de minha amiga Tuca (Aline) e o trabalho foi sobre “Ironic” de Alanis Morissette, então no auge. Deve ter sido em 1996.

Lembro também da professora de Ciências, que me apresentou ao corpo humano e pediu um trabalho, também em grupo, no qual deveríamos trazer o coração de um boi para dissecarmos no ”laboratório” – na verdade uma sala de aula que tinha pia e um microscópio. Na escola pública isso já configura um laboratório. De toda forma, meus amigos e eu (Maristela Matsuda, a Maty, Gisele Ferreira Bailer, a , Romeu Marinho Cardona Ubeda, o Morreu, Francisco Eduardo Moreira Sobral, o Chicote, e Thaís Nogueira Dias, a Bruxa) fomos até o Mercado Municipal de São Paulo, vulgo Mercadão, comprar o tal coração de boi. Eu nunca tinha ido “sozinha” (id est, sem “responsáveis”) ao centro, sequer sabia da sua importância, minha vidinha se dava no eixo Tatuapé - Vila Carrão - Vila Formosa - Aricanduva. A experiência de conhecer com meus colegas o Mercadão, o centro e a imensidão de São Paulo foi incrível. Passeamos e compramos o tal coração de boi. No dia da aula, fomos o único grupo a trazer um coração de verdade e todos os colegas se debruçaram para estudar o fruto de nossa aventura.

No Colégio Nossa Senhora do Sagrado Coração, na Vila Formosa, que era de freiras e, nem precisaria dizer, confessional Católico Apostólico Romano (eu de certa forma me sentia uma outsider, pois nem batizada sou), lembro-me da professora de religião, irmã Roseli Fernandes Galati. Ela tentava nos ensinar bons valores, era rígida e foi uma grande surpresa quando, na sexta série ela foi substituída por uma noviça bastante jovem, irmã Valéria, e descobrimos que foi pq irmã Roseli havia desistido de ser freira. Eu cheguei até a vê-la uma vez sem o hábito, o que, confesso, aos 12 anos foi meio chocante. Parecia que seu hábito era naturalmente costurado nela tal qual uma djellaba (mortalha). Certa vez ela coordenou uma apresentação de “dança” para uma festa da igreja Nossa Senhora do Sagrado Coração, na esquina da avenida Renata com a João XXIII. A “dança” era de anjas louvando a Virgem Maria. Eu fui a Virgem Maria. Não pq eu fosse mais virgem, mais santa ou melhor aluna do que as demais, mas simplesmente pq eu era a mais alta e imponente. O resumo disto numa locução seria altiva, o que ainda sou. Mas isso pode não ser considerado uma característica positiva, mas um defeito.

Também lembro que nessa escola tive aulas de flauta doce na quinta série, para apresentarmos uma versão simplificada do “Ode à Alegria” da “Nona Sinfonia” de Ludwig van Beethoven na fanfarra anual da escola. Não me tornei nenhuma musicista mas ainda hoje sei ler partitura e posso tocar melodias simples ao piano. Ter aulas de educação musical, mesmo que apenas por um ano, foi extremamente positivo para meu desenvolvimento pessoal.

Mas a professora de quem lembro com mais carinho foi de português, da sexta série, neste mesmo colégio particular. Seu nome é (ou era, caso ela tenha se casado novamente) Adriana Aparecida dos Santos de Conti, ela era uma jovem de 26 anos, tinha longos cabelos negros ondulados, sempre soltos. Parecia com a atriz Madeleine Stowe. Era casada com um viúvo e tinha uma enteada pequena, que estudava na mesma escola. Creio que ela seja a responsável por grande parte de minha destreza lingüística e riqueza vocabular. Lembro-me até das páginas do livro laranja de gramática em que estudávamos.

Lembro que certa vez numa aula ela estava fazendo uma espécie de chamada oral sobre locuções relativas. A minha pergunta foi sobre “onírico”, e a resposta seria “relativo aos sonhos”. Eu não soube responder e ela se surpreendeu. Então percebi que não era apenas eu que me considerava “acima da média”. Minha admirada professora também pensava isso, tanto que estranhou eu não saber a resposta. Eu não sabia não pq eu tivesse esquecido, mas pq eu simplesmente não havia feito a lição de casa. Sequer abrira o livro. A sua reação me fez perceber que eu poderia fazer muito mais com o meu potencial, se eu preenchesse meu processador privilegiado com informações e ferramentas adequadas.

Obrigada, professora Adriana, você me despertou, com apenas uma frase, para minha capacidade intelectual. Lembro com muito carinho de suas aulas, que ainda hoje me são úteis, cada vez que eu não falo “menas” nem “trusse” (trouxe), cada vez que eu sei usar corretamente a crase e insisto em pôr os tremas, acentos diferenciais e acento agudo no ditongo aberto. Foi assim que a professora Adriana me ensinou, não só o conteúdo, mas também a importância de aprender. De certa forma ainda hoje, vinte e um anos depois, a senhora ainda me ensina.

Quisera eu um dia que apenas um aluno escrevesse algo como isso a meu respeito.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A função e o currículo da História no Ensino Fundamental

Meus interlocutores nessa questão não são apenas os demais professores e teóricos da educação, mas todos os que se interessam pelo cultivo da cidadania no Brasil. Não são somente os especialistas e profissionais os que devem se preocupar com a educação, mas todos, pois todos passaram, passam, ou passarão pela escola, cada vez mais amplamente universalizada e pq não pasteurizada. Toda a sociedade brasileira é permeada pela questão da educação pública.

Ensinar História de certa forma é mais fácil do que outras matérias pois temos a inexorável ordem cronológica. E é com base nesse compasso que o currículo é dividido em séries, da seguinte forma (tomando como base o currículo do Governo do Estado de SP):

5ª série: da Pré-História à alta Idade Média
6ª série: da alta Idade Média ao séc. XVIII
7ª série: do século XVIII ao XIX
8ª série: o século XX

Parece ótimo, não é? Só parece. Porque o currículo é reprisado no Ensino Médio, da seguinte forma:

1º colegial: da Pré-História à baixa Idade Média
2º colegial: da baixa Idade Média ao séc. XIX
3º colegial: séculos XIX e XX

Ou seja, o conteúdo do Ensino Fundamental se repete no Ensino Médio. Teoricamente “de maneira mais aprofundada”. Além de maçante, essa estratégica curricular é contraproducente. No Fundamental, os alunos não estão preparados para lidar com diversos conceitos político-sociológicos. No colegial, como eles se lembram vagamente do conteúdo anteriormente ministrado, acham que já sabem o que o professor está ensinando.

Tive um insight a respeito disso ano passado, quando de repente me vi tentando explicar a Revolução Francesa para alunos da sétima série, com 13 anos. Pura perda de tempo. Eles não sabiam o que era Monarquia nem Antigo Regime, onde fica Versalhes ou mesmo a França, ou pq Napoleão Bonaparte era diferente de Alexandre, o Grande ou Carlos Magno. Ou sequer quem eles eram, e os séculos que os separavam. Também não conheciam o significado das palavras “clero”, “plebe” e “nobreza”.

Longe de mim considerar a Revolução Francesa desimportante. Eu sei de sua importância justamente pq gosto tanto de História que fiz faculdade disso. Porém, digamos que apenas 2% dos meus alunos gostem de História a esse ponto. Pq os outros 98% deveriam ser obrigados aos 13 anos a decorar as diferentes fases da Revolução Francesa, coisa que mesmo durante a faculdade foi-me dificílimo conseguir?

O currículo do Ensino Fundamental deveria ser despido de sua pretensão vestibulárica e científica. Pessoas que se formem apenas no Ensino Fundamental não precisarão lidar com conceitos que envolvam coisas como a Revolução Francesa. E se aprenderem na preciosa carga horária destinada à História apenas coisas abstratas, distantes no tempo e no espaço, sem nenhuma conexão com sua realidade, este tempo será, na prática, desperdiçado.

A matéria de História no Ensino Fundamental deveria ser uma introdução à reflexão e às Ciências Humanas. Não deveria contentar-se em passar a velha decoreba dos fatos que se sucederam ao longo do tempo. Deveria ser um guia de compreensão da realidade.

Defendo que a matéria História do Ensino Fundamental não ensine História. Que não ensine o ontem, mas o hoje. Que use o ontem na medida em que ele elucida o hoje. Que o ensino de História do Brasil parta da realidade atual brasileira. Que o ensino da escravidão parta da atual desigualdade racial brasileira. Que o estudo de Grécia e Roma tenha como escopo explicar a cidadania e a política atuais do Brasil. Os exemplos são infinitos, não pretendo aqui sistematizar uma proposta completa, apenas dar a deixa para uma reflexão; apresentar uma alternativa que creio seja não só necessária como emergencial.

Ao invés de desperdiçar anos ensinando coisas que os alunos esquecerão pois nunca mais usarão, o Ensino Fundamental de História deveria preparar seus alunos para entender e agir no mundo da política e da cidadania. Deveria dar-lhes ferramentas práticas, e não teóricas, de intervenção na realidade. Para isso serão necessárias muitas vozes, e uma ampla reflexão da sociedade sobre o que ela espera da educação pública brasileira.
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